Joel Neto's Blog, page 79
December 9, 2012
Terra Chã, 9 de Dezembro de 2012
E-mail do meu tio. Pelo meio, uma frase. “Isso ao fim de algum tempo deve ser uma seca do caraças, não?!... Vê se dás um salto de vez em quando à civilização e tomas um bom banho de cidade, senão começas para aí a falar sozinho.”
Só faltou perguntar se ao menos já temos um centro comercial.
De resto, que se possa chamar civilização a Lisboa, por oposição à barbárie desta terra, diz muito sobre a própria civilização.
Não se preocupe, tio. Em vez de ir ao shopping, planto couves e leio livros. Mas, pronto, cá me vou aguentando como posso.
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Reportagem na TSF sobre a relação dos portugueses com a fé. Muitos agnósticos e outros tantos cépticos, segundo pude perceber. Gosto desse cuidado com as palavras. O ateísmo é outra coisa: é uma religião em si próprio. É ter a certeza de que não existe nada. Eu, por exemplo, tenho.
December 8, 2012
Terra Chã, 8 de Dezembro de 2012
Dilma Rousseff vai adiar para 2015 a entrada em vigor desse aborto a que chamaram Acordo Ortográfico. Afinal, nem aqueles a quem pretendemos vender a nossa língua a querem comprar ainda. Apesar de tudo, parece resistir no Brasil uma capacidade de sentir vergonha que em Portugal desapareceu há muito. Uma lição de Dilma em defesa do Português – eis aquilo de que nem Sócrates, nem Passos Coelho se livram já. Eu morria.
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Uma frase guardada do jantar de ontem: as pessoas são, como dizia Churchill da democracia, a pior coisa do mundo à excepção de todas as outras.
Mais do que um jogo de palavras – isso é-o de certeza.
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De resto, durante o dia ouvi a frase "Na quere mai'lhieite". Disse-ma Elias. Mas continuo a preferir "Um quart'd'quilhe'd'queij'd'pêse".
December 7, 2012
Terra Chã, 7 de Dezembro de 2012
Há algo de maravilhoso nisto de ligar para a Electricidade dos Açores, ou para os Serviços Municipalizados, e, à pergunta sobre quem é o titular do contrato, responder: “José Guilherme da Silveira Couto”. Passaram já quase duas décadas sobre a sua morte e, porém, esta casa permanece dele.
Todos os anos, durante muito tempo, regressei aqui. Dormia na cama onde ele dormira, comia nos pratos em que ele comera, abria e fechava as portas e as janelas que ele abrira e fechara.
O meu avô. O meu primeiro amigo. A primeira pessoa que eu vi morrer.
Agora, estou no pequeno jardim que instalei onde outrora ele tinha o quintal. Gostava que ele pudesse ver esta horta que plantei nos fundos. Gostava de mostrar-lhe a araucária, já quase da altura da casa (alerta, superstição), e de obter a sua aprovação para os locais que escolhi para a cácia e o jacarandá, que tão incerto me deixam ainda.
Pretextos para revê-lo, talvez. Na verdade, a sua memória vai-se diluindo. Há cada vez mais coisas que a minha mãe e a minha irmã e o meu pai me dizem sobre ele de que eu não me lembro. E o contrário também será verdade, suponho: eles terem de fazer um esforço para acompanhar aquilo que guardei.
E, no entanto, tenho estes papéis dos Serviços Municipalizados. “José Guilherme da Silveira Couto”. O próprio nome é bonito, antigo, pleno de ressonâncias.
Lutar contra a erosão da memória – eis aquilo a que, provavelmente, se pode resumir este regresso.
Qualquer regresso.
December 6, 2012
Terra Chã, 6 de Dezembro de 2012
Vejo os portugueses indignarem-se com os bancos e tento, como sempre, encontrar outro ângulo. Para além de desconfiar das unanimidades – de todas as unanimidades –, mantenho a fé nos princípios do capitalismo, pelo menos tanto quanto os comunistas arrependidos continuam a acreditar em Marx. Mas é de facto extraordinária a voragem que os bancos – não, não é “a banca”, essa identidade abstracta: são “os bancos”, todos e cada um deles – exercem sobre a vida das famílias contemporâneas. E tanto no campo como nas cidades. Basta perder algum tempo a estudar uma conta. Juros, comissões, cláusulas, direitos, idiossincrasias – os expedientes de que os bancos se socorrem para se ressarcirem do serviço de calcular o preço de juros, comissões, cláusulas, direitos e idiossincrasias não têm fim. É um sistema viciado e vicioso. E, ou muito me engano, ou uma família de classe média com (digamos) duas contas e dois cartões de crédito de utilização vagamente parcimoniosa nunca se livra de cinquenta ou sessenta euros de descontozinhos disfarçados por mês. São seiscentos ou setecentos euros por ano. Aquelas férias na ilha do Sal que se anda a adiar há anos. Um fim-de-semana de gastos à tripa-forra no Algarve, para reactivar um casamento. Se não mesmo duas prestações do carro ou as propinas da faculdade da miúda. Comigo, já se acabou. É intervenção ao mínimo: pouco mais do que agarrar no dinheiro em Lisboa e porem-mo aqui nos Açores. Se for preciso, até compro uma daquelas carteiras com que os trolhas se passeavam antigamente, com as notas do ordenado no bolso o mês inteiro. A liberdade, repito, é a única obsessão que vale a pena nesta vida. De resto, um tipo ganha uma força inigualável no dia em que desiste de ficar rico.
December 5, 2012
Terra Chã, 5 de Dezembro de 2012
Caiu o "castanheiro grande". Leva com ele século e meio de história e uma parte das nossas infâncias. O Outono de 2012, com os seus repetidos temporais, ficará registado a negro no calendário cá de casa.
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No fundo, aquilo que penso – e isso é agora muito claro para mim – é que a liberdade é um valor muito mais importante do que a prosperidade.
Isto a propósito da discussão com o Francisco, que vê na minha defesa da parcimónia (e toda essa conversa ainda na sequência das palavras de Isabel Jonet, que lançou uma polémica de facto fundadora) um elogio da pobreza.
Não o é.
Se defendo a parcimónia, é sobretudo porque acredito – mas acredito mesmo – que uma vida mais barata nos liberta dos grilhões da economia e do Estado e do capitalismo e dos próprios humores de patrões, parceiros e clientes. E nada é mais redentor, mais refrescante e pleno de possibilidades, do que essa autodeterminação, mesmo que ela custe baixar aquilo que se entende por (oh, as convenções do tempo) “padrão de vida”.
Dizia ontem o Pedro que a liberdade é mais importante do que a felicidade. Trata-se de um jogo de palavras, em que de resto é mestre (e bem precisamos deles, neste tempo de embrutecimentos acelerados). Mas não é com a felicidade que a liberdade deve ser comparada. Liberdade, no fundo, é felicidade (ou um dos seus rostos possíveis, digamos assim).
A obsessão da prosperidade – eis aquilo de que precisamos livrar-nos. Ou pelo menos das suas expressões mais mesquinhas: a troca regular de carro, os canais de televisão que não se vêem, o próprio pão que se estraga diariamente, por aquisição em excesso.
Horror ao desperdício. Sim, a solução individual está nestas palavras. E nada alguma vez resgatou o colectivo como a soma de tenacidades individuais.
December 4, 2012
Terra Chã, 4 de Dezembro de 2012
Um dos correspondentes de um amigo meu acaba de dar parabéns à filha através do Facebook. E escreveu assim: “Vai com calma, miúda, que daqui a pouco apanhas o teu pai. Parabéns e que os teus 17 sejam inesquecíveis para ti como foram os meus para mim. Se assim for, terás um ano muito bom. Adoro-te.”
Ou seja, até os anos da filha são “sobre” ele. O egotismo é quase escandaloso.
E, porém, não duvido de que o homem de facto “adore” a filha. Qualquer centelha de afecto que as pessoas hoje em dia tenham umas pelas outras deve ser preservada – e, se para isso for preciso chamar-lhe “amor”, ou mesmo “adoração”, pois paciência.
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Declinam as buganvílias, começam a florir as camélias. Não voltarei a viver num lugar sem flores.
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Difícil tirar da cabeça as palavras de Joe Louis, citadas entretanto por Philip Roth no momento da despedida: “I did the best I could with what I had.” Fiz o que podia com aquilo que tinha. Assim de repente, não me ocorre outro lema de vida.
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Duas alunas do curso de Comunicação Social e Cultural da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Católica Portuguesa (só a apresentação cansou-me) pedem-me que as ajude num trabalho para a cadeira de Métodos e Técnicas de Investigação em Ciências Sociais. Ou, mais prosaicamente, querem que eu lhes diga o que penso sobre as razões por detrás das retumbantes audiências de “Casa dos Segredos”.
Pessoalmente, julgo que as motivações por detrás de tais números são matéria para os psicólogos, muito mais do que para um crítico de televisão (que é a qualidade em que as senhoritas me escrevem). Imagino, como leigo, que se trate de um voyeurismo puro e simples, resultado de um profundo vazio interior, ele próprio produto deste divórcio acelerado entre o homem e a coisa pública (e até a coisa privada, desde que não passível de um consumo puramente sensualista, mesmo hedonista) expresso na diluição quase total dos valores ligados à cidadania.
Di-lo um homem reconhecidamente de direita – embora, na verdade, sobretudo conservador –, pelo que não se trata apenas da habitual cartilha marxista.
De resto, isto é o que me preocupa enquanto cidadão, e é o mais importante.
Já como crítico, preocupa-me principalmente a inexorável erosão que os “reality shows” (“Big Brother” à cabeça, e depois todos os seus sucedâneos) impuseram à televisão tradicional. Por uma questão de mau gosto, de vazio crítico e de boçalização, sim. Mas também porque, historicamente, a televisão era o lugar que unia. Hoje, é o lugar que separa.
Separa, em primeiro lugar, fisicamente, porque mesmo nas famílias mais acríticas há-de haver sempre alguém que escolhe passar o serão de outra maneira, sozinho, longe dali. E separa, em segundo lugar, mentalmente, porque mesmo as pessoas que estão ali ao lado umas das outras, a ver aquilo, na verdade não estão juntas: está cada uma alienada (cá está mais uma palavra marxista, lamento muito) num lugar diferente.
Caramba: nós chegámos ao ponto em que os imbecis são cool. Os cretinos que estão "na casa" efectivamente moldam o falar – e o próprio pensar – de uma parte significativa do nosso povo.
E eu gostava de dizer que não se pode descer mais baixo do que isto. O pior é que, como a experiência já nos demonstrou, a senhora Teresa Guilherme e a doutora Júlia Pinheiro e o professor José Eduardo Moniz e toda a restante trupe despachadinha que se ocupa da programação da nossa televisão hão-de encontrar sempre maneira de fazer pior ainda.
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Da série Palavras Que Vão Reentrando No Meu Vocabulário. Debulhar.
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Os números confirmam-se e agravam-se. Só por estes dias, mais duas más notícias: os Açores reforçaram a liderança nacional na violência doméstica e há cada vez mais jovens, nestas ilhas, afundados no consumo de álcool, de resto beneficiando da falta de fiscalização da venda. O que vai ser desta terra daqui a vinte anos?
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Desde que aqui estou, já tive a certeza de que era São Bartolomeu, Santa Bárbara e até Terra Chã, neste metade por causa do complexo Serra-Charcão-Veredas-Matela e metade por razões puramente sentimentais. Esta semana acho que a freguesia mais bonita da Terceira é a freguesia das Fontinhas. Mas se calhar é melhor pôr a ilha toda de uma vez.
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«Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
A. CAEIRO»
December 3, 2012
Terra Chã, 2 de Dezembro de 2012
Mais um mau domingo de trabalho no romance. À primeira pequena coisa, disperso-me. Problemas de concentração, talvez. Uma vida ainda muito espartilhada, com demasiados campos de intervenção, demasiadas preocupações. Ou então uma paralisante incapacidade, por esta altura, de viver a solidão de que nenhum escritor pode dispensar-se. Espero que não. Para dizer a verdade, explicaria demasiadas coisas para um argumento só. Os milagres são raros.
Terra Chã, 3 de Dezembro de 2012
A razia continua. O funcho também já foi – e por toda a horta estão agora cavados buracos, início de tocas, bocas de túneis. Mas a cebola e o alho têm-se aguentado, o que me conforta um pouco. E, de qualquer maneira, o primeiro objectivo do empreendimento deste Inverno foi sempre aprender o essencial para, a partir da Primavera, poder fazer alguma coisa bem feita. Até certo ponto, é mesmo vantajoso que o coelhos apareçam agora.
Já me sugeriram de tudo. O meu pai anda doido para matá-los a tiro, mas é proibido fazê-lo aqui tão perto de casa. Vários amigos aconselham-me a colocação de laços, mas aparentemente as multas são maiores ainda. A malta da agricultura biológica falou-me na utilização de cabelo humano e na colocação de espelhos junto aos muros, o que supostamente assusta os bichos. O ti Vieira sugeriu-me pintar pedras de cal e montar um espantalho com roupa velha, prendendo-lhe um cordel estendido até à janela da casa de banho e, depois, puxando o cordel quatro ou cinco vezes ao dia.
No essencial, todos compreendem o meu desalento. Os coelhos são uma praga dos diabos. Mas também sei que muitos se divertem a imaginar-me qual Gasganete, correndo horta fora, com uma vassoura na mão, e gritando: “Hei-de-apanhá-los. Hei-de apanhá-los, nem que seja a última coisa que eu faça na minha vida.” O facto é que essa imagem me diverte tanto a mim como a eles.
De resto, a Kika sugeriu-me um cão. Há vinte anos que o ressentimento pelos cães se tornou, para mim, numa espécie de estética. Tenho, inclusive, várias crónicas apaixonadas sobre o tema, embora nunca com os pobres bichos no papel do ridículo, mas sim os seus ridículos donos. Mesmo este Verão, já aqui instalado, reafirmei à Catarina o meu velho propósito: “Entra um cão e saio eu.”
E, no entanto, de repente não me desagrada, a ideia.
Cão, para mim, vive na rua, que é onde vivem os bichos. Mas não me esqueço do Fidalgo, que durante tantos anos nos serviu. Nem dos outros todos: o Fiel, o Thiérry, o outro Fidalgo ainda, a Maggie, que eu próprio baptizei em honra de Margaret Thatcher, ainda as investidas dos moderninhos urbanos desesperadamente à procura de ternura não se haviam tornado numa das matérias da minha predilecção literária e pícara.
Um cão. A viver na rua, mas com um canil decente, aberto durante o dia para que possa passear pelo cerrado. Um cão que me sirva bem e com o qual eu possa ser justo como se é justo com um empregado leal e dedicado. Quase me encanta, agora, essa ideia.
Um cão de guarda, até por causa do malfadado tempo de penúria e voragem que vivemos. Churchill.
O que faria eu se um empregado, mesmo com nome de herói de guerra, me fosse defecar ao jacarandá?
Terra Chã, 1 de Dezembro de 2012
Terra Chã, 30 de Novembro de 2012
Daqui a pouco dou, na Universidade dos Açores, uma espécie de conferência em torno de “Gente Feliz com Lágrimas”, de João de Melo. Pediram-me para escolher um clássico e, podendo optar por “Moby Dick” ou “O Som e a Fúria”, “Ilusões Perdidas” ou “À Espera no Centeio”, preferi o grande livro açoriano do século XX: um romance duríssimo e porém com grande sucesso comercial, um exemplo de modernismo que os críticos (com o beneplácito do próprio autor, nomeadamente por via da frase de abertura, tão devedora de García Márquez) confundiram com o realismo mágico – quando na verdade a única coisa mágica em causa é a paisagem açoriana –, e um pequeno prodígio de estilo em que as visitas da tormentosa melodia do chamado fluxo da consciência reforçam, engenhosa e decisivamente, a eficácia da polifonia, aproximando o leitor do pensamento atabalhoado das personagens. E, no entanto, nem a melhor sessão conseguirá suplantar as emoções desta tarde, em que visitei a sede da Arcit Aventura, projecto de animação de rua da Caritas a que ofereci uma pequena parte da minha biblioteca. Miúdos de rua recebendo-me com aplausos, poemas e salamaleques. Adolescentes durões que, durante a tarde, enquanto ali estão, deixam de ser durões para se porem a fazer sandes para o lanche dos mais novos. Crianças que de repente se descobrem apaixonadas pela agricultura, se tornam territoriais com a horta biológica que pouco antes era de todos, delimitam o seu espaço com paletes recolhidas nas redondezas, pelos baldios do bairro social, e depois cumprimentam garbosamente as vizinhas, conhecidas das mães, sugerindo que passem lá pela a horta a “apanhar uma salsinha”. Um homem que consiga não se comover com tais coisas terá, para sempre, a minha admiração e o meu ódio. Irei à Universidade sempre que me convidarem. Mas, quanto àquelas crianças, se não me convidarem convidar-me-ei eu próprio a visitá-las de novo. No fundo, gosto mais de pessoas do que de literatura. Se é essa a minha fraqueza ou a minha força, quanto a isso não tenho certezas.


