Joel Neto's Blog, page 68
April 9, 2013
Terra Chã, 9 de Abril de 2013
O “Diário Insular” pede-me um texto sobre a venda da Mercês, para cujo encerramento, ao fim de mais de cem anos, alertei a redacção. O texto não é sobre a Mercês: é sobre o pai dela.
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O que eu não disse a Manuel Chorica.
Um dia, com um gesto brusco qualquer, parti um vidro ao balcão do Ti Manel Chorica – e perdi a sua confiança para sempre.
O Ti Manel Chorica, para cuja existência eu despertara primeiramente por via do seu pé amputado ao meio (era o esquerdo ou o direito?), pouco abaixo do nível do meu olhar, tinha a sabedoria acumulada dos homens bons. Acolhia, ajudava, mimoseava. Mas proibia-se de sorrir para os desrespeitadores, na certeza de que voltariam a desrespeitar.
Nisso assentava o seu negócio: na contenção. Dava fiado a toda a gente, mas irritava-se sempre que deixávamos o rol em casa, impedindo o encontro de contas. Para ele, não podia subsistir espaço, por mínimo que fosse, para desconfianças sobre a sua idoneidade. E, naturalmente, jamais haveria confianças para um fedelho que lhe partira um vidro.
Era amigo do meu avô, o Ti Manel Chorica – e pelo menos por duas vezes (uma delas era eu já rapaz) instalou temporariamente a venda na loja da casa dele, para promover reparações no espaço original. Hoje, sou eu o proprietário dessa casa. E, sempre que entro na minha loja para arrumar as ferramentas da horta, ou para brincar aos carpinteiros, ou mesmo apenas para estender a roupa longe da chuva, enquanto ouço as notícias na rádio, lembro-me dele.
Gostava de ter-lhe pedido desculpa por aquele vidro partido. Foi um acidente.
Infelizmente, morreu antes de eu conseguir dizer-lho. Mas, durante anos, sempre que entrei na sua venda para cumprimentar a Mercês e tornar a elogiar-lhe os móveis, as vitrinas que eram dois terços da minha infância e os enormes gavetões basculantes de onde antigamente saíam milho e feijão e farinha, extraídos em conchas de lata e medidos em alqueires, o meu primeiro pensamento continuou a ir para ele.
Eu tinha uma dívida para com Manuel Chorica. E um homem de bem não pode nunca esquecer-se de uma dívida que tem para com outro.
Agora, acabou-se tudo. Ou quase tudo. Na verdade, não se acabou a minha memória, nem tão-pouco a dos meus vizinhos. Enquanto nós vivermos, um pouco do Ti Manel Chorica viverá connosco. E da sua venda também.
April 8, 2013
Terra Chã, 8 de Abril de 2013
A ver se a horta aguenta a chuva que torna a cair, inclemente, sobre estas ilhas. Olha-se para a terra e percebe-se que não aguenta mais um pingo de água sequer. Cinco minutos de chuva bastam para impermeabilidade, a água vogando atarantadamente pelos quatro cantos do mais pequeno espaço, como que aprisionada numa piscina. Quase posso ouvir, ao fundo, a gargalhada cósmica. Seis meses de chuva desta magnitude só pode ser ironia: praxe sobre nós, os recém-chegados, e bullying sobre todos os outros, que já aqui estavam. Mas nós prevaleceremos.
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Para já, fazemos a caminhada à tarde – mas fazêmo-la. Temos de adaptar-nos.
Terra Chã, 7 de Abril de 2013
Todo o dia a cirandar pela horta, com o velho pai. Erguido o muro que nos protegerá dos coelhos – embora não dos pombos torcazes, bem sei, embora não dos pombos torcazes –, o espaço ficou mais pequeno e maneirinho, bem à medida de um quase-jardim. Do lado de fora semearei apenas as cebolas, os alhos e uma boa quantidade de batatas (dez quilos é o plano). Para o lado de dentro, o projecto é quase paisagista, com doze espaços de diferentes dimensões, para outras tantas culturas distintas, mais um razoável canteiro de aromáticas. Hoje, medimos tudo, seccionámos as áreas de plantio e os carreiros de passagem e trabalho, com recurso a barbante e a estacas de alumínio que o Chico nos arranjou na Base – e de imediato tratámos das primeiras culturas: semeámos os nabos bola de neve, transplantámos as cenouras, semeámos o feijão verde e ainda acrescentámos basílico, salsa e erva de São Roberto ao canteiro aromático. Acompanhou-nos o rádio de pilhas, com os relatos das equipas de futebol locais – e acompanhou-nos um sol tímido de Primavera, que me devolveu aos domingos da infância, em que navegávamos pelos quatro cantos da ilha, os quatro dentro do Fiat Uno, a conversar sobre tudo e sobre nada por cima do futebol que murmurava em fundo. Foi para isto que eu voltei: para reencontrar esta doçura. E, surda a essa certeza absoluta de que a infância é sempre irrecuperável, ela visita-me de facto – e com cada vez mais frequência.
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Está decidido: faremos tudo para que estes fins-de-semana de dois dias se tornem a regra, em vez de excepção. Faz toda a diferença ter dois dias: retira a pressão sobre o sábado e representa um efectivo descanso. Naturalmente, os cinco dias úteis deixam de ser esquizofrénicos para se tornarem demenciais. Mas também para isso voltámos: para termos momentos de descanso efectivo – e não apenas intervalos entre sequências obsessivas de trabalho.
Terra Chã, 6 de Abril de 2013
Rhythm & blues pela manhã, via Rádio Marginal. Trabalhámos a semana toda que nem loucos para gozarmos, enfim, um fim-de-semana de dois dias. Não direi que é o primeiro, mas é seguramente o primeiro numa série de anos – e eu não quero estragá-lo logo à partida, deprimindo-nos com as notícias do país, via TSF. Este fim-de-semana não há país cá em casa: só nós e o tempo todo.
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Íamos a sair e casa quando ouvimos tocar o sino do portão do caminho. Eram o José Bertão e uma série de outros irmãos do Império, distribuindo esmolas de carne de vaca oferecidas pelo Vítor Lima (e respectiva família) em louvor do Divino Espírito Santo. Recebi aquele saco, incluindo a sua belíssima posta de carne decorada com um raminho de hortelã, e planeei desde logo uma alcatra. Só tive pena que não ma tivesse vindo entregar uma criança, para eu poder dar-lhe “um dinheiro” como aqueles que eu próprio recebia na infância, quando matávamos porco. De resto, tornei a celebrar o privilégio que é ter voltado ao campo – ter voltado a esta terra. Que seja pela intenção daquilo que prometeste, Vítor. E obrigado pela vizinhança.
April 3, 2013
Terra Chã, 4 de Abril de 2013
Algumas eu já as tinha guardado, outras foram-me passadas pelos subscritores do nosso pequeno projecto online, A Gente Sabe. As expressões típicas do falajar terceirense podem ser arrebatadoramente divertidas. Eis algumas as minhas preferidas:
“Pára de tecer, estepô!”, “É home!”, “Ai, tal velh’alaricado!”, “É, pequene, na queres ir brincar com a pombinha para a areia?”, “Ai, tal pecade!”, “Home’, pomordês!”, “Tinha povo c'ma bicho.”, “Home, faz-te discretinho, sequer.”, “Tu bota sentide!”, “Esse cão tá amarrade? Ele pega?”, “Aquilhe foi gaitadaria velha!”, “Ó vocês, acaçapem-se!”, “Home, tu queres é valhacas.”, “Gente tola e toiros, paredes altas.”, “Credo, tinha poderes de gente!”, “Àquela, uh!”, “Mas isto tá tudo pegadinhe de cabeça, ó que é?”, “O toiro aguindou!”, “Ah, pequena, t’ás tante prezada…”, “A tua mãe já tá mais tenteadinha, ou ainda tá aberrocida?”, “Aquilhe tem dinheire c'ma cabele em cão.”, “A modos que sim!”, “Vocês tenteiem, sequer, suas tatonas...”, “Passa cá!”, “Ah, Chique, na meteste as frescas na friza?”, “Quando se apocata.”, “Áquela, tal home de pechinchim…”, “Ai, aguaceira!”, “Olha, é pená!, “Não dês sopa inteira ao menino, que ele pode-se afogar!”, “Vergonhas da minha cara!”, “Olha, visitas pa tê pá!”, “Passa o mapa nessa cozinha, mulhé!”, “Foi só comê e bubê.”, “À conta de Nosse Senhô.”, “Ai tal cadela!”, “Voces que se agasalhe, sequé!”, “Antes cagá um pé tode…”, “Alagade pinguiande debaixe da isquiada.”, “Passa fora!”, “Home, vai cagá, pá.”, “Na qués vê macaquins?”, “Tava mei’ esmorcide, o pequene...”, “Bota que tem!”, “Ah, boca santa!”, “Ah, estepô, tu és prigosa!”, “Tal coisa sem tarelo…”, “Tás por troça...”, “Tal caldeação!”, “‘Tás a mamá pa crescê?”, “Tê home tá mei’ pairadinhe...”, “Uma coisa como é dado!”, “Aquilo fez um piso na biscoita que nunca mais teve tafulho.”, “Bilicas!”, “Deste um fofó?”, “Súme-te, estepô!”, “Tal home d’esganade!”, “Vavó, sabença!”, “Tal rapaz atoleimado.”, “Ah, padaço de tolo!”, “Àquela, na sejas inticante.”, “Deixa-me da mão!”, “Home, isto vai tentear!”, “Ara, mais, mais, mais!”, “Mê home’ tá bum, à conta de Dês.”, “O mê pequene xinxim tá com soltura.”, “Quem tá fora cheira tabaque.”, “Podes antrá, que o cão na pega.”, “Rompeste os alvarozes?”, “Tava penando!”, “Àquela, vai-te escondê.”, “Cuidade com esse vente encanade!”, “Eh, diabe, pára d’inriçá!”, “Home, pega na pomba!”, “Olha, deixá-lo…”
Terra Chã, 3 de Abril de 2013
O “d” do meu computador está a funcionar mal. Infelizmente, a letra “d” está por todo o lado (em “todo” e em “lado”, por exemplo) – e, apesar dos esforços de correcção, há sempre um ou outro que me escapa. Nas redacções dos jornais, naturalmente, ninguém corrige. Já não há revisão como havia, e quase todos os erros de jornalistas e cronistas acabam por ser impressos. Mais um triste sinal de que um dos grandes amores da minha vida vive os seus piores anos. Um dia arrepender-nos-emos de ter deixado morrer a imprensa. Se é que ainda seremos capazes, então, de arrepender-nos do que quer que seja. Ou sequer hoje.
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Da série Palavras Que Vão Reentrando No Meu Vocabulário. Eu agora estou sem saber. No sentido de “Por acaso, esqueci-me de confirmar isso e agora dava-me jeito tê-lo feito.”
Terra Chã, 2 de Abril de 2013
E, quando se pensa que já batemos no fundo, então ainda falta o mês de Março. O pior desta extraordinária experiência de regressar a casa – não, não é experiência, a palavra: é entrega, caminhada, inevitabilidade, talvez até destino, se não fossem tão parvas as ressonâncias do termo – tem sido a meteorologia. A Catarina já me havia alertado para isso: passáramos aqui um mês de Março, há uns anos, e fora extenuante (como talvez o fosse na minha infância, mas a verdade é que as cronologias se me diluem na memória). Afinal, repetiu-se: chuva o mês quase todo, vento dia sim, dia não, frio como talvez nem em Janeiro. E Abril que não dá quaisquer sinais de abrandar. Diz o povo que “já não se pode”. E, de facto, não há maneira mais preclara de exprimi-lo. Já não se pode.
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Outras vezes sinto simplesmente que, se me alimentar bem e não deixar as caminhadas (e o golfe, claro), ainda vou a tempo de uma segunda metade da vida saudável e serena.
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Uma leitura suave destas noites de Inverno: as “Memórias” de Rómulo de Carvalho, que mas ofereceu a Ana, minha sogra. Se eu pudesse começar tudo de novo, era o exemplo dele que tentaria seguir – mesmo faltando-me o talento poético. Ao pé de Rómulo de Carvalho, tudo o mais soa a frívolo e a força bruta.
Terra Chã, 1 de Abril de 2013
A Belita esperava-me mais inquieto, ao fim destes meses todos. Regista-me a tranquilidade e suspira, admirativa, qualquer coisa como: “Chegaste lá.” Envelheci cedo, talvez – e é um alívio. Mas é possível, sim: é possível que tenha chegado lá. Ou que me tenha acercado dela. A paz. A paz possível.
March 31, 2013
Terra Chã, 31 de Março de 2013
Somos praticamente acordados pela Lídia, que nos vem trazer um folar de presente pascal. Ontem, recebêramos um pão de milho à moda do Pico, oferecido pela Márcia, e uma caixa de saladas hidropónicas, presente do António – e na sexta a Laura e a Iria já nos haviam trazido outro folar ainda. No próximo ano haveremos de contribuir também, com algum tipo de dádiva. Para já, é hora de ser surpreendido. Avassaladora e deliciosamente.
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Todo o dia vão desfilando na minha janela animais. Pássaros e melros, coelhos e pombos, uma vaca, uma cabra, gatos e cães momentaneamente evadidos dos quintais dos vizinhos. Sobem e descem muros, arrastam-se vagarosamente pelo cerrado fora, simplesmente ficam ali às voltas, lutando com moscas. Não os quero proteger dos seus inimigos naturais nem lhes quero dar a eles o tão pouco que resta para as gentes já. Não é esse o meu tipo de ecologia. O meu tipo de ecologia é sentir que estou rodeado de vida, de uma vida que se basta a si própria, espontânea e feliz – e se possível ser seu espectador, a partir desta janela, sem que tal tenha de representar a prova definitiva da minha bondade. Quero ser espectador apenas. E talvez ficar com algumas migalhas. Dos animais e das plantas, deste castanheiro e do vento que o fustiga neste mesmo instante, da noite que cairá daqui a pouco e do dia que nascerá amanhã de novo. Basta-me isso, hoje: assistir a esse espectáculo – como clandestino, inclusive, se for preciso. Tudo o resto é milagre e é maravilha. E liberdade.
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A Câmara de Angra acaba de antecipar o seu próprio prazo para pagar a trinta dias aos fornecedores. Até certo ponto, é pena não haver eleições autárquicas todos os anos: há sempre um monte de problemas que, por coincidência, tendem a resolver-se melhor em anos de eleições. Mas talvez não fosse grande ideia, não. Por exemplo: dois meses após ter deixado cair um terço dos comerciantes da praça municipal, não se preocupando sequer em forjar uma estrutura agregadora que lhes permitisse uma facturação comum, a Câmara acaba também de assegurar cinco emissões do programa “5 Para a Meia-Noite”, da RTP1, feitas a partir de Angra o Heroísmo durante as próximas Sanjoaninas. São, pelo menos, 40 passagens de avião, a que acrescem estada em hotel de quatro estrelas e alimentação para um monte de gente durante uma semana inteira. E, naturalmente, contestá-lo resultará em pouco: a festa será divertida, e as pessoas terão de facto razões para se alegrarem com a montagem de todo esse circo em Angra, bem como com a profusa exibição da cidade nos ecrãs da televisão durante todo esse tempo. Mas não deixa de fazer sentido perguntar: quantos daqueles comerciantes que a Câmara nem tentou salvar efectivamente poderiam ter sido salvos com o dinheiro que vamos gastar agora com a televisão? Metade? Dois terços? Provavelmente, todos. E talvez até mais um ou outro que viesse a titubear este ano.
Terra Chã, 30 de Março de 2013
E se, afinal, são os pombos torcazes que me destroem a horta? Ou sobretudo eles? De que serviu, afinal, toda esta engenharia para rechaçar os coelhos, se serei agora atacado pelo ar?
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Apesar disso, vou ao Basílio Simões e compro um monte de sementes. Está sol. E, porque está sol, paro ainda no Nildo Neves e desato às compras: perlatores e válvulas, parafusos e perfis, esticadores, pitons e porcas, buchas e brocas e cabides e lâminas e cerra-cabos – tudo aquilo que me ocorreu precisar aqui em casa para reparar as avarias de Inverno, para colocar o conta-quilómetros do conforto a zero, para começar de novo a respirar. Trato do sino do portão do caminho, trato dos picaportes da portas da sala e do escritório, trato do ralo da banheira. Depois faço a agenda e bricolagem dos próximos dias e venho para aqui escrever neste diário. Daqui a pouco afundar-me-ei no sofá, a ver um filme parvo qualquer com a Catarina, até que enfim adormeçamos ou simplesmente tentemos começar o dia de novo, lendo e fazendo tricô (ela, não eu) e, então sim, caindo na cama. Eu precisava de dois sábados por semana. Dois sábados por semana e sentir-me-ia imbatível.


