Joel Neto's Blog, page 70
March 17, 2013
Terra Chã, 16 de Março de 2013
Não é a pobreza. É a insegurança. A incerteza. É esse o monstro.
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Este tempo é mesmo bom é para as farmácias. Estão cheias.
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O Porto Judeu está limpo. Em quarenta e oito horas apenas. Admirável.
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Da série Palavras Que Vão Reentrando No Meu Vocabulário. Canalha. No sentido de crianças. “Chama aí a canalha, que o jantar está pronto.”
March 15, 2013
Terra Chã, 15 de Março de 2013
Regressado, enfim, à rotina, depois de três semanas entre viagens, anfitrializações e correrias várias. Foi um bom tempo. Mas eu gosto da rotina. Das caminhadas matinais, dos verbetes regulares neste mesmo diário, do trabalho para os jornais, do silêncio, dos livros. E da desolação, sim. Do aborrecimento. Do tempo.
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Ficaram por escrever uma série de entradas. Tenho aqui as notas, tiradas a pretexto dos mais variados acontecimentos e silêncios. Num Inverno assim, reencontrar a abençoada meteorologia de Lisboa pode ser como reencontrar um velho amor. O B. não consegue olhar-me nos olhos, o que só terá uma de duas explicações: ou eu o critiquei algures e ele não encaixou, ou é de facto demasiado tímido e eu nunca tive a sabedoria de percebê-lo. Gosto de que a Tele Táxis, de Lisboa, ainda tenha o meu número de telefone e a minha morada, atendendo-me de imediato pelo nome. Se pudesse voltar a candidatar-se à presidência da Câmara Municipal de Oeiras, Isaltino Morais voltaria a ganhar – e isso continuaria a ser, de quatro em quatro anos, o mais perfeito retrato do Portugal contemporâneo. A TSF fez vinte e cinco anos e eu devo-lhe imensamente pelo menos há quinze. Há sempre uma melancolia nos filhos dos mitos, e essa melancolia pude encontrá-la nos olhos de C. também. Há pessoas que não falam: pronunciam-se (ou melhor: proferem) – e é preciso cuidado com elas, porque são desprovidas de sentido de humor. O J. está deprimido porque está sem dinheiro – e que um homem da sua dimensão, com o seu percurso e as suas conquistas, possa estar sem dinheiro é, para além de uma injustiça, uma desesperança. Alguns dias de Lisboa bastam-me, agora, para ter saudades dos Açores. Ao fim de não sei quantas décadas – já existia na meninice da minha mãe, pelo menos –, a Mercês fechou a venda do Ti Manuel Chorica, o que comprova o absurdo que foi a imposição de um novo sistema de facturação, incluindo soft e hardware, aos pequenos comerciantes. Os Pombos foram uma presença luminosa e podem vir sempre que quiserem. Agora já há pelo menos três filmes por semana no Centro Cultural de Angra, o que comprova o renascimento do interesse pelo cinema nesta ilha e, ao mesmo tempo, nos permite manter aqui o nosso redentor passeio-dos-tristes lisboeta. Se as eleições fossem hoje, eu votaria em Guilherme de Oliveira Martins para a Presidência da República. “Enquanto descanso acarto pedra”, disse no outro dia a minha mãe, citando o linguajar do povo – e eu achei que nada descrevia melhor os meus últimos seis ou sete anos de vida como isso. Entre outras notas, entre outras notas – e cada uma delas podia dar um verbete dos grandes, se eu tivesse tido tempo para escrevê-los. Mas, quando não se encontra o tempo para escrever uma determinada coisa, essa coisa merecia de facto ser escrita?
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Está em grande forma, o Duarte Freitas. Pensa bem, sabe ouvir e vai renovando (quase revolucionando) o PSD/Açores sem, ao mesmo tempo, perder sentido de Estado. Pode bem ser o líder de que estávamos à espera. Merece contar connosco.
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Da série Palavras Que Voltam A Entrar No Meu Vocabulário. Vento Encanado. Já me constipei outra vez, claro.
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A obsessão desta terra com o sábado é desconcertante. Torneios de golfe, jantares de solidariedade, eventos culturais, encontros de amigos, reuniões de confrarias – durante o Inverno, é tudo ao sábado, como se até as coisas mais divertidas devessem ser todas despachadas de uma vez. Talvez seja culpa, não sei. O que sei é que me convidam para alguma coisa e eu já vou a dizer que sim quando me ocorre perguntar: “Espera lá: não me vais dizer que é no sábado, pois não?” E é. E eu, sempre que posso, falto. Até que me submeta a obrigações que justifiquem violá-lo, o sábado é nosso: meu e da Catarina. É cheio de rituais e é sagrado. Não entra mais nada nem ninguém. Ponto.
Terra Chã, 14 de Março de 2013
Continuam por encontrar os três pescadores de São Mateus desaparecidos na segunda-feira, ao largo do Topo. Um era aqui da Terra Chã. Dizem-me que trabalhava em tudo o que podia: vendia gelados nas touradas, embarcava nas mais difíceis missões marítimas, oferecia-se para o que mais houvesse. A sua morte é apenas mais uma prova da aleatoriedade disto tudo.
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E, entretanto, a chuva voltou a fazer vítimas e estragos. Em São Miguel, no Faial da Terra, morreram três pessoas, incluindo um homem que abraçou a filha de cinco anos, aguentou a força das águas e lhe salvou a vida, perdendo ele no entanto a sua. Aqui, a chuva destruiu estradas e casas na, digamos, Baixa do Porto Judeu de Baixo, inundando por completo o Boca Negra, de José Soares (o popular Cabrinha, que eu ainda há pouco entrevistara). O Diário de Notícias pediu-me uma galeria de fotografias amadoras e um artigo de opinião.
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HOJE NÃO HÁ ALCATRAS
Os mais antigos falam-me no pior Inverno de que conseguem lembrar-se. Para mim, acabado de reinstalar-me na ilha natal depois de vinte anos em Lisboa, não chega a ser um baptismo de fogo: é só um vago incómodo. A Terra Chã fica no interior da ilha, numa cota relativamente elevada, com menos riscos de cheias e deslizamentos.
Uns minutos às voltas pela Terceira, no entanto, trazem-nos de imediato o verdadeiro cenário: escolas fechadas, ruas desertas, comércio às moscas, gado fugido, culturas destruídas, silêncio. É como se estivéssemos todos no Porto Judeu, embora em todo o redor da ilha o mar se mostre igualmente nervoso.
Lá, na freguesia mártir, vive-se a desolação. Caterpillars removem toneladas de terra acumulada. A água continua a correr com fúria. Os pavimentos vão-se desfazendo, pedaço a pedaço. Uma senhora chora. Que ninguém tenha sido arrastado, como infelizmente aconteceu no Faial da Terra, em São Miguel, parece um milagre.
Apesar disso, há desalojados. E há velhos que são ajudados até ao edifício da Casa do Povo, por entre os destroços, com os chinelos protegidos por sacos de plástico. E há automóveis destruídos, tanto como as casas. E há uma mancha castanha no mar, feita de lama, até pelo menos cem metros da costa. E há um homem que, ao ver tornar a cair a chuva, suspira: “Ai, meu Deus, aí vem ela outra vez...”
O Boca Negra, onde o Cabrinha serve a melhor refeição de peixe da ilha, inundou até ao segundo piso. Não: hoje não há alcatras. Mas também não há funerais. E, como dizia ontem um rapaz, fumando e olhando com melancolia para a ribeira que continuava a investir contra as margens, “Se não chover mais, está bom.”
Assim como assim, é na resistência à fúria dos elementos que este povo se funda.
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Escrevi ontem, no meu Facebook: “Esta coisa de chover todos os dias como se não houvesse amanhã deixa de ter piada no dia em que chove tanto que um tipo se questiona sobre se efectivamente há amanhã.” Era um lamento honesto, mas também de algum modo lúdico. Fica-me a lição. E a vergonha.
March 12, 2013
Terra Chã, 12 de Março de 2013
Descobri hoje que a Fatinha, minha colega na escola primária, já tem “um casalinho de netos”. Descobri que estou mais gordo. E descobri também que amanhã, no dia em que eu planeava jogar 18 buraquinhos depois de duas semanas sem fazer o gosto ao swing, vai chover. Porque é que não consigo apagar este estúpido sorriso da cara, então?
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Nenhum tempo para isto, por estes dias. Talvez amanhã, como alternativa à chuva.
March 8, 2013
Terra Chã, 8 de Março de 2013
Começou a nascer a nova horta, e começou precisamente pela sua dimensão mais moderninha: pelos coentros e pelo rosmaninho, pelo alecrim e pela salva, pela arruda, pelos vários tipos de funcho e por mais uma série de aromáticas. Ficam a faltar, agora, as novas árvores do jardim: os cafezeiros, as goiabeiras, a jabuticaba, o dragoeiro. Continuam ali, em vasos, a ver se morre alguma. A anoneira, essa, foi posta na terra logo ao chegar. Era o que faltava eu voltar a arriscar que esta casa não tivesse corações-de-negro.
March 5, 2013
Terra Chã, 5 de Março de 2013
Agora que o recordo, também isso era um sinal. Um colega de letras, amigo mas não íntimo (não o suficiente para conhecer a minha conta bancária, pelo menos), esperou para se embebedar e então, sim, abriu um sorriso sarcástico: “Muito conservador, muito conservador, mas tens um casaco da Springfield igual ao meu. A quanto é que está isso, nesta altura? Vinte e nove e noventa e nove?” Eu ri-me e brindei com ele, em jeito de cumplicidade na pobreza: “O que é que queres, pá? Eu escrevo para viver, tal como tu. Se há alguma coisa de que podemos ter a certeza, é que seremos sempre ambos, fundamentalmente, uns pelintras.”
Mas, na verdade, ele queria dizer-me uma coisa. Queria dizer-me que ele, sendo de esquerda, podia ter um casaco barato; já eu, sendo conservador, não. E o que isso significa, mais uma vez, é que para os portugueses do século XXI, incluindo os pensantes, só faz sentido ser-se alguma coisa do ponto de vista político, ter uma identidade, porventura até convicções, se em defesa de alguma coisa, de alguma propriedade (ou da ausência dela). Um tipo de esquerda é de esquerda porque não tem nada. E um conservador é um conservador, naturalmente, porque o conservadorismo é a ferramenta ideal para defender as suas riquezas, os seus expedientes, a sua posição, os seus bens.
De facto, estamos na infância.
March 4, 2013
Terra Chã, 4 de Março de 2013
Amigos de todas as latitudes querem visitar-nos no Verão. Velhos e novos, íntimos e menos íntimos, com filhos e sem eles. Não sei até que ponto não será a excitação do momento (coisa para vir toda a gente este ano e depois nunca mais vir ninguém, no fundo). Em todo o caso, alguma coisa esta terra estará a fazer aos nossos semblantes. E alguma coisa nós próprios estaremos a fazer bem na vida. Ou teremos feito.
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Ontem à noite comemos as primeiras batatas da horta. As mais pequenas, assadas no forno. Tratei da colheita na sexta-feira, logo ao chegar, e afinal os resultados revelaram-se menos decepcionantes do que o esperado. Entretanto provámo-las juntos, durante o jantar de aniversário com o clã todo, e foi uma pequena festa. Tudo está bem quando acaba mais ou menos.
March 3, 2013
Terra Chã, 2 de Março de 2013
Enchem-se os televisores de imagens de manifestações. Os repórteres repetem até à exaustão a palavra “raiva”, inclusive quando o que aparece no ecrã é um sorriso. Penso que podemos decretar, com alguma segurança, a morte da chamada "imparcialidade jornalística". Fico satisfeito, pois há muito anos que advogo o fim da farsa. Mas era de facto essencial que os paladinos da deontologia deixassem cair a máscara.
Terra Chã, 3 de Março de 2013
Entro hoje no meu quadragésimo ano de vida. Como Robert Redford em “Havana”, descubro, enfim, que já não vou morrer jovem – e, portanto, talvez seja chegada a hora, também para mim, de tornar-me definitivamente perigoso. Quanto ao mais, já se sabe: é costume a longevidade surpreender as almas atormentadas. Há surpresas menos desejáveis.
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De resto, não consegui desligar o telefone. Cada telefonema que recebo continua a pesar-me como uma bigorna, inclusive se se trata da mais amável manifestação de apreço. Mas eu não poderia desligá-lo – não hoje. É um resto de humanidade. Bem vistas as coisas, espero não perdê-lo.


