Joel Neto's Blog, page 47
December 31, 2013
Lisboa, 28 de Dezembro de 2013
Às voltas pela Baixa de Lisboa. Já fingi que não vi sete pessoas. Três não deixaram. Cada aldeia tem o seu tamanho.
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A dra. Catarina Portas tem a lata de vender saquinhas de pão-por-Deus com uma pisca de alfazema dentro a € 17,50. Estes e outras ícones da vida portuguesa continuam a ser transaccionados a preços japoneses, no Chiado, como símbolos de sustentabilidade. Lá sustentar-se sabe a dra....
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Tenho saudades do meu cão.
Lisboa, 27 de Dezembro de 2013
Deus o livre de ser o primeiro lisboeta a chegar a horas. Está quase no Marquês, ainda que às vezes seja o Marquês da Póvoa de Santo Adrião – e, se for preciso, há-de ficar ali às voltas um bocado, até que se perfaça a meia hora olímpica.
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Telefonema redentor: pouquíssimas objecções do Paulo Ferreira aos primeiros capítulos de “Cerrados”. Pareceu tão entusiasmado como eu: com a intriga, com a atmosfera, com o género. Já não é apenas um agente: é um amigo. Mas é profissional como mais nenhum em Portugal – e eu já estou ansioso por regressar e sentar-me na Terra Chã, a trabalhar.
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O Jorge quer que eu seja uma das ajudas telefónicas na sua participação no concurso de televisão “Quem Quer Ser Milionário”. Mandei-o identificar-me como “Joel Guilherme” e avisei-o de que, se me vir aflito com uma pergunta fácil, faço de contas de que o telefonema se está a ouvir mal. Livra.
Lisboa, 26 de Dezembro de 2013
Lisboa, 25 de Dezembro de 2013
Deixo o cão com a Jorgina e sigo para Lisboa. Os aeroportos estão vazios, o avião também. Só é pena o lixo que enche as ruas da capital, fruto de uma greve dos funcionários municipais cujos os efeitos se farão sentir pelo menos até dia 10 de Janeiro. Às vezes, esta cidade parece fazer um esforço para me deixar feliz por estar longe.
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Sucessão de compromissos festivos com a família da Catarina, para quem o Natal é pouco menos do que um casamento cigano. Come-se demasiado bem e durante demasiados dias. E, ainda por cima, amanhã começo nova ronda pelos restaurantes da capital, a pretexto da rubrica da “Notícias Magazine”. Haja fígado.
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Encheram-me de presentes, mas a gravata de seda vintage da avó Marianinha e do avô Augusto, proveniente da colecção d’O Tozé – esse mesmo de quem toda a gente garante que eu teria gostado especialmente, e que morreu semanas antes da minha chegada –, tocou-me particularmente. Raras vezes uso uma gravata, e seguramente nunca uma gravata de seda estampada. Mas todos os netos receberam a sua: os de sangue e os dois por afinidade, eu e o Jason. Os avós são aquilo que primeiro se conserva na memória, e às vezes eu esqueço-me do privilégio que é ainda ter estes. São meus também, tornaram-me a dizer. Guardá-los-ei.
Terra Chã, 24 de Dezembro de 2013
Regresso ao golfe, ao fim de quatro meses de paragem. Já não jogo bem nem mal: vou batendo a bola e pensando no quão mais compensador teria sido ficar aqui, a escrever e a dar mimos ao cão e a preparar o Natal. Tenho a impressão de que em 2014 deixo os tacos a enferrujar.
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Para além do mais, volto já atrasado para a consoada e o Melville tem uma última surpresa para mim: já consegue, num salto apenas, evadir-se do parque que lhe construí, o que me obriga a remendos de última hora. Parece arraçado de melro preto, o estuporado.
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Primeira consoada com os pais, a irmã e a prole em década e meia. Os miúdos montaram um verdadeiro espectáculo ao abrir os presentes. A mais velha falou brasileiro a noite toda. E tudo o resto foi demasiado emocionante para sublimar assim, sem que sobre a matéria ocorram o tempo e a memória.
Terra Chã, 23 de Dezembro de 2013
Estais enganados. Uma palavra vale mais que mil imagens. O mistério é escolher a palavra.
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Da série Verbos Que Eu Já Não Ouvia Há Uma Eternidade E Que Gostava De Usar Um Dia Num Livro. Falquejar.
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Crescimento económico tímido mas efectivo a nível nacional. Bolsa de Lisboa com os melhores resultados do ano. Desemprego a diminuir na maior parte das regiões. E nos Açores? Nos Açores, um aumento radical do desemprego, provando que a recessão demorou mas veio sistémica. Deixou de ser matéria para a luta político-partidária, isto: é situação de emergência mesmo. Atenção, Lisboa.
December 22, 2013
Terra Chã, 22 de Dezembro de 2013
Pensei, pensei e cheguei à conclusão de que o Melville também deveria ter direito a um presente neste seu primeiro Natal connosco. Vai receber o par da bota Timberland com que hoje decidiu banquetear-se e um simpático vale para uma castração na clínica do Luciano.
December 20, 2013
Terra Chã, 20 de Dezembro de 2013
Passei uma vida inteira a ignorar a obra de Stephen King, na certeza absoluta de que se tratava de algo menor. Afinal, estava a alinhar nos mesmos consensos, nos mesmos preconceitos e na mesmas manobras de exclusão que tanto critico. Esta semana peguei em "Misery" e, apesar de terrível edição da Bertrand (a sério, malta, espero que o tenham reeditado como deve ser), fez-se luz. Ao fim de cem páginas apenas, Stephen King, pontapeado para as calendas da "literatura de género" – o que quer que isso seja –, já me tinha prometido e demonstrado mais análise psicológica, mais recursos narrativos e maior dimensão artística em geral do que dois terços dos nossos romancistas ditos clássicos. É bem verdade que isto das tribos, das modas e dos establishments se alimenta mais do que deixa de fora do que daquilo que deixa entrar. Mas proscrever Stephen King (como, já agora, proscrever tantos outros com quem entretanto fizemos as pazes, Jane Austen à cabeça), aqui ou nos Estados Unidos, é um absurdo.
December 18, 2013
Terra Chã, 17 de Dezembro de 2013
O Melville bateu à porta. Juro que bateu. Bateu mesmo: encostou o rabo e abanou a cauda, batendo e pedindo para entrar. Fiquei estupefacto. Não sabia que os cães podiam aprender a bater à porta. O Melville aprendeu. Ontem, bateu. Eram umas quatro da tarde e queria entrar. Bateu. Tenho a certeza. Quase a certeza. A sério. Quer dizer: os cães conseguem mesmo aprender a bater à porta, certo?
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A moda, agora, é fazer “selfies”. Será só a mim que a palavra “selfie” soa a onanismo?
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Já começa? A sério, malta: parem lá com isso. Quem é que se sente mais estimado, ou melhor cliente, ou de algum modo valorizado nesses emails standardizados que vocês mandam das vossas empresas a dizer "Boas Festas, Com Os Melhores Cumprimentos"? Não me encham a caixa do correio de lixo, pelas alminhas do Purgatório.
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Uma boa ideia. Uma boa ideia resgata um dia. Uma boa ideia põe o mundo a curvar-se à nossa passagem durante uma semana inteira. Ou muito me engano, ou hoje tive uma boa ideia, que resolve uma série de problemas no romance. Estava bem comportado de mais. Vou tirar-lhe o tapete.
Terra Chã, 18 de Dezembro de 2013
E, então, porque não podemos viver de outra maneira, continuamos a escrever. E cai-nos o cabelo e apodrecem-nos os dentes, como dizia a Flannery O’Connor. E não telefonamos nos anos, nem aparecemos nos churrascos, nem vamos ao café ao sábado. E, se vamos, a única coisa de que falamos é disso: do romance. E tudo aquilo de que se conversa pode eventualmente servir para o romance, caso contrário não nos interessa. E somos uns chatos. E somos maus maridos e maus filhos e maus amigos e maus vizinhos. E sentimos uma culpa horrível, e sentimo-nos indignos de estima, e sentimo-nos incapazes de nos estimarmos. E continuamos, mesmo assim, a não responder quando falam connosco. E não cortamos o cabelo, e temos de fazer um esforço para mudar de roupa, e pomos lembretes no telemóvel para tomar os antibióticos e para tratar do cão à hora certa. E na verdade não cuidamos da nossa saúde, e não pagamos contas, e esquecemo-nos de pedir a garrafa do gás, e calçamos meias de pares diferentes, e não ajudamos com o jantar, e de repente queremos fumar quatro maços de cigarros e beber meia garrafa de uísque sozinhos no quintal, a olhar para a noite e a chorar. E somos os maiores quando um parágrafo nos sai bem e ficamos de rastos quando não encontramos um verbo de que precisávamos. E sabemos que tem mesmo de ser assim, porque se não for o romance sai uma merda. E sentimos na mesma culpa. E conduzimos depressa de mais, e conduzimos devagar de mais, e não tiramos o boné ao cumprimentar – e esquecemo-nos do nome de pessoas, e arranjamos problemas com as Finanças, e bem vista as coisas é uma sorte chegarmos vivos ao fim do dia, e as vezes acontece até não chegarmos. E queremos desistir, e queremos ser canalizadores, e queremos ser amigos, e queremos ser filhos, e queremos desistir, e queremos desistir, e queremos desistir, e queremos ser maridos e pais e atenciosos. E, quando ainda não perdemos de vez a esperança, escrevemos coisas em que nos justificamos por sermos maus maridos e maus filhos e maus amigos e maus vizinhos, e por não telefonarmos nos anos, nem aparecermos nos churrascos, nem irmos ao café ao sábado. E exageramos imenso, claro. E cai-nos na mesma o cabelo e apodrecem-nos na mesma os dentes, como dizia a Flannery O’Connor – e tem mesmo de ser assim, porque se não fosse também não valeria a pena ter chegado aqui respirando, e desculpem.


