Joel Neto's Blog, page 46
January 5, 2014
E, quanto ao resto, que pena não ter jogado no Sporting
Terra Chã, 5 de Janeiro de 2014:
Das coisas menos importantes do mundo, a mais importante é o futebol, como diria o "Estadão". Conheci mal o homem e conheci ainda mais mal o jogador. Mas Eusébio chegou até mim através da memória, da colectiva e da soma das individuais – uma memória apaixonada, transversal e enorme. Não há filtro como esse. Recordá-lo-ei como se tivesse sido meu também. Infelizes de nós, aqueles de quem ele nunca chegou a ser.
White Dog
Terra Chã, 5 de Janeiro de 2014:
I went for a walk on Hollywood Boulevard.
I looked down and there was a large white dog
walking beside me.
his pace was exactly the same as mine,
we stopped at traffic signals together.
a woman smiled at us.
he must have walked 8 blocks with me.
then I went into a grocery store and
when I came out he was gone.
or she was gone.
the wonderful white dog
with a trace of yellow in its fur.
the large blue eyes were gone.
the grinning mouth was gone.
the lolling tongue was gone.
things are so easily lost.
things just can’t be kept forever.
I got the blues.
I got the blues.
that dog loved and
trusted me and
I let it walk away.
CHARLES BUKOWSKI, “White Dog”
January 3, 2014
Da série INSTAGRAMS DA TERCEIRA
Às vezes, o humor e o riso são inimigos
Às vezes ocorre-me que nos tornámos todos uns risotas e que o humor está altamente sobreavaliado. Felizmente para mim, há sempre alguém disponível para fechar o cenho a pretexto de uma graça de circunstância. Não têm paciência e, em regra, aquilo que gostariam de denunciar é a vaidade (sempre ela). A graça não os fez rir e, aparentemente, isso chega. Ignoram que o humor e o riso não têm nada a ver um com o outro – que muitas vezes até são inimigos um do outro. Mas, como estão obrigados a viver todos os dias consigo próprios, já terão castigo suficiente. Que labiríntico será.
E vocês, preferiam viver sem desejo ou sem humor?
Um momento comovente e espúrio
Terra Chã, 2 de Janeiro de 2014:
Nasceu o G. e nós pudemos, à nossa maneira, fazer parte. Foi comovente, e a recordação perdurará. Tudo o resto fica guardado, por enquanto, na parte mais espúria deste diário, à espera que também sobre isso ocorram o tempo e a memória.
January 2, 2014
As possibilidades de um afecto
Terra Chã, 2 de Janeiro de 2014:
Levei o Melville a casa dos Márcios, para interagir com a congénere local, Maria de sua graça. E, então, eles interagiram: ela dando ordens e pondo-o na ordem e ele arriscando manobras de sedução cada vez mais ousadas, ela perseguindo-o e ralhando-lhe com autoridade e vigor e ele acantonando-se debaixo da carrinha do anfitrião, tremendo. Dizem que os animais de estimação imitam os donos e, aparentemente, é verdade. Mas como é que este cão teve acesso à biografia da minha adolescência?
E o leitor: tem animais de estimação?
January 1, 2014
Considerações meio avulsas a propósito da amizade, essa coisa sobre que é um bocado piroso falar
Terra Chã,
1 de Janeiro de 2014:
A amizade, como hoje a entendemos, é um misto de várias emoções, aliás raramente verificadas em proporções iguais. É um fenómeno mutante e dialéctico, como de resto outros sentimentos – e, se entre dois amigos nunca existe uma amizade só (eles são amigos um do outro de modos diferentes), mais amizades ainda existem num grupo inteiro deles.
Vem isto a propósito da experiência do M., que com inevitável tristeza tomou conhecimento de que os seus velhos amigos não pretendiam passar este ano o Réveillon juntos.
Ausente da terra há vários anos, o M. costuma reuni-los nos seus regressos. E, então, é quase tudo como dantes: bebem-se copos, recordam-se anedotas, trocam-se perspectivas – e, pela manhã, urina-se ao vento.
Talvez o M. não imaginasse que, na sua ausência, ia cada um para seu lado. Ou talvez quisesse ignorá-lo, o que será ainda mais pungente.
Por aqueles a que chamamos amigos, sentimos sempre um tanto de solidariedade, um quanto de cumplicidade e alguma dose de intimidade. A intimidade, sobre que tenho escrito aqui com frequência, é provavelmente a categoria superior das interacções humanas.
Mas há amizades que se sustentam sobretudo na cumplicidade (na coincidência de interesses, na compatibilidade de visões do mundo, na conjugação de sentidos de humor), sem que qualquer tipo de intimidade resista ao fim do jogo que em torno delas se disputa. E há mesmo amizades que dependem quase em exclusivo da solidariedade.
Permanecem amizades.
Lembro-me de ver o meu pai a visitar no lar de idosos David Machado de Sousa, um velho tio da minha mãe que depois da viuvez viveu com eles uma série de anos, até se tornar manifestamente impossível cuidar dele lá em casa. Via-o sair de casa sozinho e sentar-se à frente do velho e pôr-se ali durante uma hora a falar com ele sem que ele pudesse já responder-lhe (ou sequer ouvi-lo), com aquele sentido de dever e de amor de que só os homens bons são capazes.
E, então, eu pensava: aí está a solidariedade gratuita e genuína.
Não havia ali cumplicidade, pois David era de fraco entendimento – e provavelmente não haveria intimidade também, tão efabulatório e ressentido era o mundo em que vivia. Mas, se David teve um amigo, ao longo da recta final da sua vida, foi aquele sobrinho por afinidade a quem nunca deu nada. E, por outro lado, é possível que entre os amigos do meu pai, entre aqueles que lhe tinham verdadeiramente amizade, se contassem vários nomes, mas não o daquele pobre velho.
Portanto, não há uma equação só para aquilo que é a amizade. Nem a reciprocidade, bem vistas as coisas, é condição eliminatória. Certo é que, acima dela, estará o amor (ele próprio mutante, em todo o caso) e pouco mais. E que, se a dependência está abaixo, nem por isso ela se poderá dispensar em absoluto desta.
Tudo isto é sabido, mas às vezes vale a pena recapitulá-lo, como acontece com as coisas importantes.
Os amigos do meu amigo reúnem-se quando ele volta e separam-se quando ele parte. Prezam a memória, talvez mais do que qualquer outra coisa – e nessa memória também há com certeza muito dos elementos que constituem a fórmula da amizade.
Aconteceu-me o mesmo com os velhos amigos dos Açores. Afastámo-nos com os anos e os casamentos e os filhos e os empregos – e, quando eu regressei, já não pudemos reconstituir-nos como um grupo. Mas todos nós nos lembramos ainda. E somos, à nossa maneira (ou cada um à sua, para sermos mais exactos), amigos.
Não conheço nada mais íntimo do que a memória. E, ademais, tudo isso está ainda demasiado distante da indiferença para constituir razão de alarme.
Tenho de voltar a escrever sobre isto.
E para vós, leitores: há uma fórmula da amizade?
December 31, 2013
Terra Chã, 31 de Dezembro de 2013
Dói-me o cotovelo de novo. Eu sabia que não me deveria ter posto a rachar lenha. Mas continua a ser demasiado tentador repetir os gestos dos meus antepassados.
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Da série Microcontos. "Fez um AVC e acabou por falecer", explicou a senhora. Falava do pai e usou o verbo dos médicos, "fazer". Teve um certo estilo.
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Às vezes acho que tenho mesmo de pensar em suspender este diário, pelo menos até à entrega do romance. Mas depois basta-me ir ao supermercado e ouvir de duas ou três pessoas que gostam de lê-lo e que devo continuar. E, então, continuo. Estou viciado nos elogios e na atenção. Criámos um monstro.
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Resolução para 2014: recuperar a minha personagem. Ela precisa. De resto, um ano igualzinho a este: para mim, pessoalmente, chega. Há que ser grato, mesmo no meio da tempestade. Desculpem-me se fui feliz.
Terra Chã, 30 de Dezembro de 2013
Regresso ao trabalho. Espero não sair da Terra Chã até ao final de Abril. O plano mantém-se: ter escritos, nessa altura, uns oitenta por cento da primeira versão do romance – de contrário, este ano nem conseguirei fazer a horta.
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Estamos prontos a morrer no fim de um livro, e a dada altura até nos disporíamos a agendar a data. Desde que depois de concluí-lo.
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A maturidade de um cronista começa no dia em que ele deixa de escrever “as pessoas” e passa a escrever “nós”. A maturidade de um escritor começa no dia em que ele deixa de escrever “nós” e passa a escrever “eu”.
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Adiei a castração do Melville. Está a custar-me.
Terra Chã, 29 de Dezembro de 2013
De volta. O Melville não me recebeu mal, mas está claramente triste por deixar a companhia de Jorgina. Apaixonou-se, o ingrato do malandrim. Mas tenho uma arma poderosíssima: a Catarina chega amanhã.
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Pensamento do dia: quando a vaidade de um homem é a estreiteza do homem diante dele – aí, sim, dá-se a tragédia. Tudo o resto, no ofício da construção da personagem, é quase divertido.
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Saiu hoje a edição especial anual do Qi dedicada aos livros do ano. Foi o ano de “Servidões”, a edição limitadíssima de Herberto Hélder. Suponho que havia uns cinquenta candidatos a escrever sobre ele. Por mim, escolhi a Chimamanda.
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«RAÇA
O mais desconcertante, ao ler Chimamanda Nogzi Adichie, é conferir as semelhanças entre as suas perplexidades ao chegar de Lagos a Brooklyn, algures nos anos 90, e as nossas próprias perplexidades, portugueses da província acabados de aterrar em Lisboa, precisamente na mesma década. Afinal, as pessoas vestiam-se com roupas bem mais leves, sem medo do frio. Comiam-se por rotina produtos enlatados e uma sandes podia ser considerada uma refeição. Ninguém parecia tão feliz ou bem-sucedido como na TV, e a atmosfera geral não era, de todo, tão inteligente ou educada. Uma mulher com mais de cinquenta quilos era considerada rechonchuda. O rock pesado podia ser harmonioso e, enquanto o ouviam, as raparigas bebiam cerveja por uma lata. Os cães eram mantidos em apartamentos minúsculos, como se fossem gente, todos tinham opinião sobre tudo o que se lhes perguntasse, porque ficava mal não ter opinião sobre alguma coisa – e, sobretudo, os pobres não tinham culpas. Como diz Chimamanda, pelo olhar de Ifemelu e falando de Kimberly: “A pobreza era uma coisa reluzente; ela não conseguia conceber que as pessoas pobres fossem maldosas ou cruéis, porque a sua pobreza as tinha canonizado.”
Mas, sendo um livro sobre a origem geográfica, a classe social, a tribo intelectual e todas as demais categorias de que nos socorremos para colocar o pé em cima dos pescoços uns dos outros, Americanah continua a ser sobretudo um livro sobre a raça. E o que pretende deixar claro é que essa se mantém a suprema categoria entre todas aquelas com que os homem se esforçam por esmagarem-se uns aos outros, eliminando a concorrência, validando-se a si próprios ou simplesmente dando vazão à raiva. “Se estivermos a ter uma conversa com um americano”, escreve Ifemelu no seu blogue, “e quisermos discutir algo relacionado com a raça e o americano disser ‘Oh, é simplista dizer que é a raça, o racismo é tão complexo’, isso significa que ele quer mas é que nos calemos. (…) Por vezes dizem ‘cultura’ quando querem dizer raça. Dizem que um filme é para o público em geral quando querem dizer que ‘os brancos gostam dele ou foram quem o fez’. Quando dizem ‘urbano’ querem dizer negro e pobre e possivelmente perigoso e potencialmente excitante. ‘Com carga racial’ significa que não se sentem à vontade para dizer ‘racista’.”
Eis, pois, um poderoso romance sobre a era global e o mundo no tempo da blogosfera e do Facebook, igualitarista e ligeiro, atónito e zangado, sob influência e inevitavelmente xenófobo. Personagem central: uma jovem nigeriana de classe média, emigrada para os Estados Unidos, onde circula entre Brooklyn e New Haven, Princeton e o interior do estado do Massachusetts, à procura de formação académica, de uma carreira como blogger e do amor. Tudo isto com a candidatura de Barack Obama à presidência norte-americana como pano de fundo: um vento de esperança que talvez até viesse a mudar os brancos, mas dificilmente mudaria os negros. “A verdadeira tragédia de Emmett Till, tinha-lhe dito ele uma vez, não era o assassinato de uma criança negra por assobiar a uma mulher branca, mas que alguns negros pensassem: ‘Mas porque é que tu te foste pôr a assobiar?’”»


