Joel Neto's Blog, page 67

April 19, 2013

Terra Chã, 19 de Abril de 2013


O mau tempo volta para a semana, mas para já continua seco, mesmo se pouco ensolarado.  Ontem dei por mim a gozar – verdadeiramente a gozar – a mais banal das tarefas domésticas: estender a roupa na rua, com o Roberts debitando ao fundo um blues suave, e depois recolhê-la cheirosa e dócil. E há uma vertigem quase erótica no modo como venho fazendo planos para o fim-de-semana, em que pretendo dar bastante atenção à horta. Talvez seja essa, na verdade, a grande diferença entre viver em Lisboa e viver nos Açores. Em Lisboa, não me ocupava especialmente o desejo de gozar o dia: bastava-me descansar um pouco e, pelo meio, injectar sucessivas doses de prazer, sugado sensualista e insaciavelmente. Aqui basta-me que não chova, que haja ao menos um banco seco no jardim e que, algures ao longo do dia, eu tenha ao menos uns minutos para sentar-me nele, a fumar uma cigarrilha e a olhar para lado nenhum. Tudo isto é banal e foi mil vezes dito, inclusive aqui. Mais uma prova de que é absolutamente verdade.



 


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Um terceirense foi à televisão queixar-se do Governo Regional. Ficou desempregado há dois anos, os mil euros de subsídio de desemprego e abonos de família que recebe revelaram-se curtos para as contas que havia a pagar e, em 2012, fora ter com um deputado do Partido Socialista, que providenciara no sentido de que recebesse do erário público uma verba correspondente a algumas prestações (três, segundo percebi) do crédito automóvel. Entretanto acabara-se o ciclo eleitoral das Regionais e não houvera mais dinheiro. Pois, esta semana, e numa espécie de último recurso ao final de um longo calvário de insistências e protestos, foi o cidadão à TV manifestar a sua indignação. E era autêntica, esta. Primeiro, porque havia criado certas expectativas. Depois – pareceu-me – porque em todo o caso o choca que um homem tenha prestações do carro para pagar e o Governo não se chegue à frente. São 57 segundos apenas de reportagem. Mas resumem todo um modelo de desenvolvimento.


 


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Sempre tive uma certa repulsa pela chamada linguagem “corporate”. Apesar dos vários amigos (e não só) que se movimentavam no círculo das multinacionais, pareceu-me sempre que o seu ostensivo recurso a palavras como “benchmark”, “target” e “parachute”, ou mesmo “pró-activo”, “implementar” e “cotação” (em vez de preço, isto é), era muito mais digno de pena do que desdém. Basicamente, aquelas pessoas vestiam a personagem porque não tinham alternativa: ou eram “um deles”, ou a betalhada das chefias de departamento aniquilá-los-ia. Vim a perceber que nem sempre era assim: que em muitos casos a personagem era de facto uma aspiração. Muitas pessoas tinham a linguagem “corporate”, o ser “corporate”, o pertencer ao mundo “corporate” como um desiderato. Na verdade, o jargão, com as suas abreviações e os seus eufemismos, as suas siglas e os seus acrónimos, era apenas uma extensão do fato de antracite, da mochila de cabedal e do Audi A4. Inevitavelmente, a minha repulsa aumentou, porque na verdade nunca fora contra o neologismo (de que, aliás, sou um cultor): fora sobretudo contra o arrivismo (de um lado ou do outro). E, no entanto, nada nessa repulsa poderá comparar-se ao verdadeiro asco que me provoca hoje estar aqui, no meu refúgio açoriano, ligar a televisão, já um pouco a medo, e reencontrar o linguajar “corporate”, ainda por cima disseminado agora pelas bocas de políticos, de jornalistas e até de cidadãos anónimos em cuja sala de estar expressões como “rating” e “notação financeira” e “extensão das maturidades” fizeram cama. Não, não foi o capitalismo que deu cabo disto. E não foi um Governo em particular, o pós-25 de Abril em geral ou sequer as nossas velhas faltas de ética laboral e de meritocracia. O que deu cabo disto foi o teatro. As personagens em que nos transformámos, a personagem em que o país se transformou. O desejo ardente, em cada instante, de sermos quem afinal não éramos. Chamam-lhe “viver acima das possibilidades”, mas também podiam chamar-lhe “vender o país baratinho”. Depende de quem se queira culpar. É irrelevante, porque os culpados somos nós. E desde que eu tenho a certeza, basta-me ouvir um só termo de jargão empresarial para desligar de imediato o televisor. 

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Published on April 19, 2013 04:02

April 18, 2013

Terra Chã, 18 de Abril de 2013


Nenhuma conclusão definitiva sobre a palavra “sotil”. Vários amigos dizem-me que, nas freguesias da Praia, a palavra é “setil”. O Jorge António avança com a possibilidade de se tratar de um aportuguesamento de “still”, a partir de “still trap” (ou “armadilha de espera”). Já minha mãe acha que a explicação é bem mais prosaica: que na verdade a palavra é “sutil”, de “subtil”, por se tratar de uma armadilha com tanta subtileza que os pássaros são apanhados sem sequer darem por isso. Nenhuma das explicações me agrada em absoluto. E, se entretanto não aparecer melhor, fica desde já instituído que “sotil” existe, se escreve simplesmente sotil e significa uma armadilha para pássaros, feita em cana e de funcionamento automático com recurso a um vime arqueado e as duas cunhas de madeira sobrepostas em equilíbrio instável.



 


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E, por falar em passarada, comecei ontem a instalar redes nos diferentes talhões da horta. Então mas eu andava um Inverno inteiro a levar porrada dos coelhos e agora ia-me deixar papar pelos melros?


 


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Tornei ontem a ganhar ao Zorra. 2/1, com birdies no 1, no 10 e no 16. Estou a jogar o golfe da minha vida, e isso alegra-me mais do que devia. Mas já tenho responsabilidades suficientes: ao menos durante uma tarde por semana, reservo-me ao direito de ser completamente infantil.

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Published on April 18, 2013 03:16

April 16, 2013

Terra Chã, 17 de Abril de 2013


Notas para um conto infantil. Três pássaros: um santo antoninho, um canário e um pardal. Um cor-de-laranja, outro amarelo e outro cinzento. Clero, nobreza e povo. Raros e difíceis de apanhar, os canários: os únicos que se criam em cativeiro, de onde emitem o canto mavioso com que são capazes de encher uma casa. Fáceis de apanhar, os pardais, mas inúteis para cativeiro – e, além do mais, mal afamados por via do seu carácter omnívoro (o que se quer de um pássaro livre, ao contrário do paradigma da delicodoçura, é que seja carnívoro, de modo a que poupe frutas e colheitas). É dá-los aos gatos, pois. Fáceis de apanhar, também, os santo antoninhos. Mas estes rodeados de uma aura de bondade (para que o próprio contraste do peito laranja com a erva verde contribui) e sempre devolvidos à natureza com o sentido de missão e a delicadeza de quem liberta um anjo. Ou então com a mágoa e o ressentimento de quem liberta um peixe-sapo do anzol. Evitar meninos bondosos com sotis de cana (os meninos não são bondosos), bem como pardalinhos racalcitrantes e outros moralismos primários. Há um avô, é o meu - e isso é quase tudo. E, sim, há uma sotil, de cana, perfeita. Foi ele que a fez.


Consideraria o Sérgio encarregar-se das ilustrações?


 


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Duas dúvidas de Português logo pela manhã, e de naturezas bem distintas. Não encontro a palavra “sotil” em qualquer dicionário, incluindo o comum, o Houaiss e o Etimológico (nem “sutil”, já agora). E, no entanto, o meu avô usava-a para descrever uma armadilha para pássaros, de funcionamento automático e preferencialmente (penso eu) feita em cana. Entretanto, e mais cedo ainda, um súbito silêncio a instantes da utilização do presente do conjuntivo do verbo florir. Durante a caminhada madrugadora, com a Catarina: “Espero que as azáleas ainda… floram?” Espero que as azáleas ainda “flôram” (como se de facto houvesse ali um circunflexo) este ano? Caramba, que se eu não descubro depressa as duas palavrinhas vão assombrar-me durante semanas…




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A conjugação do verbo é “fluram”. Entretanto, ajudaram-me no Facebook. “Espero que as azáleas ainda fluram este ano.” A Internet é um milagre.

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Published on April 16, 2013 04:39

Terra Chã, 16 de Abril de 2013


Roubaram do Museu de Angra oito canhões do século XVIII. Juro que não fui eu. Também não odeio assim tanto os coelhos da minha horta.



 


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Serão com a Catarina, ontem à noite, a ver um documentário sobre a chamada vida selvagem. Andamos de candeias às avessas com a ficção: o cinema comercial deu o berro criativo e a televisão nunca deixou de ser um sucedâneo dele. De modo que, no ecrã, a história de um urso polar que, perante um degelo precoce, tem de repente de nadar mais de quinhentos quilómetros até encontrar terra, para hibernar durante um Verão cada vez mais longo.


A mensagem ecológica não deixa de estar lá, mas em todo o caso o bicho está faminto e tem de comer mais uma foca antes de recolher. E então nós aí vamos com eles, o urso e o próprio documentarista, perseguindo focas, subindo a penhascos para enganar a fome com uma gaivota (era uma gaivota?), lutando contra uma manada de morsas pela posse de uma cria.


Aí está, pois, a definição de um bom contador de histórias. Se o protagonista fosse uma foca, tão indefesa como adorável, era seguro que estaríamos do lado dela, escapando entre as rochas, formando em posição de ataque com as outras focas, desdenhando desse maldito urso que a quer comer.


Assim, pelo contrário, desejamos ardentemente que o pobre urso, traído pela marcha do tempo, consiga saciar a fome, desacelerar o metabolismo e resistir ao menos mais este Verão. É ele o nosso herói – um caminheiro solitário, uma vítima, nós próprios.


Ah, mas isso é um bom contador de histórias apenas.  Um grande contador de histórias é outra coisa. Um grande contador de histórias leva-nos pelo olhar da foca e põe-nos a torcer pelo urso (ou vice-versa).


Um grande contador de histórias descobre em nós bondade onde menos se previa que ela existisse, depois obriga-nos a perguntar se afinal não se tratará de maldade disfarçada – e depois ainda lança sobre a sua narrativa um espesso manto de dúvida sobre se a bondade e a maldade são de facto o mais relevante na história toda, e ainda por cima a bondade e a maldade de um homem só (por muito que seja o egotismo).



E, de facto, pode-se ser um grande contador de histórias a partir do conto de um urso polar que persegue uma foca. Mas é muito mais seguro que o seremos a partir do conto de um homem e uma mulher que passeiam de automóvel, lado a lado, a um plácido domingo à tarde – e, naturalmente, do que significa aquele silêncio que de súbito se instalou entre eles.


 


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Eu sei que já escrevi sobre isto, mas quero voltar a escrever. A melhor compra que eu fiz, no que ao regresso a casa diz respeito, foi o meu Roberts Wi-Fi Radio. Agora mesmo, e apenas porque li sobre a vinda de Amadou&Mariam a Lisboa e fiquei primeiro com vontade de ouvir música africana e logo a seguir cheio de saudades de um pôr-do-sol na savana, com aquele cheiro doce e acre brotando da terra quente e os pirilampos tomando posição nos embondeiros, eis que soa ao canto do meu escritório a rádio Wassoulou Internationale, trazendo-me de volta o Sahel. "Radio Wassoulou Internationale, C'est La Musique Que Vous Aimez." En fait. Et le voyage.

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Published on April 16, 2013 04:02

Terra Chã, 15 de Abril de 2013

A minha horta, neste momento, é um cemitério de lesmas e bicharvões. Tenham lá paciência, portanto: veneno dos caracóis é que eu não vou deixar de pôr. Entre os meus pimentos e o futuro do planeta, vou pelos meus pimentos. A agricultura dá mesmo cabo de um carácter.




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Published on April 16, 2013 03:12

April 14, 2013

Terra Chã, 14 de Abril de 2013

"O passado nunca existiu. Por isso é que nos fascina”, diz Vergílio Ferreira, de longe o autor mais citado deste diário. Não deixa de ser reconfortante provar que, quanto ao mais importante de tudo, o mestre está completamente errado.




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Published on April 14, 2013 15:51

Terra Chã, 13 de Abril de 2013


E, para combater a tensão, mais uma tarde de trabalho na horta com o velho pai. Por esta altura, e além das aromáticas, já adejam ao vendo pés de malagueta, pimento, cenoura e repolho roxo - e no interior da terra estão ainda sementes de nabo, rabanete, espinafre, tomate cherry, milho doce, feijão verde e rúcula. Tornei a ignorar as luas, porque de facto não tenho tempo para adiar ou antecipar – e o mau tempo, como se confirmou ao final da tarde, ainda não acabou de todo, o que com certeza não ajudará também. Mas é precisamente aqui que entra em acção a fé. A agricultura está a fazer de mim um místico. Nisso, não me distingo de nenhum outro homem anterior a mim – daqui até ao início dos tempos.

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Published on April 14, 2013 15:46

Terra Chã, 12 de Abril de 2013

Voltamos do cinema na Praia da Vitória e paramos nas Urgências por causa de uma intensa dor sentida pela Catarina na zona inguinal. Ao fim de 45 minutos, estamos em casa, com a consulta feita e os medicamentos comprados. Haverá igual a isto?




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Published on April 14, 2013 15:36

Terra Chã, 11 de Abril de 2013


Não tenho uma insónia há meses. Apesar de manter a mesmo quantidade de trabalho que tinha em Lisboa e de ainda lhe ter adicionado este diário, a agricultura, uma série de projectos pro bono, uma crescente actividade política, um lugar na direcção do Cine-Clube e sei lá mais o quê. Tem de ter um significado, isso. Até os papos me desapareceram dos olhos, como se não se cansa de dizer a minha mãe.





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Ganhei ao Zorra.

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Published on April 14, 2013 15:31

Terra Chã, 10 de Abril de 2013

O romance está parado, muito obrigado. Mas tenho este diário. A ilusão de que vou escrevendo.




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Published on April 14, 2013 15:26