Joel Neto's Blog, page 55
September 19, 2013
Terra Chã, 19 de Setembro de 2013
O ministro retirou obrigatoriedade ao ensino do Inglês na escola primária e logo o país se pôs todo abespinhado. Sem necessidade. Retirar obrigatoriedade ao ensino do Inglês não tem qualquer significado. Se o Inglês se torna facultativo, então os miúdos e os seus sempre zelosos paizinhos vão continuar a escolhê-lo, de preferência logo a partir da creche. Proibir o Inglês – isso é que era. Tornávamo-lo numa língua espúria e clandestina, com toda a martirização que daí infelizmente decorreria, mas ao menos falava-se um pouco menos de inglês neste país. Fala-se demasiado inglês em Portugal. Os portugueses sabem demasiado inglês. As pessoas sabem demasiado inglês. Eu sei e falo demasiado inglês. Chega de inglês!
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Grande diferença. Critiquei ontem, na minha coluna do “Diário de Notícias”, Carlos Vaz Marques, Ricardo Araújo Pereira, Pedro Mexia e João Miguel Tavares pela ligeireza do humor em torno dos cartazes das eleições Autárquicas. A rábula em causa foi feita no programa semanal de televisão que os quatro dividem no canal TVI24 (“Governo Sombra”), e as reacções de alguns intervenientes não se fizeram esperar. Comentários públicos, emails pessoais – invocaram-se atenuantes, ressalvaram-se objecções, mas em suma tenho razão. Naturalmente, perceberam que a crítica era tanto para o programa como para o olhar da cidade em relação ao campo. E também perceberam que uma coisa é rirmo-nos porque “nós” somos feios e pelintras e outra rirmo-nos porque “eles” são feios e pelintras. Vale a pena, porém, elogiar o golpe de classe. Tratasse-se, por exemplo, de Herman José ou Nuno Markl, que critiquei noutras circunstâncias, e já andariam pela Internet a bater no peito e a mobilizar as tropas e a lamentar o mundo ser tão pequeno. E isto para, no fundo, obterem o mesmo resultado aqui obtido, mesmo que como efeito colateral: a condenação do crítico, após redução espontânea do dilema ao Sporting-Benfica do costume (élan sem o qual, de resto, o próprio crítico não vive, o que só vem provar que, bem jogado, se trata de um jogo a contento). A inteligência é um bem muito precioso.
September 18, 2013
Terra Chã, 18 de Setembro de 2013
Às vezes volto a “Ele”, o texto com que abri a “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa”. Fala sobre José Guilherme e é, de tudo o que já escrevi até hoje, o texto a que volto mais frequentemente.
Um ano depois, continua a encantar-me repetir os seus gestos. Usar os seus pratos e os seus talheres, abrir e fechar as portas e as janelas que ele abriu e fechou. Gosto de sentar-me no seu lugar à mesa. Gosto de sentar-me noutro lugar qualquer e de imaginar que ele ocupa o dele.
Mas um fantasma não é, ainda assim, José Guilherme. Não é o meu avô.
Ser ateu é uma merda, e a literatura também não resolve tudo.
Não posso dar-lhe a comer o esparguete de salva (agora parece que se diz sálvia) que a Catarina faz aos sábados para nos vingarmos da dieta. Posso, quando muito, esperar a sua reprovação por termos deixado morrer precocemente a açaflor ao esquecermo-nos de colhê-la dia sim, dia não.
Posso ter as suas referências, a sua memória, os seus valores. Posso cultivá-los, e tento. Mas não posso mostrar-lhe nada.
Gostava de mostrar-lhe os meus livros e os meus jornais. Gostava de mostrar-lhe a Catarina. Gostava de mostrar-lhe os móveis que mandámos construir, e o jardim, e a beterraba que temos a modos de apanhar.
E gostava de dar-lhe a provar aquele esparguete de salva. Ele bebia tanto chá de salva.
September 17, 2013
Terra Chã, 17 de Setembro de 2013
Telefonema do LMR, no sábado, a transmitir convite para a próxima edição do Festival Literário de Poços de Caldas. Confirmação oficial esta manhã, por email. Convite aceite, naturalmente. Tenho saudades do Brasil e não conheço Minas Gerais, de modo que iria sempre. Mas Poços de Caldas, reconhecida como a cidade brasileira com melhores índices de leitura, é cada vez mais incontornável no panorama literário brasileiro. Em Abril/Maio próximos, não apenas poderei divulgar os meus livros, como terei a oportunidade de conhecer vultos maiores da literatura do país-irmão, a começar por Ferreira Gullar (o patrono da edição 2014). E, ademais, o tema é-me caro: “A Cultura Popular na Arte da Literatura.”, precisamente a minha mais antiga obsessão estética. Lá estarei, pois. Este Inverno, com romance em curso e tudo, vai ser um tirinho. Até temo que passe depressa de mais.
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Aconteceu. Li "Maio", escrito com letra maiúscula, e estranhei por um ínfimo e eloquente momento.
September 16, 2013
Terra Chã, 16 de Setembro de 2013
“Coragem, perseverança e tempo”, diz-me a T., a meio de uma pequena entrevista que usarei numa reportagem sobre a empresa dela, a publicar na “Notícias Magazine”. Di-lo casualmente e sem sublinhar em especial qualquer dos elementos. E, porém, não me saem da cabeça, essas duas palavras: “E tempo.” O tempo que nós temos de esperar, vencendo a ansiedade, e também o tempo que as coisas demoram em si próprias – a sua respiração, a sua translação específica –, o que não é exactamente a mesma coisa. A aquisição da sabedoria tem dois momentos: a identificação dela e depois a sua integração. Há muito tempo que eu identificara o imperativo do tempo. Mas só agora – parece-me percebê-lo com este livro – começo de facto a integrá-lo. Levou tempo.
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Por outro lado, um tipo que passa o domingo pelo jardim, a tirar fotografias e a fazer sucessivos desvios até à horta, para apanhar tomates, está um bocado sem saber para onde levar o texto em curso...
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Setembro é o mês das buganvílias, e só por isso merecia existir. Mas é também, se observado de uma determinada perspectiva, o mês mais romântico de todos. E, para mais, este ano tem-nos proporcionado a melhor meteorologia do Verão. Como não amá-lo?
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Dizia Daniel Innerarity no “Público” de ontem: "O que se está a passar está a ser mal explicado. Não o entendem os políticos, não o entendem os cientistas sociais, não o entendem os filósofos, não o entendem os cidadãos. (...) Os cidadãos deveriam ser sinceros e reconhecer que também não sabem o que deve ser feito. Por vezes estamos a criticar o que é feito pelos políticos com base na ideia de que os cidadãos saberiam perfeitamente o que deveria ser feito, mas que infelizmente tivemos o azar de nos ter caído em cima uma classe política que não sabe o que fazer. Este quadro não é real. É um quadro populista." O quê?! E simplesmente desistir de todo o sistema filosófico que o Facebook nos tem permitido construir?
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Não nos acomodarmos ao pensar da tribo que integramos. Não nos cingirmos à nossa personagem, à nossa marca. Partir em busca de novos caminhos para ela. De outra personagem ainda. De outra personagem melhor. Não nos acomodarmos. É urgente não nos acomodarmos intelectualmente. Eis aquilo de que muitas vezes se esquecem aqueles que recusam acomodar-se romântica, profissional ou financeiramente.
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Ouço na TSF que, na célebre Escola da Ponte, em Santo Tirso (sim, essa mesmo sobre que todos os órgãos de comunicação social estão convidados a fazer uma grande reportagem de cinco em cinco anos), as dúvidas que os miúdos põem aos professores são sobre coisas que vêem na televisão, ou assim. Televisão?! Já não se fazem Quintos Impérios como antigamente...
September 15, 2013
Terra Chã, 15 de Setembro de 2013
A Universidade dos Açores, um dos sustentáculos desta Autonomia, agoniza. Professores são dispensados, cursos estão em dúvida, os alunos desesperam. Simplesmente não se sabe se haverá ensino este ano. Ou universidade sequer. Este ano ou em mais algum ano que seja.
Motivo: não há na Região os 1,7 milhões de euros necessários ao ano académico de 2013-2014.
É fantástico!
Em Setembro do ano passado, em cima das eleições Regionais, o Governo de Carlos César garantiu a eleição do Governo de Vasco Cordeiro distribuindo sete – repito: sete – milhões de euros a título extraordinário. Isto entre todo o tipo de instituições "agregadoras" (portanto cheias de eleitores). Sete milhões que apareceram milagrosamente debaixo das pedrinhas, e numa altura em que os duodécimos do orçamento regional já estavam gastos até Dezembro.
E nesse valor - note-se - nem sequer foram contabilizados os apoios a clubes de futebol, corporações de bombeiros ou sociedades filarmónicas.
Como é que isto se explica?
September 14, 2013
Terra Chã, 14 de Setembro de 2013
Tenho sido injusto com os lisboetas, queixam-se alguns. Admito que sim. Mas é em Lisboa que não se pode andar na rua com um saco de plástico na mão, não é? É em Lisboa que se guardam os saquinhos das lojas de roupa para andar com a chaleira eléctrica que é preciso levar à reparação, para transportar os livros que se tem de devolver na biblioteca, para levar o lanche para o trabalho – não é? E é em Lisboa que Deus nos livre de sermos apanhados com um saquinho da Zara em vez daquele da Hugo Boss, onde há quatro anos comprámos uns boxers – é ou não é?
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E, ademais, nem sempre estes cartazes autárquicos com que Lisboa anda a gozar a aldeia – às vezes com graça, não é esse o ponto – são de facto ridículos. Nem sempre os nomes das terras são parvos ou o cartaz está mal paginado ou há erros de português nos slogans. Às vezes ocorre apenas que as pessoas são feias. Apenas isso: as pessoas são feias e, provavelmente, levam o lanche para o trabalho num saquinho da Zara.
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Eis, portanto, alguns dos recursos da conversa com o Pereira, ontem à noite, jantando em frente ao Ilhéu das Cabras. Encontrei muita gente, ao longo dos anos, com quem foi extraordinário conversar. Mas poucos (se é que alguns) melhores conversadores do que os Pereiras. Um milagre.
September 13, 2013
Terra Chã, 13 de Setembro de 2013
Quando a acácia está ainda viva, mas já não propriamente verde; quando é Setembro e o calor da terra se difunde como que num esforço de despedida; quando a moto-serra liberta gasolina sobre a dor da acácia e a seiva da floresta e a respiração dos eucaliptos – aí se encontra, afinal, o cheiro que procuro há mais de uma década. O cheiro do mais delirante e louco tempo da minha vida, e sobre que aliás ainda hei-de escrever aqui muitas vezes: cinco ou seis semanas pelo Sahel, entre Ouagadougou, Bobo-Dioulasso e Sicily, com o Sourrabié e os Guillaume, o Alhinho e os espanhóis, a ver futebol, a caçar pirilampos e a despedir-me de uma certa juventude. Tenho andado preguiçoso com a horta, agora que nos encontramos numa espécie de semidefeso, mas quanto à madeira não pude escapar-me: há que pô-la a secar para o Inverno e, portanto, lá fui ontem com o Chico, moto-serra na mão, machados e foices às costas. Pois lá estava ele, enfim: o cheiro. O cheiro a que me agarrava para não me esquecer. Quando se tem memória, a vida não deixa nunca de ser divertida. Nem romântica.
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A Catarina fez uma clutch e o mundo voltou a parecer-me todo ele belo. Concentrado ali: naquele pano de linho coberto de tricô, no fecho éclair comprado na Loja Vidal e na costura à mão que os unia a todos.
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Tenho o cotovelo direito, como se diria no Alentejo, num estrivalim. Sinal de que a humidade começa a acentuar-se, anunciando o Outono. As epicondilites, está confirmado, são maleitas com que vou ter de aguentar-me: viraram mesmo crónicas (embora a direita me custe mais do que a esquerda), só devem levar infiltrações como último recurso e, enfim, pode ser que com o tempo desapareçam, embora para voltarem dali a dois ou três anos. O pior é o golfe. Quanto ao resto, começar a ter dorzinhas apenas aos quarenta não me parece nada mal. E daqui a pouco lá estarei, no Negrito, para uma hora de braçadas e água salgada, para tentar mitigar o problema e, em todo o caso, sentir-me inquebrantável. Estou determinado a continuar diariamente Outono fora. Enquanto aguentar, isto é. Mas não seria maravilhoso se aguentasse o ano inteiro?
September 11, 2013
Terra Chã, 11 de Setembro de 2013
Vou zurzindo nos lisboetas – a que também chamo “moderninhos”, ou simplesmente “urbanos” –, caricaturando a rodos e, de algum modo, sujeitando-me ao ridículo. Mas o facto é que há ali uma personagem.
O lisboeta de que falo é de classe média e é, para a maior parte dos efeitos, um intelectual. Mas também é, mais do que um intelectual, um esteta: ao mesmo tempo um cultor e um polícia do bom-gosto, blasée e de nariz franzido, obcecado com a identificação da medida certa e disposto a morrer se algum dia a ultrapassar.
Devemos-lhe muito, na verdade: sem ele, era o abandalhamento total. Mas estar na pele dele, não – estar na pele dele não pode passar de um missão, algo a que nos dedicamos numa fase da vida e depois recuamos, para recuperar a perspectiva.
Porque o lisboeta não se pode permitir a simples ideia de cair no ridículo, e isso não apenas lhe tolhe os movimentos, mas amputa-lhe membros.
Um lisboeta nunca arrisca e raramente experimenta. É céptico por disciplina militar e absoluto quase sempre, mas apenas com o inatacável (fora um ou outro espinho na carne, para enfeitar). É cobarde – talvez o sejamos todos de alguma maneira, mas esta é a dele – e está refém da personagem que construiu.
Naturalmente, a personagem é o código primeiro do intelectual – o seu território de valores e disputas, a sua linguagem. Mas o lisboeta não se pode permitir transcendê-la, e essa é a sua tragédia.
Um lisboeta está sempre em pose, sempre sob escrutínio. Não se esparrama no sofá a ver as raparigas d’“O Sexo e a Cidade”, nem vai ao café com as calças de estar em casa, nem bebe uma Super Bock pela garrafa, a não ser que esteja a cozinhar, com um jazz na aparelhagem ao fundo, e haja um fotógrafo por perto.
O lisboeta está proibido de deslumbrar-se, a não ser com a sua própria figura, que observa a partir do outro lado da rua, onde estacionou de propósito para se observar a ser um lisboeta. Ou um esteta.
O esteta desconfia – em suma é isto. E o problema é que, quando a vida finalmente nos ensina alguma coisa (e, se não ensina, lá está para no-lo explicar Graça Morais, nesse magnífico documentário que é “MHM-Manuel Hermínio Monteiro”, de André Godinho, que a RTP2 milagrosamente passou há dias), é que os homens cultos acreditam.
Os ignorantes, sim: desconfiam. Os homens cultos acreditam. Para mal dos pecados do lisboeta. Deste lisboeta em particular: a mais irresistível de todas as minhas personagens. Que, ocorrendo em Lisboa, às vezes nem é autóctone – e em muitos casos nem sequer chega a pôr os pés na cidade ao longo de uma vida inteira.
Terra Chã, 10 de Setembro de 2013
A Comissão Nacional de Eleições quer impor às estações de televisão uma cobertura igual de todos os partidos e, por isso, elas decidiram em conjunto boicotar as Autárquicas. Pensando bem, é um momento definidor. E está tudo errado:
- a CNE, que ainda vive no PREC;
- a RTP, que não consegue assegurar a sua obrigação de cobrir de igual modo (ou seja: no interesse do Estado) todas as campanhas;
- a SIC e a TVI, que não fazem frente às autoridades cobrindo as eleições de um ponto de vista puramente jornalístico (ou seja: no interesse do público), incluindo pesagem e priorização, em consciência, das forças em confronto;
- e o jornalismo em geral, que – está mais do que visto – prefere deixar quase todo o debate a cargo da "democracia" do Facebook, onde estas eleições são sobretudo pimba e muito, muito divertidas.
Voltamos a bater no fundo e o fundo volta a descer um pouco. Não tarda bateremos de novo – e assim sucessivamente.
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Quanto à Síria, confirma-se em absoluto: a esquizofrenia da classe média ocidental (e portuguesa em particular) atingiu o ponto de rebuçado. Lembrem-se disto, amiguinhos: houve um dia em que Putin efectivamente foi o vosso herói. Pois, por mim, já não consigo mais. Beijinhos e vemo-nos no inferno. Eu também vou, mas pelo meu próprio pé.
September 9, 2013
Terra Chã, 9 de Setembro de 2013
É bom voltar à rotina. E ao trabalho. Nem sequer conheço outro modo de valorizar as férias.
Entretanto, e depois de uma semana a tomar notas e sem vontade de escrever, pode ser que ainda arranje tempo para perorar sobre como:
– … apanhámos, para as férias, nada mais nada menos do que a melhor semana do ano. Quantas vezes terei podido dizê-lo ao longo da vida?
– … tenho a impressão de que não volto a queimar dias de férias com as idas a Lisboa. A partir de agora, viagens só com o computador e os prazos às costas. Deve haver poucas coisas mais maravilhosas do que gozar a pausa em casa. Pelo menos quando se vive numa casa assim.
– … foi bom abrir as férias a ver o derby com o velho pai, foi bom ter cá os cunhadinhos, foi bom concluir a noite de domingo a comer pizas sobre o mar do Negrito, foi bom fazer um jantar de alcatra para o Brum, foi bom ir pescar com o Márcio, foi bom passar na festa de aniversário da Terra Chã para uma cerveja e dois dedos de conversa, foi bom encontrar o Capareira na Salga, foi bom o Pereira vir cá a casa trazer um bolo de massa sovada e também foi bom termos reservado quatro dias só para nós.
– … até a Festa dos Trintões nos pareceu magnífica, dançando Bryan Adams e bebendo vodcas à chuva, pela noite dentro, enquanto toda a gente da minha geração – mas toda a gente mesmo – se ia bamboleando, feliz, sob o céu de Santa Bárbara.
– … a experiência de cinema ao ar livre no Q.B. foi um êxito, trouxe boa projecção à segunda vida do Cine Clube da Ilha Terceira e com certeza há-de voltar para o ano. Até porque o público já pede ciclos de cinema português e de animação.
– … voltei a jogar 18 buracos de golfe, não acertei na bola, passei as 90 pancadas, fiquei cheio de dores no braço e, muito provavelmente, vou deixar passar mais umas quantas semanas até voltar a dar-me ao trabalho.
– … a Serreta virou o Paris-Dakar dos caminheiros terceirenses: toda a gente quer participar. Custa-me fazê-lo, porque não possuo fé e não quero faltar ao respeito à tradição. Mas tenho esperança de que, para o ano, consiga encontrar um espírito que me permita fazer-me à estrada sem ligeireza nem sentimento de culpa.
– … duas alemãs se sentaram a tomar café na nossa mesa, um dia destes, e isso me pareceu conter tudo o que importa distinguir entre eles e nós. Eles não concebem o desperdício de recursos, ainda que o recurso em causa sejam apenas duas cadeiras de esplanada. Nós achamos que podemos ocupar uma mesa inteira, mesmo estando sozinhos – e que, se alguém se senta numa das cadeiras sobrantes, não apenas nos viola um direito, como exibe a sua distinta lata.
– … “Maldito Seja o Rio do Tempo”, de Per Petterson, é um livro extraordinário que o editor quase conseguiu aniquilar. A tradução, a revisão, o copying: é tudo demasiado mau – mesmo pior do que aquilo que gostamos dizer em relação a todas as outras traduções.
– … uma pessoa se absolve das figurinhas que fez ao longo da vida, na obsessão de vender meia dúzia de livros, quando lê sobre as estratégias de autopromoção de Balzac e Stendhal, os anúncios de Hemingway e Steinbeck a cervejas e esferográficas, as criticas anónimas aos seus próprios livros que Whitman fazia publicar nos jornais ("Enfim, um bardo americano!", suspirava) ou a disponibilidade de Simenon para, a troco de cem mil francos, escrever um romance inteiro dentro de uma caixa de vidro pendurada à saída do Louvre, ao longo de 72 horas em que discutiria as opções da intriga com os leitores.
– … esta arrogância lisboeta para com os candidatos autárquicos da província, todos eles uns bimbalhões populistas e sem ideias, já me chateia. E muito.
– … regressar a “Mau Tempo no Canal” é um duplo milagre. Nós continuamos vivos. O livro parece ainda mais prodigioso.
– … o debate em torno da provável intervenção norte-americana na Síria vem batendo todos os recordes de desonestidade intelectual. O mundo facebook – assim mesmo, com minúscula, como adjectivo que é – tornou-se definitivamente insuportável e nem por isso ficou intelectualmente mais honesto.
– … o Pôr-do-Sol, em Santa Bárbara, é um lugar encantador. Serve umas lulinhas efectivamente muito boas e ter-me-ia todos os domingos à porta se um dia pegasse em meia dúzia de euros e rasgasse uns janelões em direcção à ilhas e ao crepúsculo. Que desperdício.
– ... fizemos seis anos de casados e pudemos dizer que foram seis bons anos, dos quais o último melhor. Sempre o dissemos, mas nem sempre tão honestamente como desta vez.


