Joel Neto's Blog, page 73
February 4, 2013
Terra Chã, 4 de Fevereiro de 2013
Sala a abarrotar ontem à noite, no Pequeno Auditório do CCCAH, para assistir a “A Vida de Pi”. Veremos se pelas razões certas (e “veremos” porque a euforia foi tanta que só conseguimos bilhetes para hoje): depois de “Cloud Atlas”, seria crueldade a mais uma segunda malickique no mesmo mês. Para já, celebremo-lo: os angrenses vão-se reaproximando do cinema em sala. O que vale per si, mas também como indicador de uma nova predisposição para a cultura pop em geral, e que não apenas a etnográfica (a face luminosa da moeda) ou a pimba (a face negra, naturalmente). Há que aproveitá-la.
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Espalha-se agora por toda a Internet, e-mails incluídos, o protesto do dia: caricaturas de Vítor Gaspar, Paulo Portas, Passos Coelho e Álvaro Santos Pereira no papel dos Irmãos Metralha. O primeiro dado a reter é que “o Álvaro”, o outsider a quem as corporações, os grupos de interesses e os lobbies vaticinaram vida curta no Ministério da Economia, deu afinal a volta à situação, a tal ponto que os cartoonistas já o consideram um membro do núcleo duro do Governo. E o segundo é que a natureza dos protestos políticos caseiros, neste tempo de mimetismos eufóricos, não abranda perante as evidências, ou sequer inflecte de acordo com as inflexões dos próprios acontecimentos: prossegue simplesmente furiosa, se preciso for com recurso a cartoons e a frases feitas e a insultos engendrados há um ano ou mais. Em regra, com infelicidade o verifico, não há em Portugal uma consciência política: apenas a constatação de que alguém nos foi ao bolso, adicionada a uma raiva generalizada que tanto podia ser canalizada contra o Governo, como contra um árbitro que roubasse um penálti ao Benfica. O que me seria angustioso de conferir, se não se desse o caso de já o ter conferido e escrito há muito. E de daqui a muitos meses, independentemente da situação política, financeira, macro e microeconómica, tais palavras continuarem a fazer o mesmo sentido de hoje.
February 3, 2013
Terra Chã, 3 de Fevereiro de 2013
A natureza já respira de maneira diferente. O chilreio dos pássaros adquiriu outras tonalidades. Há uma nova luz sobre as plantas e as árvores. Muitas delas começaram já a florir – e agora já não apenas como se resistissem (como acontece com as camélias ou as magnólias). Está aí à porta a Primavera. As pessoas sorriem ao deixar passar alguém na passadeira. O pior já passou.
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Muita gente aos tiros, no mundo da literatura portuguesa, por causa da sucessão à cabeça de uma revista literária (entre outras minudências). Não era disto que eu falava quando falava em ausência de debate, por oposição a um excesso de unanimidade. Eu falava de ideias. Estamos a discutir pessoas, quando muito factos. A esclarecer no Correntes D’Escritas.
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Um diário é menos diário quando pelo menos uma parte dele é tornada pública, como acontece com este via imprensa e internet? Vergílio passou a condicionar-se quando publicou o primeiro Conta-Corrente? A, por exemplo, velar factos e nomes? A, noutras circunstâncias, escrever apenas porque sim? Porque é que eu, na entrada imediatamente acima, tive o impulso de falar apenas na “sucessão à cabeça de uma revista”, se todos os envolvidos são meus amigos e têm nomes?
February 2, 2013
Terra Chã, 2 de Fevereiro de 2013
Não. Nem vedações, nem cabelo humano. Nem pedras pintadas de branco, nem espantalhos. Nem extractos de alho, nem petróleo. Nem cães, nem furões. Nem laços, nem espingardas.
Nem fufu, nem gaitinha.
Vai ser com muros. Em pedra. De um metro e oitenta de altura. Estes cabrõezinhos, se quiserem continuar a comer-me a horta, vão ter de aprender alpinismo.
O problema é que, se calhar, ainda serão capazes disso.
February 1, 2013
Terra Chã, 1 de Fevereiro de 2013
Um dos meus companheiros de golfe terceirenses, embora não dos mais frequentes, vendeu tudo e pôr-se a andar para o estrangeiro. Noticia agora a imprensa, menos de um mês depois da partida, porquê: terá dado um desfalque superior a um milhão de euros – eventualmente muito superior – na base americana, de que era contabilista.
Não falta pela ilha quem o tenha já eleito como herói. “Roubar aos americanos não é pecado”, diz-se que dizia um velho padre (provavelmente fictício), durante as confissões. De resto, as efabulações já aí vão imparáveis. O J. foi para um país cheio de sol, onde vai comprar uma fazenda, contratar uma série de indígenas para a segurança e viver para sempre como um rei. O J. vai passar o resto da vida a fugir, porque a CIA não lhe perdoará e aquilo que ele tem de mais garantido é um acidentezinho. O J. diz que vai para um país, mas na verdade vai para outro completamente diferente, mais distante e belo. O J. é um ladrão de casaca. O J. é um justiceiro. O J. é um actor de Hollywood. Que bonito que é o J.
“Parecia-me tão bom rapaz”, digo eu. “E era”, responde-me um. “Era e é!”, corrige o outro. Mal posso esperar para voltar ao clube de golfe. Os romances estão todos lá escritos. Só falta, como dizia Cardoso Pires, passar para o papel.
January 31, 2013
Terra Chã, 31 de Janeiro de 2013
As magnólias floridas trazem todo um novo encanto a Janeiro. É a primeira vez desde 1992, salvo erro, que passo aqui este mês. Tem os seus contratempos. Mas as magnólias, meu Deus – as magnólias!
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Quem joga golfe sabe-o bem: a banalidade mais risível entre os golfistas de fim-de-semana é aquele instante em que, no buraco 13, o tipo que vem a jogar mal exclama bem alto “Já sei o que estava a fazer de errado!” Provavelmente, é o caso. Mas ontem, no 17, pareceu-me descobrir aquilo que há uns três anos me anda a destruir o backswing, o swing em geral e o próprio gosto do melhor jogo do mundo: um descontrolo do cotovelo direito ao longo do upswing, que acaba por contaminar o comportamento de todos os elementos do downswing até ao contacto. E é verdadeiramente desgraçado que, por esta altura, tenha tão pouco tempo para jogar. Ou muito me engano, ou não conseguirei persuadir-me a esperar uma semana inteira até jogar dezoito buracos inteiros de cotovelo colado ao fígado. Onde é que eu tenho a minha agenda?
January 30, 2013
Terra Chã, 30 de Janeiro de 2013
E, no entanto, de cada vez que se fala no RSI logo a conversa degenera no clubismo mais primário, como se tudo pudesse sempre resumir-se a um Sporting-Benfica. Ser-se “a favor do RSI” é ser-se “de esquerda”, o que aparentemente quer dizer votar no Partido Socialista e envergar a sua camisola em todas as discussões que aparecerem. Pelo contrário, ser-se “contra o RSI” é ser-se “de direita”, o que significa votar no Partido Social-Democrata e torcer pelas camisolas cor-de-laranja. Este, a maior parte das vezes, é o lado do Mal, enquanto o outro é o do Bem. Mas também pode ser ao contrário. E eu só lamento que, sempre que se aborda o tema do Rendimento Social de Inserção, os coloquiantes se preocupem todos, em exclusivo, com o papel desempenhado na equação pela sociedade (ou seja, se a sociedade efectivamente cumpriu o seu dever de ajudar), e nunca com os efeitos que a acção da sociedade tem na vida das pessoas. Em suma, que nunca os coloquiantes se preocupem com as pessoas propriamente ditas – eis o que lamento. O que um homem de bem deve querer acautelar, posto perante este problema, é que as pessoas efectivamente tenham uma oportunidade. Que um miúdo que nasça numa família infelizmente apanhada em tais malhas disponha de facto de uma oportunidade de suplantar a condição que os pais, por não poderem legar-lhe outra, lhe legaram. E isso, para usar uma imagem ainda há pouco tempo muito acarinhada pelos mesmos que hoje defenderão a distribuição de RSI ao desbarato, faz-se com solidariedade, não com caridade. Faz-se ajudando quando é preciso e depois criando condições de emancipação. O RSI, como é aplicado nos Açores, não produz uma só condição de emancipação. Ajuda quando é preciso, mas depois continua a "ajudar" (fazendo, na verdade, o contrário), empurrando as pessoas para as margens e condenando-as em definitivo à pobreza. Isto, infelizmente, não está em jogo quando o Benfica e o Sporting entram em campo.
January 29, 2013
Terra Chã, 29 de Janeiro de 2013
Às vezes apetece-me usá-lo como adjectivo: “RSI”. Cruzo-me quase todas as manhãs com um grupo. Pela mímica, a avó tem trinta e nove anos, a miúda dezanove e o filho desta seis. Não trabalham, claro: vêm os três na gritaria pela rua abaixo, a miúda vira à esquerda para ir levar o rapaz à escola e a avó (mãe dela) à direita para ir comprar pão e sacudir a neurose. Cheira intensamente a tabaco ainda vêm a cinquenta metros de distância, e nenhum deles trabalha ou trabalhará. A mais velha há-de ter feito uns biscates até descobrir o RSI, a do meio não chegará a fazê-los, o miúdo nem sequer concebe a ideia. Sim, é isso: a não ser que consiga mover a montanha que de repente apareceu à sua frente, o miúdo nem sequer concebe a ideia do trabalho. Não sabe o que é, como se faz, como isso pode dignificá-lo, ou sequer para que serve. Importar-lhe-á talvez comprar um escape ruidoso para o Opel Corsa com ailerons, um dia. Mas talvez as assistentes sociais se cheguem à frente com algum, para compensar a exiguidade do subsídio. RSI. Às vezes, nos dias mais azedos, apetece-me usá-lo como adjectivo: “Os RSIs.” Felizmente, lembro-me sempre de que fomos nós quem os transformou nisso em que se transformaram. E que somos nós quem não lhes está a dar a mínima hipótese. Pobre miúdo: que lodo paralisante e inultrapassável – que sina e que fado e que desespero e que fatalidade deve ser nascer um clã apanhado em tais malhas.
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Vejo desfilar pelo Facebook uma série de imagens diferentes de uma mesma garrafa de vinho. No rótulo, duas palavras “Mau Feitio”. Aparentemente, um qualquer génio do marketing lembrou-se de explorar comercialmente o orgulho que os portugueses têm no seu mau feitio e, ao mesmo tempo, a necessidade que os amigos deles têm de ajustarem contas com os seus humores, embora atenuando de imediato a ousadia com um sorriso. E é um sucesso, ao que parece. A mim, que provavelmente configurarei o tipo de pessoa a quem se poderia oferecer uma tal garrafa, gela-se-me a espinha só de pensar. Nem sempre me envergonho do meu mau feitio, mas a maior parte das vezes envergonho-me. Seguramente, não me orgulharei nunca dele. O mau feitio é uma prepotência, um egoísmo, uma injustiça e uma violência em geral. E que alguém possa orgulhar-se do seu é só sinal do ponto a que chegou a nossa urgência de autolegitimação.
January 28, 2013
Terra Chã, 28 de Janeiro de 2013
Lido ontem à noite, no Torga: "E é difícil, sobretudo, porque o pântano tem baixios onde, de pés enterrados no lodo, se pode simular a flutuação." E mais à frente ainda: “Dei-lhe toda a razão e um comprimido.” Sim, há-de ser algures aqui pelo meio.
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Muita dificuldade em compreender a impossibilidade de se comprar, nesta altura, “Famílias da Terceira”, o volume que reúne o monumental trabalho de mapeamento genealógico da ilha, empreendido ao longo de quarenta anos – de quarenta anos, meu Deus – por Jorge Forjaz. Esgotou-se e ninguém se esforçou por reeditá-lo. E eu gostava de acreditar que se trata de simples ressentimento político, em virtude de Forjaz ter sido um dia director regional pelo PSD. Provavelmente, não chegamos sequer aí: será apenas desinteresse e incultura. Isso e uma certa inclinação para gastar os subsídios nas bandas filarmónicas, que dão mais votos, e nos concertos de cantores continentais com versos em rima cruzada e a experiência de vida de uma anémona. Pois paciência. Se calhar, é o que merecemos.
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Será tão estúpido entregar agora a vitória pela margem mínima ao Governo como era, há dois meses, entregar-lhe a derrota por goleada. A missão é ciclópica, demora, tem avanços e recuos e dificilmente se deixa decifrar na generalidade. Sabe bem, em todo o caso, ver engolir em seco quem, mesmo tendo dois palmos de testa, se dedicou em exclusivo a agitar as massas, na presunção de que a flutuação da sua conta à ordem era prova mais do que suficiente da imundície alheia. Até os tempos mais duros podem ter as suas anedotas. De resto, estão aí à porta os recibos de vencimento de Janeiro, para podermos refazer o balanço todo. Zangar-nos-emos de novo. E ainda bem que conservamos essa capacidade. Talvez nada disto se resolva. Mas sem tensão é que não se resolveria de certeza.
Terra Chã, 27 de Janeiro de 2013
Lido ontem à noite, no Torga: "E é difícil, sobretudo, porque o pântano tem baixios onde, de pés enterrados no lodo, se pode simular a flutuação." E mais à frente ainda: “Dei-lhe toda a razão e um comprimido.” Sim, há-de ser algures aqui pelo meio.
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Muita dificuldade em compreender a impossibilidade de se comprar, nesta altura, “Famílias da Terceira”, o volume que reúne o monumental trabalho de mapeamento genealógico da ilha, empreendido ao longo de quarenta anos – de quarenta anos, meu Deus – por Jorge Forjaz. Esgotou-se e ninguém se esforçou por reeditá-lo. E eu gostava de acreditar que se trata de simples ressentimento político, em virtude de Forjaz ter sido um dia director regional pelo PSD. Provavelmente, não chegamos sequer aí: será apenas desinteresse e incultura. Isso e uma certa inclinação para gastar os subsídios nas bandas filarmónicas, que dão mais votos, e nos concertos de cantores continentais com versos em rima cruzada e a experiência de vida de uma anémona. Pois paciência. Se calhar, é o que merecemos.
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Será tão estúpido entregar agora a vitória pela margem mínima ao Governo como era, há dois meses, entregar-lhe a derrota por goleada. A missão é ciclópica, demora, tem avanços e recuos e dificilmente se deixa decifrar na generalidade. Sabe bem, em todo o caso, ver engolir em seco quem, mesmo tendo dois palmos de testa, se dedicou em exclusivo a agitar as massas, na presunção de que a flutuação da sua conta à ordem era prova mais do que suficiente da imundície alheia. Até os tempos mais duros podem ter as suas anedotas. De resto, estão aí à porta os recibos de vencimento de Janeiro, para podermos refazer o balanço todo. Zangar-nos-emos de novo. E ainda bem que conservamos essa capacidade. Talvez nada disto se resolva. Mas sem tensão é que não se resolveria de certeza.
January 27, 2013
Terra Chã, 27 de Janeiro de 2013
Acordo com a Antena Um/Açores aos berros. “Sem saudades na lembrança/ eu disse adeus/ à terrinha e mais ao lar/ (…) Adeus, aldeia/ que eu levo na ideia/ nunca mais voltar.” Não discutirei a selecção musical. O facto é que um dia se cantou isto. E esse, sim, há-de ser o mais brutal retrato do Portugal salazarista: o palco de uma tal devastação que as pessoas se despediam da sua própria terra com um misto de alívio e de ódio.
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Engulo em seco e ligo o rádio da cozinha, que ao menos tem wi-fi. Na TSF, há serviço de trânsito: ocorreu um acidente não sei onde e há uma fila de cinco quilómetros, que pode demorar várias horas a escoar – e depois o relato continua, com outras dificuldades de trânsito ainda. São, em Lisboa, nove e meia de uma manhã de domingo. É impossível ter saudades.
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Morreu Jaime Neves. Era um democrata a sério. E um homem. Talvez seja da idade, mas isto começa a parecer-me uma contagem decrescente.
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Responde o Eduarto Pitta, numa espécie de reinvenção do célebre Questionário de Proust que preparei a pedido da Booktailors: “Se não ficou na cabeça, é porque não valia anotação.” Perguntava-lhe o questionário o seguinte, e como é evidente algo provocatoriamente: “Também está convencido de que as suas melhores ideias se perderam porque, circunstancialmente, não foi capaz de as anotar? E quando é que começa a fazer alguma coisa quanto a isso?” Fiquei a pensar se, apesar de tantos e tantos grandes escritores tomarem profusas notas (Cardoso Pires até inscrevia números de Segurança Social nas fichas das suas personagens, conta-se), não se conterá na sua resposta, de facto, o supremo diagnóstico diferencial entre a literatura e, por exemplo, o jornalismo. E se não é altura de eu próprio deixar de tomar notas para a escrita de ficção, atrapalhando-me tão frequentemente com elas.
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É célebre a má relação que as ilhas têm com o mar. O mar é o que as une ao mundo, mas também o que as separa dele – e, se é o que lhes dá sustento, também é o que tirou a vida a tantos dos seus homens. O resultado, aqui nos Açores, é o habitual: cidades, vilas e freguesias de costas para o oceano, esforçando-se por torná-lo o mais periférico. Já vivemos outro tempo, porém. Em todo o mundo as ilhas se vão reconciliando com o mar. Já aqui na Terceira, se uma pessoa quer fazer um pequeno piquenique ao sábado, quase não tem onde sentar-se a olhar para o horizonte. A não ser talvez nas Cinco Ribeiras, onde há quatro ou cinco mesas com uma maravilhosa vista para São Jorge, mas a Junta de Freguesia (suponho que seja ela) acha que a melhor maneira de aparar a relva é espalhar por lá meia dúzia de vacas, que naturalmente deixam tudo cheio de fezes secas junto às quais se torna impossível comer uma merenda. De resto, também tem uma relação especialmente má com o Inverno, esta ilha em particular. Como se, findas as touradas, em meados de Outubro, a relação com a natureza tivesse necessariamente de ser suspensa. Mas a este tema ainda hei-de voltar.
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Da série Palavras Que Vão Reentrando No Meu Vocabulário. Derramar. No sentido de dizer asneiras (ou “meter água”).


