Joel Neto's Blog, page 51
November 6, 2013
Terra Chã, 6 de Novembro de 2013
Está decidido: este ano passo o Natal na Terra Chã. Há precisamente dezasseis anos que não o passo com os velhos pais. Penso nisso e pergunto-me como posso ter deixado os anos acumularem-se desta maneira. Nada me ocorre agora senão recuperar o tempo perdido. Ainda temos muitos Natais para passar juntos – eis aquilo que disse ainda há pouco a mim próprio. Portanto, até aí consigo ser meu psicólogo. Com a culpa é que ainda hoje não sei como se lida.
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O Melville passou uma hora a lutar com uma pantufa velha. Perdeu a luta e agora adormeceu aqui ao lado da secretária, de barriga para cima, com as quatro patas ao alto. Isto não é um cão, é um gato.
Terra Chã, 5 de Novembro de 2013
Não se percebe as águas vivas. Aparecem com sol e com chuva, com a água quente e a água fria, com o vento Norte e com o vento Sul. Talvez lhe tenhamos capturado os predadores, não sei. Sei que hoje não me deixaram nadar, mas que apesar de tudo foi apenas (salvo erro) o segundo ou terceiro dia útil que não nadei nas últimas quatro ou cinco semanas. De resto, amanhã estou de volta, e sempre que estiver de volta terei ganho mais uma pequena batalha na guerra contra o Inverno. No fim se farão as contas.
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O Reverte está aborrecer-me um tanto, e ainda por cima hoje chegou-me o novo Zadie Smith. Tento tentado que pelo menos uma parte das minhas infidelidades ocorra com raparigas giras.
Terra Chã, 4 de Novembro de 2013
Não, o Pão-por-Deus não acabou. Resistiu mesmo à ausência de feriado, mesmo se ontem nos sobraram bastantes mais rebuçados do que no ano passado. Creio que este foi o pior ano e que em 2014 a tradição se terá revitalizado um pouco, mesmo que no domingo imediatamente a seguir ao dia de Todos os Santos. Em todo o caso, teremos de empenhar-nos. Mesmo sendo o Halloween resultado da mesma preocupação de cultuar os mortos, como não se cansou de dizer a A.L. durante a nossa conversa em frente à igreja da Sé, sábado de manhã, o Halloween não precisa de que ninguém o defenda. O Pão-por-Deus continua ameaçado e é nele que devemos concentrar-nos.
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Mais cedo ou mais tarde, terei de reavaliá-lo. Para já, cada semana em que consigo extrair dele seis mil caracteres com um mínimo de interesse, para satisfazer ao menos o compromisso com o “Diário Insular”, já me parece uma vitória. Para dizer a verdade, olho para os elementos do outline afixados pelas paredes, percorro a grelha de capítulos e acrescento-lhe a agenda das colunas fixas nos jornais, e não sei até quando, exactamente, conseguirei manter o ritmo deste diário. Mas também há-de depender um pouco de mim, não?
Terra Chã, 3 de Novembro de 2013
Naquele dia eu estava tão nervoso, e ainda por cima tinha o fígado em tão más condições depois dos copos noite dentro com a malta do festival, que nem o ouvi. Ouvi-o agora, na transmissão das intervenções feita pela Antena 2. Em Fevereiro, no Correntes d’Escritas, Onésimo Teotónio de Almeida anunciou a minha intervenção com a frase: “Joel Neto é hoje uma magnífica voz da consciência açoriana.” Creio que não poderá nunca haver outro anúncio tão compensador para mim como esse. Desperdicei mais de seis meses de vaidade e gabarolice. Agora, há que recuperar o tempo perdido.
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Carlos do Carmo faz cinquenta anos de carreira. Acompanho-o há mais de vinte, pelo que me sinto no direito de perorar. É o melhor cantor português de que consigo lembrar-me. Cantou os melhores poetas, foi compagnon de route dos melhores compositores, inspirou as melhores imitações. Ouve-se um disco dele e tudo aquilo é trabalho, cuidado, rigor. Portanto, é de facto pena que, nos últimos dez/quinze anos, se tenha dedicado tanto ao seu próprio traje de luzes e, no geral, fale hoje muito mais do que aquilo que canta. Ainda esta semana, na grande entrevista do JL, pergunta-lhe o José Carlos Vasconcelos, para abrir as hostilidades: “Com que pergunta começaria uma entrevista a Carlos do Carmo?” E ele, automático: “Perguntaria: ‘Ainda não estás cansado da tua utopia?’” Se eu não estivesse a tentar reduzir nos anglicismos, teria suspirado como os adolescentes: “Oh, please…” Como estou, pus simplesmente o jornal de lado e fui ouvir “No Teu Poema.”
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Confirma-se: o Melville tem muito mais medo da Catarina do que de mim. Ele sabe onde está o poder.
November 4, 2013
Terra Chã, 2 de Novembro de 2013
“Uma Família Açoriana”, nova série da RTP, tem problemas. O som, incluindo registo e montagem, está repleto de imperfeições. A qualidade das interpretações, como é infelizmente frequente na ficção portuguesa, enferma de enormes assimetrias. A anotação, um velho defeito das produções menos cuidadas (mesmo se grandes, ou sobretudo quando grandes), deixa passar em poucos minutos um cavaleiro que parte num cavalo e chega noutro, uma pianista que começa uma peça com um vestido e acaba com outro e uma jarra que aparece ao fundo no início de uma cena e desaparece no fim desta. E, sobretudo, há ali uma inquietante falta de cor local – uma espectacular e inquietante falta de cor local.
Os Açores são mais do que uma série de lagoas escondidas sob o nevoeiro. Os Açores são muito mais do que uma geografia, mesmo tendo em conta o peso da sua paisagem e da sua meteorologia. Os Açores são uma identidade: um edifício de referências não apenas telúricas, mas culturais, sociais, familiares. “Uma Família Açoriana” fala da economia e da política dos Açores, explanando bem o problema da cochonilha que atacou a agricultura das ilhas ao longo do século XIX e caracterizando sem dificuldade o ambiente que levou às primeiras conquistas autonómicas do arquipélago. Mas, a partir daí, é sobretudo a história de uma família rica portuguesa que, por acaso, vivia (ou estava radicada) nos Açores.
Nem sequer sotaque há – e, do pouco que tentou resistir, uma parte foi dobrada. Portanto, chamemos-lhe “Uma Família Portuguesa.” E, sendo assim, o caminho da RTP será por aqui também. Mas com mais rigor. Não acredito que Maria Filomena Mónica e António Barreto gostem muito daquilo em que viram transformado o seu guião original.
November 1, 2013
Terra Chã, 1 de Novembro de 2013
A comoção da semana é em defesa do futebolista Cristiano Ronaldo, que o presidente da FIFA, Joseph Blatter, mimetizou numa conferência para crianças. Escrevi sobre isso n’O Jogo de anteontem e mantenho a opinião. Gosto de recapitular as minhas opiniões, sobretudo quando elas deixam de parecer resultado de um “pensar fora da caixa” para parecerem resultado de um “pensar fora do mundo”, mas continuo sem encontrar motivos para as proporções que o tema assumiu, a não ser esta nova tendência para a histeria nacional – e para a qual os ataques a que a nossa autoestima colectiva tem sido sujeita, nomeadamente pelos “estrangeiros”, certamente contribuem – e uma percepção generalizada de que invectivar Blatter proporcionava, esta semana, uma oportunidade demasiado boa de comunicação para ser desperdiçada (nem sequer o Governo ficou de fora, portanto tenho dito). Nada de muito diferente, no fundo, do que se passou com a comoção anterior – o anúncio da medida, bem vistas as coisas justíssima, de que os portugueses não poderão continuar a ter mais de dois cães e quatro gatos num apartamento –, a não ser que neste caso o adversário foi interno. Estamos cheios de ódio, e o problema é que temos razões para tal. É precisamente isso que transforma esta nossa actual incapacidade de pensar numa tão irremediável desgraça.
Terra Chã, 31 de Outubro de 2013
Fantástica tarde no Posto Santo, na companhia da Antonieta Costa, para uma visita guiada pelos megalitos da Grota do Medo. Não faço ideia das suas datações, não – e quanto a matérias das ciências inexactas, já se sabe, sou por princípio um céptico. Mas, que aquele lugar é especial, isso é.
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Convite do João de Melo (e da Dom Quixote) para dividir com ele a reapresentação pública de “Gente Feliz Com Lágrimas”, numa grande festa a realizar no final do mês, a pretexto do 25º aniversário – e da 23ª edição – do romance. É uma honra, uma enorme honra, simplesmente ter sido convidado. Ir, não. De modo nenhum posso dar-me ao luxo de ausentar-me agora, nesta fase do trabalho no livro. O próprio Natal, espero, hei-de acabar de passar aqui, até porque há muitos anos não o passo com os velhos pais. As viagens em Lisboa continuam prolongados solavancos de compromissos e distracções totalmente devastadores para as urgências deste trabalho de relojoaria fina.
October 30, 2013
Terra Chã, 30 de Outubro de 2013
Vamos lá a ver: eu não sou contra trabalhar de graça. Trabalho porque preciso, mas também porque gosto – e todos os dias (mas todos os dias mesmo) escrevo algum texto especial para aqui ou para ali, elaboro um memorando com sugestões para desenrascar este ou sistematizo ideias para o caso de vir a ter de desenrascar aquele: tudo de borla. Trabalhar de graça é um modo de vida para mim, como para tantos outros na minha área. Mas, caramba, ao menos usem o verbo certo. Por favor, não me “convidem” para escrever de graça para a vossa revista, o vosso site ou a vossa colectânea de contos. “Peçam-me”. Eu só não digo que sim se não puder.
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Diz-me o F., a meio de uma elaboração: “Eu sei que tu és um bocado mais liberal, mas…” Liberal? Há aqui um equívoco. Eu sou contra o assistencialismo gratuito e eleitoralista. Sou contra um modelo de desenvolvimento que alimenta a pobreza porque se alimenta dela, como infelizmente é o modelo de desenvolvimento em vigor nos Açores. Sou definitivamente contra um modelo de governação que nos coloca na cauda nacional, e inclusive atrás de várias regiões ditas em vias de desenvolvimento, em todos os índices de desenvolvimento humano. Liberal, no que verdadeiramente significa ser um liberal, não sou. Quero o mínimo de Estado possível, mas acredito no Estado. O Estado é o menos mau factor de coesão ao nosso dispor e, devendo sair de tudo aquilo de que puder sair, deve estar em tudo aquilo em que tiver de estar. Dito isto, isso em que ele tem de estar é, nos Açores, muito mais do que aquilo em que tem de estar (por exemplo) em Portugal. Não: nem propriamente liberal, nem de modo nenhum socialista. Nem em abstracto, nem aqui, onde aliás nada alguma vez poderá resumir-se à dicotomia Adam Smith/Karl Marx. Não tenho bem a certeza da origem da confusão, mas em todo o caso parece-me importante esclarecê-la.
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O meu pai comprou esta semana um vitelo. Vai engordá-lo e comê-lo. Vejo-o voltar a passar diariamente em frente à minha janela, carregado de rações e instrumentos, e torno a encher-me de esperança. O vitelo é lindo e ternurento. Como se diz aqui na ilha, apetece dar dentadas. Havemos de dar-lhas juntos, espero bem.
October 28, 2013
Terra Chã, 28 de Outubro de 2013
O problema de se construir uma boa personagem é que se corre o risco de os afectos pertencerem-lhe afinal a ela. A partir daí, só cristalizando. E isso não é vida para ninguém.
October 27, 2013
Terra Chã, 27 de Outubro de 2013
O primeiro nível é simples: depois de tantas ditas saídas do armário, no mundo da cultura e no da economia, no do desporto e até no da política, uma saída do armário dificilmente continuará a ser notícia – e, portanto, o casamento homossexual do actor Diogo Infante é pelo menos tão irrelevante, do ponto de vista jornalístico, como o divórcio da apresentadora Bárbara Guimarães. Por outro lado, quem tenha passado a História no liceu sabe isto: poucas coisas influenciaram o cursos das sociedades, durante milénios, como os casamentos.
Temos pois que um casamento pode ser notícia. E, a partir daí, o problema é traçar a linha limite. Abaixo de que nível deixa ele de sê-lo?
Pois eis algo que não pode ser definido com base num critério de gosto, ao contrário do que venho lendo nos fóruns jornalísticos e, na verdade, um pouco por toda a parte por onde pululam os pensantes. Escolher o que é notícia com base no “bom gosto” é, na verdade, a negação do jornalismo. É kitsch no sentido essencial da palavra (“a negação absoluta da merda”, diria Kundera) e é, aliás, ética e politicamente perigoso (basta que nos lembremos do indiscutível bom gosto de Leni Riefenstahl).
Quando muito, poderá ser a cultura a decidir. Com base numa pergunta: “Este acontecimento ajuda-nos a perceber o mundo em que vivemos?” Ou seja: o casamento de Diogo Infante com o seu agente, Rui Calapez, ajuda-nos a perceber este mundo em que o Estado se pôs à margem do género?; e o divórcio de Bárbara Guimarães e do antigo ministro da Cultura Manuel Maria Carrilho, ademais turbulento, ajuda-nos a perceber este mundo em que política e espectáculo se deitam na mesma cama?
Talvez deva julgar cada um por si. Por mim, já me distraí com outra pergunta ainda: quanto do jornalismo que hoje fazemos efectivamente ajuda a perceber o mundo, não se limitando a apertar os botõezinhos emocionais às audiências?


