Joel Neto's Blog, page 75
January 16, 2013
Terra Chã, 16 de Janeiro de 2013
Nenhum tempo para isto hoje, infelizmente: demasiado empenho, para lá dos textos para os jornais, nesse novo projecto online, feito a dois, e a que decidimos dar o nome A Gente Sabe. Planos mirabolantes para ele, por esta altura. Até que ponto os terceirenses serão de facto mobilizáveis?
January 15, 2013
Terra Chã, 15 de Janeiro de 2013
Começo a ter esperança de efectivamente comer batatas desta horta. Se não as afogar em sulfato, isto é.
Menos nevoeiros, por favor – ouvi, ó Providência, o humilde grito que ecoa do Atlântico.
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A Catarina, que tem andado a decorar frascos com tecidos, rendas e papelinhos, acaba de escrever nos rótulos de duas garrafas vazias: “Licor de Amora” e “Licor de Mel”. Não temos nenhum deles cá em casa. Nunca os tivemos e nem sabemos onde arranjá-los. Mas foram as palavras que lhe soaram melhor, “amora” e “mel” – e, agora, são esses licores que arranjaremos, custe o que custar. Algum determinismo pode ser uma coisa particularmente reconfortante numa vida a dois. E uma certa dose de sentido de humor também, evidentemente.
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Da série Palavras Que Vão Reentrando No Meu Vocabulário. Inticar.
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Novo pedido de conferência na Universidade dos Açores, desta vez sobre a minha relação com a transcendência. Enfim, com Deus. Aceitei, como sempre. E, como sempre, gelei no momento imediato. Como explicar a um monte de desconhecidos isto de ser convictamente ateu e cristão ao mesmo tempo – e depois, ainda por cima, produto de uma educação protestante, tão respeitável quanto desdenhada na Terceira dos anos 80? Como não transformar a conferência num ajuste de contas com a terra, com as tradições familiares, com Deus? Crescer: destas coisas se faz, enfim, o desiderato fundamental. Nesse sentido, não há barreira que esta mudança se venha demonstrando incapaz de derrubar. Tudo está maravilhosamente quando acaba bem.
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Tenho saudades de ir às Fontinhas. De passear pelo Pico Celeiro e de subir à Serra do Cume.
January 14, 2013
Terra Chã, 14 de Janeiro de 2013
Encontra-se o país em suspenso por causa de um cão que matou uma criança. Um bicho arraçado de pit bull, que aparentemente os proprietários faziam conviver no dia a dia com o bebé de dezoito meses que ele veio a matar. Argumentos a favor e contra o abate do cão. E, extraordinariamente, os argumentos contra levando a dianteira, por via do provimento provisório dado pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja a um pedido da Associação Animal.
A equiparação entre animais e pessoas é tão absurda que qualquer tentativa de desmontá-la esbarrará inevitavelmente na ignorância do crente. Mas não deixa de ser curioso que muitos dos milhares – dezenas de milhar, na verdade – de portugueses que subscreveram a petição da Animal, e com os quais já vieram solidarizar-se mais milhares ainda, sejam os mesmos que se apressam a condenar a NRA sempre que, algures num recanto da América, um louco desata aos tiros numa escola.
Para o doutor Louçã – ah, claro, o doutor Louçã tinha de ser um dos mais infames subscritores da petição –, portanto, um tipo não devia sequer poder ter uma caçadeira em casa, mesmo que apenas para ir aos pombos, porque entretanto há armas utilizadas para matar pessoas; já um cão de uma raça apurada como arma de ataque, e aliás tantas vezes utilizada para as lutas entre gangues e até para o assalto a pessoas na rua, deve ser protegido como um coitadinho – e essa bonomia deve alargar-se, inclusive, a um cão que já tenha matado (e que, aliás, nunca mais poderá cheirar sangue na vida), limitando-se as autoridades a prender os energúmenos que lhe respondem por donos.
Mas é claro que os energúmenos que lhe respondem por donos têm de ser presos – e, aliás, condenados exemplarmente. Mas o bicho, ou deve ser abatido, ou então não pode ser outra coisa senão posto num zoológico, a vociferar atrás das grades. É aí o lugar das bestas, pelo menos enquanto não houver uma reserva natural para elas se poderem comer à vontade umas às outras: no zoológico. E os pit bulls são umas bestas criadas como bestas para se comportarem como bestas.
De resto, começa a tornar-se inútil este esforço que faço para pensar pela minha própria cabeça. Basta conferir como pensam o doutor Louçã e os seus zombies e, acto contínuo, pensar rigorosamente o contrário, que as hipóteses de estar certo são enormes.
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Da série Palavras Que Vão Reentrando No Meu Vocabulário. Enriçar.
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A entrevista da Susana Neves ao JL terá sido concedida verbalmente ou por escrito? Espero que por escrito. Presunção de tal ordem, se não fosse um exercício literário, afastar-me-ia de imediato do seu “Histórias Que Fugiram das Árvores”, que tanto me interessou de imediato. O melhor é encomendá-lo já, antes que me arrependa.
January 13, 2013
Terra Chã, 13 de Janeiro de 2013
Floriu, enfim, a erva azeda. A luz ao fundo do túnel é a Primavera. Voltar para casa durante o pior Inverno em muitos anos foi como aprender a nadar caindo à água. Estamos imunizados. Mas a claridade far-nos-á bem.
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As ucranianas, loiras e belas, continuam o seu périplo reivindicativo, despindo-se em frente a tudo aquilo que consideram ser um monumento atentatório aos direitos das mulheres. Este fim-de-semana, o inimigo eleito foi o Vaticano. Pois talvez tenha chegado a altura de dizer às raparigas da Ucrânia que nós, aqui na Terceira, também conseguimos ser extremamente machistas. Impõe-se um protesto.
January 11, 2013
Terra Chã, 12 de Janeiro de 2013
Terra Chã, 11 de Janeiro de 2013
A história é divertida, mas não deixa de ser sintomática. Os vídeos da Samsung, em que vários bloggers de moda formulam os seus desejos para 2013, definem o tempo que vivemos por três razões: porque correspondem à facilidade com que qualquer instituição, marca ou pessoa produz um momento de televisão e o distribui para centenas de milhar de consumidores; porque evidenciam a urgência que, hoje em dia, quem pretenda vender alguma coisa sente de efectivamente produzir esses pequenos momentos de televisão, caso contrário “simplesmente desaparece”; e porque deixam a nu toda a acefalia que, em resultado dessa pressa, se apoderou do espaço público, com epicento na TV, alimentação ao minuto nas redes sociais e municiamento permanente por parte das cada vez mais – e mais amadoras – agências de comunicação e publicidade existentes.
Na verdade, também eu pensei que os vídeos, protagonizados por betinhos de falar afectado e tonto a debitar puerilidades como se falassem de energia atómica – chega a dizer uma: “Em 2013, gostava de comprar uma mala clássica da Chanel. Acho que era uma conquista pessoal, comprar uma mala com o meu dinheiro” – eram propositadamente parvos, e portanto destinados a capitalizar a “má publicidade”, capaz de atingir números que a boa nunca atinge. Mas, afinal, não: foi incompetência do departamento de comunicação mesmo.
De resto, digo-o eu, que vejo televisão todos os dias, sou assíduo das redes sociais e tenho blogs há dez anos: o profissionalismo ainda é (e será) essencial. E, se em algum momento tendo a esquecê-lo, lá estão, ainda presentes, as imortais palavras da personagem de Laurence Fishburne para a de Jude Law no tão injustamente ignorado “Contágio”, de Soderbergh: “You’re not a journalist, you’re a blogger.”
No dia em que o público já não for capaz de distinguir o trabalho do hobby, sim, a porca torcerá o rabo. A minha dúvida é se não teremos já chegado aí – e há muito.
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O que me diverte, no falar dos queques, é a maneira como eles passam o mais ao de leve possível por cima das palavras, sobrevoando-as quase sem lhes tocar, como se elas pudessem sujá-los.
Mas não, não é “diverte-me” a palavra: é “irrita-me” mesmo.
Não gosto de queques. Não gosto de que falem aos berros, não gosto das suas convençõezinhas quotidianas, não gosto do seu complexo de Édipo, não gosto do seu sentimento de superioridade.
Acho-os, em regra, insuportáveis. E tontos. E inúteis. E muitas vezes desumanos, na verdade. E até, em boa parte, responsáveis pela crise que vivemos.
A fragilidade é minha, naturalmente. Mas há certas confissões que um homem que se enfia na Terra Chã, a olhar para o mundo e a escrever, já tem o direito de fazer.
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Este ano não parei dois minutos a olhar para os nomeados dos Óscares. Estou quase curado.
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Ah, sim, claro: o meu maior medo é o de um dia me transformar num chato. Já o fui muito.
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Despacho os textos dos jornais, e depois despacho os textos deste mesmo diário, e depois ainda hei-de despachar a releitura de dois capítulos do romance – em cada instante ansioso por conseguir oferecer-me uma horinha e poder concluir a arrumação da garagem.
Foi, durante mais de trinta anos, a casa de despejo da família toda. Ontem, deixou de sê-lo. Durante um dia, tirámos de lá quase tudo, eu e o Chico (o que eu devo ao Chico, por esta altura, já é incontável): cadeiras partidas e velhas arcas de família cujas chaves estão perdidas há duas gerações, restos de mobiliário de jardim e até lixo que eu próprio acumulara, nos quase dez anos – dez anos, caramba – que levo como proprietário.
E, agora, só me apetece passar tardes inteiras ali, com o rádio aceso, a lixar prateleiras e a encabar ferramentas e simplesmente a fumar cigarrilhas. Já não é sequer uma garagem, a minha garagem: é de novo uma loja, como foi em tempos (chegou a albergar, segundo me dizem os vizinhos mais velhos, três pequenos espaços comerciais em simultâneo: uma barbearia, um talho e uma mercearia).
O meu posto de comando. A minha consola de comando, com um espaço para a arrumação, outro para a bricolage, outro para a agricultura e até outro de lavandaria, tarefa minha (duas refeições na mesa a horas, sem mexer uma palha, têm o seu preço).
Qualquer dia ponho lá um router, ligo o computador e a SportTV Golfe, e só me falta ficar para dormir. O melhor é anotar a ideia, para o caso de um dia nos tornarmos um daqueles casais reformados cheios de raivas miudinhas e ressentimentos.
January 10, 2013
Terra Chã, 10 de Janeiro de 2013
No fim, pegámos nas sobras, nos móveis e nos acessórios repetidos, no que se desactualizou e no que simplesmente não cabia, e fomos entregar na loja do Liduíno Borba.
Podíamos ter distribuído tudo ao desbarato pela freguesia, entre os necessitados (que os há muitos, infelizmente). E também podíamos ter colocado tudo no lixo, segundo o mui humano prurido de que aquilo que já não serve para nós também não será de utilidade suficientemente digna para os outros. Mas não: escolhemos o que nos pareceu de facto reutilizável e, pela primeira vez na vida, fomos pô-lo à venda numa loja de segunda mão.
Vivemos um tempo de pobreza, sim – e exercer a humildade perante ela é o mínimo que podemos fazer. Mas há mais. Conservar o valor residual dos objectos, permitir aos necessitados (e mesmo aos curiosos, aos coleccionadores ou aos simples utilitaristas) dignificarem-se pagando esse valor residual por aquilo de que precisam – tudo isso são, mais do que simples acções de solidariedade auto-redentora, gestos de respeito para com o trabalho e o seu valor. E, por muito que os esquerdistas se zanguem comigo, eu continuo a acreditar que, com um pouco mais de ética de trabalho, teria sido um nadinha mais difícil chegarmos ao ponto a que chegámos.
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Admiro a bonomia dos terceirenses perante um chato. Se um chato se lhes cola aos fundilhos, a primeira coisa que avaliam é se esse chato, apesar de tudo, tem interesse. Sinal da curiosidade e do desejo de convívio que tão bem caracteriza o povo desta ilha, naturalmente.
Digo-lhes: “É um chato. Avisto-o na rua e tenho logo de atravessar para o outro lado, se não prende-me durante horas.” Respondem-me: “É, ele fala muito. Mas é um homem interessante.” Para mim, infelizmente, um chato é um chato, mesmo que tenha escrito o “Dubliners”. Sou pior pessoa.
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Da série Palavras Que Vão Reentrando No Meu Vocabulário. Valhacas.
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Diz o Eduardo Dias, botânico reputado, numa entrevista ao “Diário Insular”: “O toiro é um elemento simbólico da natureza. (…) Tal como é entendido na cultura da Terceira, é um animal nobre e puro, o que lhe advém da forma como é criado, livre e selvagem, protector da manada e do seu território. Ao percebermos e respeitarmos essa cadeia de valores, expressos na maneira como lidamos com a tourada e com o toiro, estamos a desenvolver consciência sobre a natureza e a construir o nosso respeito.”
Não poderia estar mais de acordo. Mas quer-me parecer que isto já será demasiada cultura para um lisboeta perceber. Vou testá-lo no Facebook.
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Sentar-me ali, na cozinha, no mesmo lugar onde José Guilherme se sentou a vida inteira. Abrir o jornal da terra e lê-lo de fio a pavio, enquanto a Catarina prepara o jantar. Acabar de comer e continuar ali sentado, a ler ainda: o resto dos jornais do continente, o livro em curso, contos de um amigo que me pede opinião.
A televisão desligada até não ser mais possível.
Esta cozinha: nunca tive melhor varanda sobre o mundo do que ela. A distância é de uma sabedoria quase contagiante.
January 9, 2013
Terra Chã, 9 de Janeiro de 2013
Dizer que as mulheres conduzem mal tornou-se vulgar. Mas não a explicação do fenómeno. E eu, continuando à procura dela, tenho vindo a gerar hipóteses cada vez mais sofisticadas, e provavelmente cada vez mais próximas da verdade também.
Ainda vou fazer dinheiro com isto.
Por esta altura, ando à volta de uma fórmula que combina factores históricos com factores biológicos de natureza somática. A estes últimos, não é difícil percebê-los. As mulheres conduzem mal porque, tão dotadas do tal sexto sentido inacessível aos homens – a intuição, tudo bem, a intuição –, são porém totalmente destituídas do sétimo: a georeferenciação (está bem, ainda estou a trabalhar nesta palavra).
Uma mulher nunca sabe muito bem onde está. Nem onde estão os outros. Nem por onde vão passar as coisas que se movem à sua frente. Nem em que momento aparecerá no seu campo de visão outra que apitou ao longe. É um problema que junta geometria (é geometria?) e concatenação. E não é culpa delas que não o dominem. Nem sequer se lhes pode ensinar isso racionalmente: simplesmente não conseguiriam aprendê-lo – e é um perigo.
Mas a pièce de résistance da minha teoria é a introdução do factor histórico. As mulheres conduzem mal porque conduzir também é, para elas, uma disputa territorial. O exercício de um direito. Uma conquista feita com suor, e de resto ainda não totalmente consolidada. Uma guerra travada todos os dias. E, portanto, não é um barbudo que vem ali caminhando junto ao muro sem passeio, ainda por cima com aquele ar assustado de passarinho com mau trânsito intestinal, que as levará a tomarem um pouco mais o eixo da via, para evitar uma colisão.
Se o barbudo tem medo, que suba o muro.
Enfim, é um trabalho em curso, a tese. Mas hei-de concluí-la, assim não seja atropelado um dia destes, durante as caminhadas matinais.
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A Sociedade Portuguesa de Autores rejeitou o Acordo Ortográfico. Tenho orgulho nos tantos anos de relação que temos – e, aliás, em ser seu sócio cooperador. Hoje, sou um homem SPA. Raras vezes me apetece ser Um Homem Seja O Que For.
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Mais notícias de encerramentos de pequenos negócios por via do novo sistema de facturação imposto pelas Finanças, e em particular devido ao custo do computador adequado ao software obrigatório. Na Praça, aparentemente, há uma razia. Quem me dera ser dono da empresa que fornece esse computador.
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Da série Palavras Que Vão Reentrando No Meu Vocabulário. Araçais.
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Anoto na agenda: dia 20, concerto na Igreja da Sé a pretexto do vigésimo aniversário do respectivo órgão de tubos. Tento investigar os nomes dos instrumentistas e logo me deparo com uma série de chatices: os responsáveis pelo órgão acusados de favorecer um determinado lobby, professores do Conservatório zangados e outros até, segundo percebi, exilados. Da série Sarilhos no Paraíso, obviamente. De resto, se há algo com que podemos sempre contar, nesta espécie, é que até as mais insignificantes coisas podem ser usadas como meio de um homem colocar a pata sobre o pescoço do outro. E um órgão de tubos, naturalmente, não é tão insignificante coisa quanto isso – como esperar dele a concórdia?
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“Quem está nas margens quer estar no centro”, dizia-me ontem a Joana, depois de eu a congratular pela coragem (e pela liberdade de espírito) e de lamentarmos juntos a crescente ausência de marginalidade na literatura portuguesa. “Quem está nas margens quer estar no centro.” É mesmo isso.
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Chego da caminhada matinal, abro as persianas, uma a uma, corto o pão e sirvo-o com queijo fresco barrado com um pouco de massa de malagueta – o pequeno-almoço dos campeões, como o comeram diariamente os meus antepassados. Cheira intensamente a café puro, e o sol inunda de repente a fachada principal da casa, como que pedindo desculpas pela ausência dos últimos dias. Não há ninguém doente cá em casa, as finanças estão tão ameaçadas como as do próximo português, gestos de ternura vão sendo trocados com um pouco menos de parcimónia do que a idade aconselharia. Está tudo bem na Terra Chã – tudo tão bem quanto alguma vez esteve em qualquer lugar do mundo, em qualquer idade, em qualquer estágio de desenvolvimento intelectual e criativo e até (talvez) humano. Depois olho pela janela da sala de trabalho e verifico, ao fundo, que as batatas começam também a elas a titubear, depois de mais uma noite de ventania. Lentamente, acendo o computador, empurro compromissos para trás e para a frente, concluo um texto que trazia alinhavado desde ontem à noite e saio para jogar golfe. O diabo que carregue a agricultura – pelo menos por hoje.
January 8, 2013
Terra Chã, 8 de Janeiro de 2013
Gonçalo Bulhosa recuperou o Paulo José Miranda, meio maldito e meio espírito livre, que passa enfim de pedinte em estações de autocarros a uma espécie de Benno von Archimboldi lusitano. Joana Emídio Marques chamou ao José Luís Peixoto, numa discussão pública, “uma das maiores fraudes da literatura portuguesa contemporânea”. E, ainda não há muito tempo, José Riço Direitinho colocou em causa o Gonçalo M. Tavares, denunciando-o como um pastiche relativamente modesto de uma certa literatura centro-europeia.
E só num segundo momento me importa saber se o Miranda tem de facto a dimensão que agora ganhou, ou mesmo se as acusações da Joana e do Direitinho têm a mínima razão de ser. Para já, apetece-me celebrar que haja, enfim, alguma discórdia no meio literário nacional, durante demasiados anos armando em rebanho, afundado no lodaçal das unanimidades e disfarçando o pensamento único de “social skills”.
Sim, este meio precisa de discórdia e de tensão. Desde logo, porque é disso que precisa a literatura. A criatividade e até o rasgo, neste tempo de “técnicas de escrita”, tornaram-se demasiado fáceis de forjar.
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Pormenorizadíssima lição sobre hidro e bioponia, ontem, pela mão do amigo António Gomes. Muita aprendizagem e duas conclusões veementes: a salada, para além de uma interminável aventura no domínio da botânica, pode ser um prato de facto saboroso; e os açorianos continuam com tendência para virar costas ao que é bom, rejeitando por exemplo a beldroega, a vagem de ervilha e – pasme-se – a fisália, que aparentemente nunca merecerá outro nome, aqui, senão o silvestre “tomates de capucho”. Desperdícios.
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O meu herói chega, enfim, ao cinema, com o filme “Flight” (de Robert Zemeckis). Vem em negro e dá agora pelo nome de Whip. Mas é ele. No essencial, é ele: Robert Piché – e eu nunca esquecerei esse dia em que nos juntámos na cobertura do Hotel Éden, nos Restauradores, para uma entrevista que só a minha fascinação (e, portanto, a minha incompetência) impediu de ser brilhante (ou sequer boa). Quem me dera que ele fosse uma personagem e a tivesse inventado eu.
January 7, 2013
Terra Chã, 7 de Janeiro de 2013
Caminhada matinal com duas paragens adicionais. O carpinteiro do Cantinho, em frente a cuja oficina passo todos os dias, recebeu-me com um sorriso e pôs-se à minha disposição para, quando eu entender, me dar uma ajuda com umas furações mais delicadas. E a dona da Padaria de São Mateus ofereceu-nos um pão de trigo – talvez o melhor da Terceira, ou pelo menos um forte concorrente para o da Padaria Lajense, de Adelino Amaral –, porque afinal teve de fechar a loja, passando a fornecer apenas as mercearias. Motivo: o malfadadíssimo novo sistema de facturação imposto pelas Finanças (sempre ele), incluindo o computador para que ela não tem dinheiro. A moralização da fiscalidade, sendo urgente, continua a atingir os do costume. Começo a ter dúvidas sobre o que ficará depois dela.
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Reparei que já não faço uma conversão mental entre euros e escudos. Os euros são-me agora suficientes para perceber se uma coisa é cara ou barata. Não sei quando começou isto, mas não pode ter mais de dois ou três anos. Afinal, uma década bastou. Não estou tão acabado quanto isso.
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Email trocado com o F., a insinuar a feitura de pazes. Recebeu-o bem e aprazámos encontro lisboeta para Fevereiro. Portou-se mal comigo e portei-me mal com ele eu. Portou-se mal ele primeiro, mas também me deve menos do que eu lhe devo. Estamos quites. E velhos para rancores.
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Ultrapasso este mês, se não me falham as contas, a metade do tempo que José Guilherme viveu. Que significado terá isso, exactamente?
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“Se não lhe encontras a ordem, a tua história é o caos.” Vivo muito melhor desde que o defini como a minha suprema máxima. Ser-me-á tão útil como a que me orientou até aqui: “Estúpido não é quem não sabe, mas quem não aprende.” Pensando bem, o melhor é fazê-las conviver.
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Hoje vêm cá jantar os Pechinchinhos. Vou fazer uma poncha.


