Joel Neto's Blog, page 83
November 4, 2012
Terra Chã, 24 de Outubro de 2012
“Está meio arrepiado”, diz o ti Henrique Cabaça, com um sorriso acastanhado, o saco plástico enfiado (como sempre) no bordão posto sobre o ombro. Foi a primeira vez que nos autorizou a ir além dos bons-dias.
Todas as manhãs, às oito e cinco em ponto, em mangas de camisa ou com o guarda-chuva na mão, molhando os sapatos, saímos para a mesma caminhada: dos Dois Caminhos à Terra do Pão, pela Canada da Francesa, e novamente aos Dois Caminhos, agora pela Canada dos Folhados. Chegamos ao supermercado entre as oito e trinta e as oito e trinta e dois, mesmo à hora de abertura, e gastamos primeiro dois euros e setenta e oito num pão e dois queijos frescos e depois um euro e vinte em dois cafés.
A certa altura, já é como se estivéssemos dentro de “O Dia da Marmota”, de Harrold Ramis: a mesma senhora esperando a urbana, sempre de pé no mesmo lugar, a mesma rapariga saindo apressada para o trabalho, num Opel Astra branco, os mesmos mestres comprando pão e atum para o almoço, num raide muito rápido enquanto a carrinha das obras espera do outro lado da rua, o mesmo cãozinho amarelo que, ao ladrar-nos furioso através de um portão verde, dá voltas sobre si próprio.
Ao ti Henrique Cabaça – que provavelmente não se lembrava de mim, mas já deve ter indagado –, apanhamo-lo invariavelmente ao longo do Caminho D’Além, caminhando em sentido contrário ao nosso, do outro lado da rua. Se já vem lá em cima, no Rosário, estamos atrasados e já não chegaremos a casa antes das nove e dez, dificilmente conseguindo – como é imperioso, tal é a disciplina exigida pelo ofício – começar a trabalhar às nove e meia. Se ainda vem aqui quase à porta, em frente à casa da Tia Olga, então estamos a horas.
Esta manhã apanhámo-lo já quase no Canto da Quinta, o que significa que não vínhamos nem bem, nem mal. Mas chovia abundantemente, pelo que tínhamos desculpa.
E então disse-nos: “Isto hoje está meio arrepiado”, prolongando o último “a”, à terceirense. “Arrepiado”, originalmente, era de frio, mas o tempo permitiu-lhe ser de chuva também. Está arrepiado de chuva, hoje. E está bom.
Terra Chã, 23 de Outubro de 2012
O impulso de, a cada queda, voltar imediatamente para cima do cavalo – essa faculdade não vou perder, de certeza. Para isso, de resto, não preciso de um jogo injogável.
Terra Chã, 22 de Outubro de 2012
O golfe é um jogo maravilhoso, e o tempo que exige para uma simples partida de 18 buracos constitui, bem vistas as coisas, um dos seus maiores encantos. Durante quatro horas, nada mais no mundo existe a não ser aquilo, aquele desafio, aquele lugar de homens devastados, aquela comunhão, aquele abismo.
Mas não deixa de constituir uma descoberta extraordinária verificar a disponibilidade que de repente se ganha quando se começa a reduzir na dependência. Afinal, já não é preciso fazer noitadas de trabalho todos os dias. Afinal, consegue-se almoçar sentado boa parte da semana. Afinal, é possível passar algum tempo com a família, efectivamente olhando os rostos. Afinal, pode-se retomar as futeboladas com os amigos e dormir um bocado mais ao sábado e jogar uma bilharada de vez em quando e ir ao cinema e jantar a dois e ler mais livros e até – pasme-se – escrever de facto livros, essa suposta obsessão para a qual já antes do golfe reclamávamos não ter tempo (circunstância por que, aliás, tanto nos penalizávamos).
Para mais, assim não há duplo-bogey, nem rough, nem shank, nem linha de putt, nem imponderável, nem incompetência que nos deixe com um humor de cão durante uma semana inteira. A própria chuva deixa de ser um inimigo para tornar-se uma presença tangível.
“Ele desfruta daquela paz perfeita" – escrevia P.G. Wodehouse de uma das suas personagens – "daquela paz para além de todo o entendimento que só atinge o seu máximo esplendor quando um homem desiste de jogar golfe.” E eu percebo, enfim, porque o escrevia.
Não, eu não desisti ainda. Não desisti, mas sinto-me, enfim, livre de obrigações. E o funesto, para aqueles que vivem nas cidades, é que de facto não se podem sentir livres delas. Como deixar de ser um homem devastado enquanto se permanece amarrado a uma grande cidade?
Terra Chã, 10 de Outubro de 2012
[Entrada para ser lida apenas depois da minha morte.]
Terra Chã, 20 de Outubro de 2012
Sábado, oito da manhã. A Catarina está a tomar banho e eu acabo de vir da garagem, onde fui buscar a roupa seca para a Teresinha tratar.
Daqui a pouco vaguearemos pela cidade, a comprar pequenas coisas para o apetrecho da casa, um trabalho-em-curso que não se concluirá nunca. À tarde haveremos de dar uma volta pela ilha, conduzindo devagar sob a chuva miudinha e parando para comer na Praia da Vitória – e, antes de voltarmos, passaremos seguramente nos Biscoitos, nas barraquinhas junto à praia, para comprar frutas e legumes.
A nossa vida é rotineira e entediante. É rotineira mesmo para nós e seria entediante para qualquer lisboeta. Todos os dias, porém, me pergunto como é possível ter demorado tantos anos a regressar a um lugar tão maravilhosamente assim – e não há instante em que não deseje, acima de qualquer outra coisa, não ter dado cabo da minha saúde a um tal ponto que agora já não vá a tempo de gozar esta terra como ela merece ser gozada.
Nenhum tédio resiste a alguém que permaneça capaz de povoar-se a si próprio. E a tragédia das grandes cidades, tal como eu as conheço, é precisamente essa: não somos nós que nos povoamos – povoam-nos.
November 2, 2012
Terra Chã, 2 de Novembro de 2012
O Pedro Vieira, acabadinho de ganhar o Prémio Revelação do PEN Club (parabéns, Pedro!), é um dos autores que já responderam ao Questionário de Proust Revisitado Por Joel Neto, que a Booktailors me deu a honra de elaborar. As respostas, como era de esperar, são francamente melhores do que as perguntas. Check it out!
October 27, 2012
Terra Chã, 19 de Outubro de 2012
Às vezes é só isto: precisar de troco, ir à mercearia, esticar uma nota de vinte ao proprietário, sem comprar nada, e receber de volta uma de dez, duas de cinco e um sorriso.
Terra Chã, 15 de Outubro de 2012
Há alguma coisa de mágico nesta sucessão de acontecimentos. Primeiro, a derrota enorme, muito para lá dos piores pesadelos de um açoriano preocupado com o rumo da sua gente. A seguir, o regresso a uma casa às escuras, na sequência de mais um enorme apagão na ilha Terceira. Depois, o mergulho em "Joseph Anton-Uma Memória", madrugada dentro, à luz de um candeeiro a petróleo, sem noite eleitoral na TV, sem internet para acompanhar os resultados, sem Facebook para esgrimir argumentos. E, de manhã, a caminhada de seis quilómetros ainda escuro, com a Catarina. Dois dedos de conversa com um amigo, durante a paragem para comprar o pão. A lida básica da casa, um café quente, os computadores e os tablets e os telefones ligando-se devagarinho. E esta janela.
Esta janela por onde entra a luz e o verde e a encosta de acácias e criptomérias e castanheiros sob a qual se estende o milheiral que pretendo agora transformar em horta. Há alguma coisa de mágico e de abençoado e de apaziguador nisto. Quatro textos, ao longo do dia, para os jornais de Lisboa. Umas linhas mais do livro novo, pelo menos – ou, na pior das hipóteses, algum trabalho na personagem pícara de que a trama depende tanto, e ainda tão infelizmente incongruente. Cheira intensamente a Outono e, porém, ainda anteontem dei um mergulho na Salga. Magia e paz. O meu mundo todo no lugar certo. Quem dera, na verdade, a Joseph Anton, esse indiano sombrio que Salman Rushdie teve de inventar para fugir à sua fatwa.
Paz.
Terei o direito de ficar com tudo isto para mim e poupar-me a mais trabalhos em defesa da minha gente?
Terra Chã, 10 de Outubro de 2012
[Entrada para ser lida apenas depois da minha morte.]
Terra Chã, 4 de Outubro de 2012
Assinei hoje com a The Mertin, a mais importante agência de representação internacional das literaturas lusófonas e ibero-americanas, um contrato de três anos. O convite partiu da própria Nicole Witt, a mulher que gere a colocação nos mercados estrangeiros dos livros, por exemplo, de José Saramago e Gonçalo M. Tavares. A representação começa já na Feira de Frankfurt, na próxima semana. A ideia de começar a ver surgirem propostas para a tradução de “Os Sítios Sem Resposta”, evidentemente, é excitante, quase vertiginosa. Mas o simples interesse de uma casa de tal dimensão tem um significado em si próprio. Sonhava com ele, mas não o esperava. Não ainda. E até por isso este regresso a casa transborda acuidade. Passar os próximos anos, quem sabe se o resto da vida, a escrever para o mundo a partir da Terra Chã – nada podia ser mais encantador do que isso.


