Joel Neto's Blog, page 72

February 14, 2013

Terra Chã, 14 de Fevereiro de 2013


Aqui há uns dias ouvi o meu pai falar ao telefone com a minha mãe e despedir-se sem lhe enviar um beijo. Gelei. Há pouco, veio pedir-me o carro emprestado (visto que ela levara o de lá de casa a pretexto de não sei o quê), para ir comprar flores a São Mateus. Permanecem o casal de 65 anos mais apaixonado que alguma vez conheci, e nunca o Dia dos Namorados lhes passaria indiferente. Nisso que se funda, em boa parte, a fé que eu próprio conservo no amor.



 


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Os amigos continuam a invectivar-me e eu a invectivá-los a eles, com a auto-ironia possível. A verdade é que o Sporting perder ou ganhar é-me hoje quase indiferente, a não ser na medida em que condiciona o estado do espírito do meu pai. Para estender o braço na direcção deste, já não preciso da bola: basta que nos juntemos a sachar na horta, que vamos à pesca, que ele pare aqui uns instantes depois de ir tratar dos animais. Para estendê-lo na direcção da infância, menos ainda: ela continua a brotar por todos os lados, avassaladora, incompleta como são todas as infâncias alojadas na memória, mas tão vívida e pujante quanto pode revelar-se nesta idade. O Sporting cumpriu a sua função. Devo-lhe muito, e talvez venha a acrescentar dívida para com ele no futuro. Para já, é pouco mais do que irrelevante. E que este instante coincida com a maior crise da sua história – uma crise que poderá, inclusive, aniquilá-lo – não chega a ser um milagre: é apenas um vaga curiosidade.


 


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Afinal, tinha o browser avariado. Meses de sufoco, reforçando a largura de banda da Internet, e protestando com o call centre, e chegando mesmo a duvidar de que pudesse viver aqui muitos anos, tal o sacrifício que era preciso empreender para corresponder à exigência da actualidade e escrever a propósito dela com a assertividade exigida pelos jornais nacionais. Mas era só o browser, e em cinco minutos o problema ficou resolvido. A dependência que nós desenvolvemos destas ferramentas é o paradigma de um tempo.


 


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Depois das magnólias, as azáleas. Já floriram. Daqui a pouco serão os gladíolos, as túlipas, as petúnias, as begónias. Depois as buganvílias. As hortênsias. As camélias – e novamente as magnólias. A natureza segue o seu curso, rompante e circular, e assistir a essa permanente renovação é verdadeiramente redentor. E, porém, ocorreu-me: serão todas as flores estarrecedoras belas esdrúxulas?



 


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Da série Palavras Que Vão Reentrando No Meu Vocabulário. Derriçar. Como é dado. Discreto. Pitafe. Cá nada.

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Published on February 14, 2013 05:04

February 13, 2013

Terra Chã, 13 de Fevereiro de 2013


O senhor da Canada dos Folhados por cujas batatas fui regulando as minhas já apanhou as dele. Gelo só de pensar o que possa estar ali ao fundo, sob a terra da minha malfadada horta. Pelo sim, pelo não, vou colher apenas ao regressar de Lisboa. Viajar deprimido é uma coisa muito triste.


 


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De todas as grandes deformidades humanas, a sonsice é provavelmente a mais útil. Uma certa tentação de aprendê-la, às vezes.

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Published on February 13, 2013 03:04

February 12, 2013

Terra Chã, 12 de Fevereiro de 2013

Parar um dia e estar calor e ninguém em volta falar a minha língua e haver palmeiras.

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Published on February 12, 2013 05:17

February 11, 2013

Terra Chã, 11 de Fevereiro de 2013


A primeira coisa que impressiona é de facto isso de que sempre falamos: os números. Numa ilha de cinquenta e cinco mil pessoas, haver mais de sessenta companhias de teatro amador (sessenta e quatro, este ano), com para cima de mil e quinhentos elementos no total e que durante quatro dias realizam entre oitocentos e mil espectáculos é impressionante. Depois, porém, há mais números ainda: os do público. Tenta-se entrar em cada uma das trinta e cinco salas onde esses espectáculos são realizados (fora centros de saúde, lares de terceira idade, colégios e outros lugares onde os artistas vão dançar no início de cada jornada, “para aquecer”) e simplesmente não se consegue, porque não há uma cadeira vazia, um espaço junto a uma parede ou sequer um pedacinho onde sentar o rabo. É preciso juntar aos mil e quinhentos artistas, portanto, milhares e milhares de pessoas que, durante quatro dias (cinco dias, a partir deste ano), não arredam pé dos salões, para ver os bailhinhos. E, no fim, ainda nos é reservada uma surpresa suplementar (e, então, o fenómeno deixa de ser comovente, para passar a ser avassalador). A qualidade de algumas danças, sim – a nível dramático como musical. Sinal de uma série de coisas. De uma predisposição dos terceirenses para o palco, e que não apenas para a folia. Mas também do empenho das novas gerações, não só em manter as tradições dos seus antepassados, mas também em muni-las de novas capacidades técnicas e, inclusive, em encontrar para elas novos caminhos rítmicos e melódicos, cénicos e coreográficos, que depois são postos em convívio às vezes harmónico, outras vezes dissonante, mas sempre respeitoso com os velhos modos de fazer. Não é uma manifestação para o turista comum: é principalmente uma manifestação para os locais, que apenas um turista sensível e com noção da medida (um turista culto, portanto) poderá admirar. Por mim, não paro de crescer em admiração pelo meu próprio povo.



 


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Bento XVI talvez não tenha feito crescer a Igreja como congregação, mas fez seguramente reflorescer o Catolicismo como sistema de valores. Foi um grande Papa, e a sua resignação, cuja notícia ouvi ainda há instantes, é uma perda para o Cristianismo em geral: o católico, o protestante e até o ateu. Uma parte importante da atmosfera que nos próximos anos reinará sobre esta civilização depende da escolha que o Conclave agora fará entre a manutenção da intelectualidade (ou talvez se lhe deva chamar racionalidade) e o regresso ao missionarismo. Pessoalmente, e neste momento histórico em particular, tenho pena se voltarmos atrás.

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Published on February 11, 2013 03:45

February 10, 2013

Terra Chã, 10 de Fevereiro de 2013


Sérgio Ávila, vice-presidente do Governo Regional e o homem mais poderoso do Executivo (para além de entidade suprema do PS Terceira), elogiou amplamente Passos Coelho pelos seus esforços orçamentais, e em particular no que diz respeito às negociações do quadro financeiro da União Europeia para o período 2014-2020. “Importa realçar o trabalho positivo do Governo português”, disse, destacando “os ganhos alcançados”, a distribuição equitativa dos esforços “por todas as regiões” e “o reforço no âmbito do desenvolvimento rural”. Para ele, o primeiro-ministro está de parabéns. “Pensamos que o Governo português, nomeadamente o primeiro-ministro, conseguiu melhorar aquilo que eram as perspectivas anteriores”, acrescentou. Desconfio que, quando chegarem as Autárquicas, Passos Coelho já será novamente o demónio. A não ser, claro, que o principal interesse, nessa altura, seja expor António José Seguro nas suas fragilidades, de modo a proporcionar nova tentativa de assalto a António Costa. Tudo isto tem o seu quê de divertido.

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Published on February 10, 2013 04:48

Terra Chã, 9 de Fevereiro de 2013

Extraordinária, a telha de polvo do Rocha. Que vergonha só tê-la conhecido ontem à noite.



 


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Os problemas de segurança com o palco do Teatro Angrense tornaram este Carnaval totalmente periférico a Angra. O centro da cidade não é o seu habitat natural, de facto. Mas não deixa de ser triste encontrar a cidade tristonha, à hora de almoço de um sábado, quando todo o resto da ilha dá saltinhos de aquecimento para a folia. Devia ter sido encontrada uma alternativa. O Património Mundial deveria ser, em si próprio, um palco.




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Published on February 10, 2013 04:45

February 8, 2013

Terra Chã, 8 de Fevereiro de 2013

Ontem, suspendemos pela primeira vez uma caminhada a meio: caiu uma bátega que nos apanhou em pleno Cantinho, sem abrigos ou escapatórias, e tivemos de telefonar a pedir boleia. Hoje, nem chegámos a sair de casa, o que aconteceu apenas pela quarta ou quinta vez este Inverno. A previsão meteorológica para esta semana era a melhor em meses: nem um pingo de chuva, esperava-se. Os meteorologistas açorianos deviam receber subsídio de risco.



 


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Devo preparar para o festival Correntes d’Escritas uma intervenção que de alguma maneira corresponda ao verso “Os meus textos não têm serventia”, de Luís Filipe Castro Mendes. Questão com total acuidade, nesta altura da minha vida. E se a minha literatura, agora que regressei enfim a casa, já não servir para nada? Por outro lado, regressaremos nós alguma vez, de facto, a casa? Será a infância repetível? Ou será precisamente a irrepetibilidade da infância a maior de todas as tragédias da memória – e a sua confirmação, finalmente, o supremo mote literário?


 


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Degradado por vinte anos de Lisboa, habituei-me a resistir à palavra “esposa”. Dizer “esposa”, explicaram-me, é horrível. E eu, em vez de questionar-me sobre as razões por que era horrível, simplesmente eduquei-me para não dizer “esposa”. Aqui, na Terceira, diz-se “esposa” – e é bonito. Respeitoso. Admirativo. Mais do que mulher, ela é esposa. E não precisa, por causa disso, de ir queimar soutiens: basta sorrir ao de leve, como se faz perante um elogio espontâneo e desprovido de agenda.


 


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Ninguém alguma vez poderá dizer que gosta de comer enquanto não der por si a mover montanhas para comer uma cabeça de peixe. Ninguém alguma vez poderá dizer que sabe comer enquanto não for capaz de seccioná-la, desmantetá-la, descarná-la e poli-la apenas com o auxílio de um garfo e uma faca, enxugando ao de leve os lábios nos seus esporádicos acessos de unto. Tenho de escrever um conto sobre isto: um homem que durante uma hora secciona, desmantela, descarna e pole uma cabeça de peixe – e outro que o olha apenas, deleitado com aquele misto de precisão e desejo.


 


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Começa o Carnaval. Uma série de bailhinhos que quero ver, incluindo os dos amigos. Nota mental: encontrar tempo para sair um dia numa folia destas. Mas primeiro a marcha de São João, que me cobram há tanto (e com tanta razão).

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Published on February 08, 2013 02:56

February 7, 2013

Terra Chã, 7 de Fevereiro de 2013


Ao senhor Manuel, dei por ele apenas ao segundo dia. Contratara um homem para me erguer um muro de pedra sobre pedra – sim, uma protecção para a malfadada horta, mas já agora um reordenamento do jardim também – e ele trouxera um ajudante.



Detectei de imediato o seu olhar terno e coleccionei com alguma solidariedade as informações de que tinha 47 anos, sofrera um AVC há três (de que recuperara totalmente) e agora usava luvas ao trabalhar com pedras, porque no ano passado quase morrera com leptospirose.


Mesmo assim, julgava que se chamava João, o que comprova a minha ligeireza.


Até que, ontem, veio sozinho.


Ao chegar-se a hora de almoço, fui oferecer-lhe a mesma cerveja que na véspera oferecera aos dois. “Está tudo bem?”, perguntei, olhando em volta para o espalhafato de pedras fora de sítio e valas abertas e fios de prumo e alviões. “Está. E, agora, ainda vai ficar melhor!”, respondeu-me, quase em triunfo, o olhar cúmplice e malandro de quem se prepara para retaliar.


Ia começar a melhor parte do seu dia. O instante sublime. A qualidade de vida. Sentara-se num tronco de árvore e tinha agora sobre as pernas uma lata de sardinhas, um pedaço de pão e uma pequena marmita com dois ovos cozidos que a mulher lhe descascara antes de sair de casa.



E, no dia em que eu deixar de comover-me com isto, não quero continuar vivo. Que venha a negra da gadanha e, por misericórdia, me ponha a salvo da minha própria miséria.


 

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Published on February 07, 2013 03:06

February 6, 2013

Terra Chã, 6 de Fevereiro de 2013


O pobre homem já se mostrou arrependido, e de resto é claro que as proporções que a coisa tomou o surpreenderam. Mas, mesmo evitando os julgamentos individuais, vale a pena perceber que atmosfera é essa que torna normal, até engraçado, um tipo ir receber Cristiano Ronaldo à chegada a um estágio da selecção gritando “Messi! Messi! Messi!” Um castigo por Ronaldo não ter sorrido para as crianças, como alegou o senhor? De todo (até porque, dali a instantes, lá estava ele assinando autógrafos). Apenas mais um produto deste tonto tempo em que odiar é cool. Odiar os governantes, odiar os bancos, odiar os jornais, odiar os desportistas – odiar tudo que tiver poder, o que tiver sucesso, o que tiver dinheiro, ou mesmo apenas a aparência de algum deles. Na verdade, o senhor João Garcia, de Guimarães, não é algoz: é vítima também. Condescendamos com ele. Mas deveremos também condescender, por exemplo, com assassinatos de carácter como este de que foi alvo esta semana Franquelim Alves, o secretário de Estado que teve o azar de passar pelo BPN (cujas trafulhices, aliás, tentou denunciar)? Deveremos continuar condescender no momento em que, em vez de uma estrela pop, o odioso recair sobre um homem, mesmo que esse homem seja um político de média dimensão?





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Volta e meia, repete o M.: “Eu sou apenas um rapaz da Agualva” – e, agora que penso nisso, hábito parecido tem o F., quando me diz: “Eu sou apenas um rapaz da Graciosa.” Vou sugerir-lhes que acabem com isso. Também eu recorri durante anos às palavras “Eu sou apenas um rapaz da Terra Chã” e, entretanto, abandonei-as (ou passei, mesmo, a brincar com elas). Fica-nos mal, o complexo. Ou talvez não seja complexo, mas culpa, o que se calhar é pior ainda – e, de todo o modo, fica-nos mal na mesma. Impõe-se pelo menos alguma altivez, nesta idade em que estamos. Alguma vaidade, sim – até alguma vaidade, se for mesmo essencial. Foram tipos como nós, por exemplo, que construíram a América: rapazes da Agualva e da Graciosa e da Terra Chã (e das Agualvas e Graciosas e Terra Chãs de uma série de países diferentes, da Noruega à Irlanda, de Itália à Polónia). Foi sobre essa classe média trabalhadora e honesta e desejosa de suplantar a sua condição original que se ergueram as melhores e mais livres sociedades. Nós não somos rapazes de lado nenhum, não: somos homens. De resto, bem pior era termos nascido filhos de doutores e engenheiros e, como vi acontecer com tantos ao longo da vida, darmos por nós paralisados, aos cinquenta anos, bem antes e mesmo muito depois disso, porque nunca obtivemos sequer um sorriso de aprovação paternal. Isso, sim, é uma canga para a vida. E uma fatalidade, já agora, para aqueles que tiverem o infortúnio de nascerem nossos filhos. Freud podia ser sobretudo um escritor, mas não errou em tudo.

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Published on February 06, 2013 04:17

February 5, 2013

Terra Chã, 5 de Fevereiro de 2013


Soube-o hoje, pelo presidente da Junta de Freguesia, e não posso dizer que tenha ficado surpreendido. Preocupado com a velocidade a que os automóveis me passam junto ao portão, e tendo em conta a ausência de passeios típica dos arruamentos açorianos, pedira autorização à Comissão de Trânsito da Câmara Municipal para colocar (ou para que se colocasse, tanto me fazia), no lugar onde o passeio deveria estar, uma daquelas grades metálicas que antigamente se punham em frente aos portões das escolas primárias, para os miúdos não saírem a correr e os carros tomarem eles próprios cuidado. Mas, claro, fui chumbado.


Pensei em pedir uma sugestão alternativa, mais de acordo com os padrões municipais. Não me parece que valha a pena. No fundo, sou sensível ao argumento: é melhor não, porque de contrário vai começar um monte de gente a pedir grades iguais. Confesso que não percebi se a principal preocupação foi proteger o património municipal de novos gastos ou defender os próprios automóveis de novos obstáculos. Mas, de qualquer maneira, o essencial mantém-se: na equação entre a querida burocracia, os amados carrinhos e as simples pessoas, também nesta terra, como em qualquer outra terra portuguesa, as pessoas são a última coisa a considerar.


Portanto, o meu portão fica numa protuberância perigosa, escondido atrás de uma aresta ligeira mas cega, situada a menos de um metro de distância, e que os carros contornam a oitenta à hora? E esses carros vêm muitas vezes colados ao muro, ao ponto de já ter havido quem raspasse tinta da parede, ou fosse embater nos degraus dos portões da garagem, ou mesmo chocasse com a papeleira junto à paragem da urbana? Pois paciência: tenham mais cuidadinho ao sair do portão. Fosse ali posta uma grade e não tardava que os carros começassem a embater nelas, deteriorando-se tristonhos.



Chega a ser comovente, numa cidade que circunscreveu a um só gabinete a defesa do património e depois deu rédea solta aos outros todos para o aniquilarem, a protecção que se faz do, digamos, património móvel. Mas, em todo o caso, confirma-se: também nos Açores (ou também em Angra) a regra, por esta altura, é "Para quê arriscar acidentes de automóvel, se podemos ter banais atropelamentos?"

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Published on February 05, 2013 05:32