Joel Neto's Blog, page 81
November 24, 2012
Terra Chã, 9 de Novembro de 2012
Terceira fase da horta: sementeiras.
Semeadas, entre ontem e hoje, as espécies suivantes: alface, cenoura, pimento, rúcula, malagueta, coentro, espinafre, couve lombarda, cebola, nabo forrageiro e nabo bola de neve. Algumas fora de época e muitas definitivamente fora de lua. Para desafiar as probabilidades.
De resto, quatro aprendizagens e uma suspeita.
As aprendizagens:
a) comprar um alvião para o trabalho grosseiro;
b) comprar um ancinho para o trabalho fino;
c) aceitar a ajuda do velho pai sempre que ele a propuser;
d) pedir humildemente a ajuda do velho pai quando ele não a propuser.
A suspeita:
a) isto, quando for altura de mondar e sachar, sob a chuva que cai inclemente há uma semana consecutiva, não vai ser este passeio no parque, pois não?
De qualquer maneira, e se semear fora de tempo efectivamente der mau resultado, poderei sempre acrescentar mais uma aprendizagem a este diário:
a) saber esperar.
Terra Chã, 8 de Novembro de 2012
Sim, é verdade: há apontamentos demasiado fáceis no discurso de Isabel Jonet, que ainda por cima é queque e tem aquele falar afectado que irrita como o diabo. Aparentemente, existe um Portugal que escapa até a quem há vinte anos se dedica a combater a fome. De uma vez por todas: há miséria pelo país, sim senhora – é evidente que há miséria.
E, no entanto, talvez devêssemos ouvi-la. Não se pode pedir aos jovens urbanos que tenham memória de uma coisa que nunca viveram. E talvez também não se deva pedir aos adultos rurais que se lembrem de uma vida que se esforçaram por esquecer. Mas eu não consigo deixar de recordar-me desse tempo em que não podíamos comer bifes todos os dias. Nem sequer todas as semanas. Desse tempo em que vomitávamos chicharrinho frito pelos olhos e em que, nos dias de festa, se comprava um quilo de carne moída para fazer hambúrgueres amassados à mão.
Eu vivi essa vida, esse tempo. Esse tempo foi anteontem. E nem sequer vou preocupar-me muito com qualificá-lo: haveria talvez momentos em que era frustrante e triste, mas também aspectos em que era harmonioso e cheio de possibilidades. Não sei: as infâncias felizes são sempre recordadas com felicidade, independentemente da escassez. Tão-pouco há aí qualquer heroísmo: houve quem penasse mais – incomparavelmente mais.
[Parágrafo para ser lido apenas depois da minha morte.]
Agora, eu conservo em mente o que a nossa vida mudou desde então. O que mudou a minha e o que mudaram as de todos aqueles que eu conheço. E sei que, em regra, gastámos de facto acima daquilo que podíamos. Ou, nos casos menos dramáticos, exactamente o limite daquilo que podíamos, o que em todo o caso é um absurdo.
Fomos induzidos a isso pelo sistema económico? Ah, pois claro que fomos. O Estado pactuou com essa indução? Ah, pior claro que pactuou. Tivemos azar com as nossas elites? Ah, pois claro tivemos – mas é evidente que tivemos.
De três coisas, porém, podemos ter a certeza: o sistema económico não vai mudar, o Estado continuará a ser um monstro e as nossas elites permanecerão uma merda. E, embora o sistema económico, o Estado e as elites sejam superlativamente mais responsáveis por esta recessão do que os contribuintes, coitados deles, só há uma maneira de as famílias portuguesas não tornarem a passar por isto que estão a passar agora: é, como diz Isabel Jonet, reaprendendo a viver.
Reaprendendo totalmente a viver.
E o que me parece é que quem chama "inacreditável" ao discurso da presidente do Banco Alimentar Contra a Fome está à espera de que esta recessão acabe para começar tudo de novo. É uma loucura. Nós não podemos começar de novo. Simplesmente não podemos. O que é a maior de todas as desgraças com que este tempo nos presenteou. E a confirmação, já agora, da mais importante e dolorosa máxima de Steiner.
Não temos mais começos.
November 17, 2012
Terra Chã, 11 de Novembro de 2012
Segunda fase da horta: construção das protecções para os canteiros.
Duas aprendizagens:
a) aceitar a ajuda do velho pai sempre que ele a propuser,
b) pedir humildemente a ajuda do velho pai quando ele não a propuser.
Terra Chã, 9 de Novembro de 2012
E depois há o ti Vieira, pai do Luciano, cujos olhos azuis e sorriso malandro me parecem sempre esconder tanto. E o ti José Nogueira, uma enciclopédia sobre o amanho da terra, que até usei como personagem n’Os Sítios Sem Resposta.
Já morreram muitos dos velhos da freguesia, mas alguns resistem ainda. E é também à procura deles que empreendo este regresso.
À procura das suas memórias, dos seus saberes, do seu modo de vida. Do que resta desses Açores do Bem, desses Açores de antes deste sensualismo assistencialista, desses Açores em que se digladiavam a necessidade e a beneficência e, no fim, contra a própria natureza da espécie, triunfava a beneficência.
Falta-me José Guilherme. Mas o seu espírito permanece nesta casa. E, na verdade, é na sua morte, em grande parte, que eu me fundo. Na morte dos homens bons, provavelmente, se fundam sempre os homens que desejam ser bons também.
Terra Chã, 7 de Novembro de 2012
Primeira fase da sonhadíssima horta: implantação das telas através das quais plantarei a maior parte das coisas, para evitar gastar dias inteiros a sachar e a mondar.
Quatro aprendizagens:
a) usar luvas,
b) reservar o dobro do tempo previsto para a tarefa,
c) cancelar a caminhada das sete da manhã,
b) voltar a comer uma bavaroise de maracujá ao almoço.
Terra Chã, 6 de Novembro de 2012
Detesto quando os continentais tratam os Açores como se isto fosse uma terra de gente atrasada, onde se calhar nem sequer há luz. Aqui na Terceira, pelo menos, temos tido luz imensas vezes.
Terra Chã, 5 de Novembro de 2012
Mas a terra, a terra verdadeira, não tem nada a ver com a religião. A terra verdadeira é aquilo: sair da loja moderninha, tomar o caminho de Angra, parar em casa do Valadão para copiar algumas ideias para a horta e vir de lá com um saco cheio de alhos porros e abóboras e plantios diversos. Não foi por filosofia que no-los deram, o Valadão e a sua adorável Marília: foi porque aqui, nos Açores, talvez no campo em geral, as pessoas partilham, presenteiam, ajudam. E o que funda essa reconfortante tradição, essa generosidade, não é outra coisa – mais uma vez – senão a necessidade.
Terra Chã, 4 de Novembro de 2012
Tenho sempre algumas reservas, como aliás já escrevi bastas vezes, quanto aos ecologistas, aos vegetarianos e à demais fauna da bem-aventurança verde. E o facto é que, cruze-me com eles onde me cruzar, não demora até que comece a escutar palavras como “biológico” ou “orgânico” ou “sustentável” no mesmo tom proselitista (e moralista, claro, um tom moralista como o diabo) em que, antigamente, os profetas debitavam os mandamentos.
Ontem, por exemplo, fui à nova loja da Cooperativa BioAzórica, na zona verde da Praia da Vitória, e ao fim de poucos minutos já estava a ouvir, mesmo ao lado da minha mesa, a tese de que as pessoas estão a regressar à terra e à agricultura pela razão errada. Ou seja: por necessidade. Naturalmente, tive de fazer um esforço para não me levantar de imediato e erguer o indicador: “Objecção, senhor padre, objecção!”
As pessoas nunca se aproximaram da terra por razões filosóficas. A razão fundamental para que as pessoas se aproximassem da terra, tão dura como ingrata (caramba, às vezes basta um nevoeirinho para dar cabo de uma cultura com semanas de trabalho acumulado), foi sempre a necessidade. À filosofia, só a descobrimos recentemente. E tem de facto algum sentido, quando cultivada com critério e moderação. Mas tudo o resto será utilizá-la, também a ela, para ocupar o lugar deixado vago por Deus.
No mais, é um lugar encantador, a loja: um edifício aprazível e bem localizado, com produtos bonitos e refeições ao mesmo tempo suculentas, saudáveis e baratas. Talvez venhamos a aprender algumas das receitas, agora que parece que ganhámos anos de vida e, de repente, sentimos o impulso de protegê-los. E vamos seguramente aprender algumas das técnicas da agricultura biológica também. Já estamos inscritos no workshop de Janeiro.
Terra Chã, 3 de Novembro de 2012
A alcatra de feijão do Ti Choa é o melhor prato de feijão português – e eu ponho as botas em cima da mesa de qualquer cozinheiro transmontano e digo exactamente disso.
Terra Chã, 2 de Novembro de 2012
Tenho estado aqui para criticar. E continuarei a estar, isso é certo. Mas é preciso reconhecer que os primeiros dados sobre a composição do Governo de Vasco Cordeiro são positivos. Um executivo mais jovem, mais pequeno e, em regra, mais qualificado? E com um nome como o de Luiz Fagundes Duarte na Educação e na Cultura, as áreas que mais resposta poderão dar à urgência de restituir massa crítica, brio e autonomia a este povo tão infelizmente adormecido? Não é um mau começo. E, embora o começo, perante a monstruosidade dos desafios que se avizinham, seja pouco mais do que nada, é devido um elogio. Por agora


