Joel Neto's Blog, page 49
December 2, 2013
Terra Chã, 2 de Dezembro de 2013
Eu fui capaz de escrevê-lo, e de publicá-lo, e até de compilá-lo em livro. Releio-o dois dias depois de ter-me apercebido que me tornei o cliente mais chato da clínica veterinária – sempre a fazer perguntas, sempre a enviar emails, sempre com o coração nas mãos – e não muitas horas após voltar a constatar que a maneira como o meu cão me recebe todos os dias de manhã, quando o vou resgatar ao seu parque na garagem, não é igual a mais nada que me tenha acontecido até hoje. E agora acho que mereço ambos os castigos: o de sentir-me um chato e o de este texto ter ficado aí, impresso em letra de forma, no meio de outras crónicas a que ainda quero tanto. Um cronista armado em engraçadinho não é bem um cronista: é um bicho de circo.
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«O MELHOR AMIGO DO HOMEM
Cruzámo-nos no hall de entrada das Amoreiras, ao início de uma noite de sábado. Mal nos reconhecíamos. Ele está o dobro, eu outro tanto – e, aliás, quando um homem vai ao centro comercial ao fim de um dia de sábado, a última coisa que pretende é reconhecer alguém. Mas cumprimos o ritual todo: encantámo-nos com a coincidência, debitámos sínteses bio-blibiográficas, trocámos telefones, olhámos para o relógio. Até que eu: “Bom…”. E ele: “Pois, eu também…” Estudei-lhe a mímica: este gajo vai ficar pelo rés-do-chão. “Eu vou para o andar de cima”, arrisquei. E ele: “Eu fico aqui por baixo. Ando à procura de uma trela nova para o meu cão, que faz anos…”
Sim, eu devia ter tido o cuidado de dar-lhe uma explicação: “Vais aparecer numa crónica, pá.” Não tive. E, portanto, não vou dizer agora aqui de quem se trata, a não ser que o seu nome começa com “J” e acaba com “oão Pedro” – e que ele era o sacana mais cool do meu liceu: o gajo mais bonito e mais falinhas mansas da cidade, o homem que eu quis ser toda a vida e o único bom motivo que encontrei até hoje para acreditar na reencarnação. E vê-lo naquele sábado foi uma epifania. Como se me abrissem a porta da prisão após um longo cativeiro. Um tipo que compra presentes de aniversário para o cão não merece a minha inveja. Que diabo: um tipo que tem um cão não merece a minha inveja.
Vejo-os todos os dias, aos donos dos cães de Lisboa, subindo a minha rua, dando a volta, tornando a descer, tornando a subir – e o cãozinho sem fazer cocó. E pergunto-me sempre a mesma coisa: para que serve um cão? Para que serve um bicho completamente estúpido, tantas vezes agressivo, que cheira mal, que ladra alto, que nos rouba duas horas por dia só por causa do cocó – e que, além de tudo, volta e meia está obstipado, fazendo-nos andar, não duas, mas quatro horas a subir e a descer a rua com um saquinho de plástico na mão? Para que serve um bicho que nos enche a casa de pêlos, que nos rasga a roupa, que nos faz chatearmo-nos com os vizinhos – e que, ainda por cima, está disposto a dar-nos o seu amor incondicional em troca apenas de comida enlatada que qualquer pessoa de bom gosto, francamente, acha demasiado salgada?
Na minha terra, os animais vivem no quintal e têm três finalidades: ou se comem, ou põem ovos, ou ladram aos bandidos. Aqui, o que não faltam são bandidos – e, porém, se um bandido entrar lá em casa, o mais provável é que o cãozinho se finja morto, a ver se não leva um pontapé. Ademais, um cão precisa de preservar-se, por causa da agenda. Às terças, tem veterinário. Às quartas, cabeleireiro. Às quintas, psiquiatra. Esta sexta, por exemplo, vai conhecer as condições do hotel onde ficará instalado em Agosto, enquanto os donos, esses tipos sem coração, forem para o Algarve fazer castelos na areia e comer do bom e do melhor. E no sábado vai ao parque. Ah, isso é que um cão de Lisboa gosta de ir ao parque. Toda aquela relvinha para fazer cocó, agora sem obstipação. Todas aquelas velhinhas para afugentar. Todos aqueles bebés ensaiando os primeiros passos, mesmo a pedir um bóbí com jeito para brincar às bolas de bowling – ah, como um cão de Lisboa é feliz ao sábado de manhã.
Ao sábado de manhã e ao sábado à noite. Porque, entretanto, este sábado vão lá a casa jantar os Fonsecas. E, se há uma coisa de que um cão gosta mais do que do parque, é dos Fonsecas, incluindo a miúda que tem medo de cães, o miúdo que está quase a aprender a andar e não tarda já pode brincar ao bowling – e, sobretudo, o pai em cujo peito o cãozinho pode cravar as garras à vontade e a mãe cujas mãos o bicho pode passar o jantar a lamber, enquanto a dona o vai repreendendo, a sorrir: “Ó, meu maroto… Isso não se faz!” (E depois, em direcção à Paula: “Não te sujou, pois não? Coitado, não faz por mal…” E depois ainda, para a mesa toda: “Este cão é um amor. Gostava de aprender tricô para poder tricotar-lhe uma camisolinha…”).
Foi para um bicho destes que João Pedro foi às Amoreiras comprar uma coleira. Daquelas extensíveis, permitindo ao cão andar livremente num raio de cinco metros, cravando as garras nos vizinhos. Estive para propor-lhe: “Olha, eu poupava o dinheiro. Mantinha a coleira antiga e, entretanto, levava eu próprio um pau para bater nos vizinhos, que faz o mesmo efeito.” Não disse nada. O João Pedro é dono de um cão. Já tem o seu castigo. Como qualquer outro dono de cão de Lisboa, deve estar cada vez mais parecido com o seu bicho – e, ainda por cima, convencido de que é o bicho que está cada vez mais parecido com ele.»
Terra Chã, 27 de Novembro de 2013
Em Lisboa chamar-me-iam salazarento. Mas eu tenho estas dúvidas, e sei que os do meu tempo as compreendem. Quando foi que nós começámos a comer arrufadas mistas com manteiga? Quando foi que começámos a torrar o pão da manhã, em vez do do dia anterior? Quando foi que deixámos de comer pão às refeições?
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Trabalho no romance e tenho o dicionário de sinónimos aberto na página cuja primeira entrada é "bentererê". Os sinónimos são joão-teneném, pichororé e tiriri.
November 26, 2013
Terra Chã, 26 de Novembro de 2013
Tendemos a confundir massa crítica com opinião. Ter opinião é fácil. Ocorre até termos opiniões – muitas opiniões. Massa crítica é totalmente diferente. Pode até dizer-se que, hoje, se de alguma coisa a opinião se sustenta, é da falta dela. Por isso nos parece demasiado fácil, tantas vezes, ser-se o mais razoável do pedaço.
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Os senhores ministros deviam tentar controlar os risinhos, mesmo os mais nervosos, quando estão na bancada do Governo a fazer aprovar mais um Orçamento de Estado sustentado no esforço da antiga classe média. E não é por razões de comunicação política, muito menos por motivos eleitorais: é pela sisudez que as ocasiões de respeito sempre devem impor. Pelos mesmos motivos – se quiserem – que não se ri num funeral. A morte também é "inevitável", não é?
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Convite de Fernando Alvim, radialista e divulgador cultural, para participar a 11 de Dezembro, no Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa, no encontro especial Portugal É Agora, destinado a recolher contributos para repensar o país. Estarão presentes os melhores tipos do meu tempo, entre escritores e músicos, jornalistas e humoristas, bloggers e figuras da cultura popular. Um encontro – diz-se no manifesto – “sem partidos, sem esquerda nem direita, sem militâncias, sem corporativismos, sem sindicatos”, mas “com ideias, com planos, com acções.” Não tenho qualquer vontade de viajar agora, em cima do Natal e com o romance no ponto em que está. Mas vou enviar um vídeo – com certeza que vou.
November 25, 2013
Terra Chã, 25 de Novembro de 2013
Mark Twain em "A Viagem dos Inocentes", sobre a desilusão de não encontrar nos Açores outra coisa senão portugueses: "A comunidade é principalmente portuguesa – ou seja, pobre, apática, modorrenta e preguiçosa." Ai, meu deus, que pena não haver Facebook na altura…
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Jaime Neves. Sempre importante lembrá-lo.
Terra Chã, 24 de Novembro de 2013
O tipo de esquerdista que Pacheco Pereira diz ser, daqueles que se sentem ao mesmo tempo no direito e na obrigação de "atacar a iniquidade, a injustiça, o desprezo e o cinismo dos poderosos para quem a vida de milhões de pessoas é irrelevante, é apenas um custo", também eu sou – e fervorosamente. Tenho dúvidas, porém, quanto a uma frase do seu discurso no chamado “Encontro das Esquerdas” e ao que ela possa revelar sobre o grau de conhecimento do nosso intelectual público de eleição sobre a vida quotidiana dos portugueses: "As famílias não ajustaram, empobreceram. E já nem comem bife, comem frango." Efectivamente, nas Avenidas Novas e em Paço D’Arcos, entre os profissionais liberais e os funcionários públicos, muita gente teve de trocar o bife pelo frango. Mas alguém tão fervorosamente de esquerda devia saber que há todo um país, cheio de famílias, que nem sequer chegou a comer bife. E aquela formulação, incluindo a sua condescendência, não me tranquiliza quanto a que Pacheco Pereira efectivamente o saiba.
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A violência doméstica é uma cobardia. Infelizmente, os Açores têm-se mantido no topo das estatísticas nacionais. E não é disfarçando os números que os combatemos: é envergonhando-nos deles.
Terra Chã, 23 de Novembro de 2013
Durão contra Guterres? Eu queria António Barreto contra Guilherme de Oliveira Martins. E votaria à esquerda, desta vez. Assim, voto branco.
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Duríssima rotina semanal, agora, com o esforço de guardar as manhãs em exclusivo para o trabalho no romance. Contente, porém, com os resultados. Demasiadas expectativas ainda, e uma em concreto: a ideia de que ele possa trazer a possibilidade de, do ponto de vista do sustento da casa, eu transformar enfim os jornais num complemento dos livros, contrariamente ao status quo actual. Mas que ao menos me permita tornar-me outra coisa que não um bissexto. O bissexto é a mais angustiosa categoria de escritor.
Terra Chã, 22 de Novembro de 2013
Enviei ontem para o JL o texto sobre “Gente Feliz com Lágrimas”, que aceitara escrever num impulso de modo nenhum consciente da responsabilidade em causa. Foi um parto difícil e, pouco depois de mandá-lo para o jornal, mandei-o também ao João, à espera de absolvição. Gostou, afinal. Senti-me, mais do que honrado, aliviado.
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«JOÃO DE MELO, O GRANDE MANIFESTO
“A miséria, sendo muito outra, era só coisa de espírito. Crescia no coração dos meus pais, como a hera dos muros ou o trevo nos pastos, e chamava-se avareza. O pão endurecia durante quinze dias e ganhava bolor – porque o forno gastava lenha! O leite que devia calcificar-nos os dentes e os ossos era para vender à fábrica: depois ficávamos a implorar uma fatia de pão de trigo com manteiga de vaca, uma lâmina de queijo com pão da loja à merenda, e nada: segundo a mãe, isso era comida de ricos.”
Completam-se vinte e cinco anos sobre a publicação original de “Gente Feliz Com Lágrimas”, e a Dom Quixote escolheu celebrar a efeméride com a vigésima-terceira edição portuguesa da obra, que se vem somar às traduções, aos prémios (incluindo o Grande Prémio Romance de Novela APE de 1989, batendo o favoritíssimo “Missa In Albis”, de Maria Velho da Costa) e às loas coleccionadas por João de Melo, ao longo dos anos, um pouco por toda a parte.
Alguns dos mais importantes louvores declararam-no herdeiro do chamado realismo mágico, à maneira de García Márquez ou Scorza e, antes destes, Uslar Pietri. Sê-lo-á, porventura, no modo como transporta para os Açores dos anos 1950/1960 uma parte da atmosfera fantástica – embora mais no domínio do estranho do que do maravilhoso – que povoou boa parte da melhor literatura sul-americana desse mesmo período.
Quanto ao resto, dificilmente haverá alguma coisa de mágico no arquipélago de João de Melo, a não ser eventualmente a paisagem e – essa, sim – a experiência da linguagem, pisando a cada instante os territórios da poesia. Falamos sobretudo de um marco colossal da literatura portuguesa do século XX – o século do povo e da fuga – e, seguramente, da mais importante referência da literatura açoriana desde (pelo menos) “Mau Tempo no Canal”.
Em causa está, agora, não já talvez esse princípio nemesiano de que, para o povo dos Açores, a geografia é tão importante como a história, mas muito mais a ideia universal e universalista de que cada homem é uma ilha, partilhada também notoriamente por Saramago. O que não deixa, em todo o caso, de constituir um discurso sobre a geografia e a sua relação com a história, aqui interiores e amalgamadas numa só impressão não totalmente definível.
Numa São Miguel escondida por detrás das montanhas, num lugarejo de onde não se vai a Ponta Delgada mais do que uma vez ao ano, três irmãos suportam uma infância de brutalidade e carência, às ordens de pais frequentemente desterrados num mundo só deles. Proporcionam-se-lhes, em diferentes momentos da adolescência, fugas distintas: a vida monástica à rapariga, o seminário ao mais novo e o Exército ao mais velho. À sua maneira, cada um se encarregará de detonar também essa escapatória – e todas as três vidas acabarão por redundar em mosaicos particulares de sucessivas evasões.
Em pano de fundo estão, à vez, a impossibilidade de permanecer ali mais um instante que seja, entre homens brutais só esporadicamente capazes de um gesto de ternura, e a tentação do regresso, menos como escape aos homens mansos só esporadicamente capazes de matar, tantas vezes íntimos das grandes cidades, do que à procura daquilo que ficou por dizer, da possibilidade não manifestada antes.
A emigração, imposta ou não, é porém tragédia igual para um pescador levado para o Massachusetts como para um bolseiro bem instalado em Princeton. Deixa as suas marcas indeléveis e inapagáveis – e intromete-se nas leis da termodinâmica, provando que condições diferentes podem, muitas vezes, originar resultados semelhantes.
A infância é irrepetível, no espaço como no tempo, e a circunstância virá a baralhar os dados à disposição de Nuno Miguel, Maria Amélia e Luís Miguel. Ecos de Freud insinuam-se quando Nuno, personagem principal, dá por si a mimetizar atitudes recorrentes do pai, o primeiro algoz da sua infância. Todo o mal está na família, como todo o bem também: ela leva-nos ao colo e é a bola de ferro presa ao nosso pé. O poder do progenitor permanece, por isso, inexpugnável, e lidar com esse poder uma missão para concretizar à primeira tentativa. Nuno Miguel falhou e acaba por transportá-la ao longo da vida toda, incompleta. Incompleto.
Um romance monumental – eis aquilo de que se trata. Do título à nota com que encerra, e mesmo se nem sempre é fácil encontrar-lhe a melodia. Ou precisamente por causa disso. Narrativa polifónica, feita de fragmentos e memórias descontínuas, a cada instante determinada a somar centros de consciência, “Gente Feliz Com Lágrimas” mantém as costuras à vista, e talvez seja essa a sua suprema virtude.
Escrita na primeira pessoa (embora, de certa maneira, o discurso de Marta sobre Nuno Miguel, o marido, constitua mais uma declinação para o ladrilho modernista), de modo a que, a dada altura, as personagens possam confundir-se umas com as outras, e o escritor com elas, combina imagens de profunda riqueza com metáforas menos concretizadas e frases de métrica escorreita com rimas aparentemente a despropósito, numa opção técnica que, mais do que emular o modo atabalhoado de pensar das pessoas verdadeiras, convocando os princípios do chamado fluxo da consciência, constitui o rosto da sua visceralidade e do seu sangue.
“A dor é assim uma nuvem perdida, e vem de dentro para fora. Por um instante, sente que ela se afia em si, num qualquer órgão inlocalizado do corpo. Depois é como se se tivesse convertido numa lâmina cega. Uma lâmina que se desloca de mansinho entre a pele e a carne, ou entre a infância e a ferida que agora se põe a boiar e depois se lhe atravessa toda no olhar.”
Eis, pois, o grande enunciado “também” – e perdoe-me João de Melo se pareço acantoná-lo, coisa que ele nunca pretendeu nem merece – de muito do que fora antes dele e de outro tanto do que seria depois a literatura açoriana, de Antero a Cristóvão de Aguiar, de Roberto de Mesquita a Daniel de Sá, de Nemésio (sempre ele) a Dias de Melo, de Natália a Álamo Oliveira e de tantos outros a tantos mais ainda. O grande manifesto identitário dessa geografia que é, antes do mais e por direito próprio, um olhar sobre o mundo.»
Terra Chã, 21 de Novembro de 2013
Não sermos capazes de rir com os anúncios da Pepsi sueca com não é apenas termos perdido o sentido de humor: é termos caído, em pequeninos, no caldeirão do mesmo ódio que tomou conta do nosso espaço público. Os bonecos de Cristiano Ronaldo são giros e as ideias de “atropelamento” e “vudu” muito menos expressões de mau-gosto do que um reconhecimento da incapacidade sueca para deter a selecção portuguesa e o seu capitão. É como eu olhar para uma foto de Ryan Gosling e suspirar: “Que sacana bonito. Odeio-o!” Respiremos, caramba.
November 19, 2013
Terra Chã, 19 de Novembro de 2013
O vizinho dos quatro pastores alemães pede muita desculpa por deixar os portões abertos todos os dias e diz que vai tomar providências para que os seus cães não nos ataquem, nem a nós nem ao nosso cão. De qualquer maneira, todos os dias passam ali marchantes, para cima e para baixo, e nós fomos os únicos, até hoje, a protestar. Aparentemente, todos os demais aceitam sem ondas a sua supremacia sobre aquele troço de via pública. Passam, mas passam bem caladinhos – e, naturalmente, deixam os seus próprios cães em casa. De facto, havendo um quinto bicho envolvido, convém ter algum cuidado. Às pessoas, os pastores alemães não fazem mal nenhum, de certeza absoluta. Bom, de certeza absoluta, não, porque são animais e nunca se pode saber ao certo. Mas em princípio não há azar. Com cães, podem ficar excitados. Mas que estejamos descansados, que serão feitas diligências. E muito obrigado pela vossa compreensão.
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O que eu preciso é de um sinónimo de "ainda". Um sinónimo absolutamente diametral. Para isso a merda do AO não me arranja solução.
November 18, 2013
Terra Chã, 18 de Novembro de 2013
Portanto, esta manhã lá fomos, cada um com um pau às costas, para a caminhada habitual, mas desta vez com o Melville. Havemos de fazer figuras de tontos, claro: dois maluquinhos vindos de fora, provavelmente padecendo de folie a deux, dispostos a andar à traulitada apenas para defender a gaita do cachorro. Tudo bem: eu encontrei uma nova possibilidade de afecto e é esse milagre que me interessa. Mas, já agora, pergunto-me: porque é que temos de andar com paus ao caminhar na via pública com um cão devidamente vacinado e registado? Ah, sim: porque alguns vizinhos se esquecem de que a sua liberdade termina no meu nariz. Porque um deles tem dois labradores num quintal cujo portão está quase sempre aberto e porque outro, em vez de dois labradores, tem quatro pastores alemães nas mesmas condições. Isto fora rafeiros deixados à solta, fujões recorrentes e viralatas abandonados, claro. Dizia-me no outro dia o veterinário: “As pessoas estão bem melhor do que há uns anos.” Na altura só me ocorreu lembrar-lhe o trânsito e o modo como “as pessoas” se comportam ao volante. Entretanto, comecei a tentar passear com o meu cão. Já tive de fugir da Silveira, por causa de um barbado desejoso de sangue. Qualquer dia, ficamos aqui os três a engordar de vez, porque os meus vizinhos não gostam de fechar os portões.


