Joel Neto's Blog, page 44

January 24, 2014

Flower power


«Quando um dia voltasse a partir, talvez nada lhe fizesse tanta falta como as flores. Na Primavera abriam gladíolos e begónias, petúnias e crisântemos; pelos Santos desabrochavam as hortênsias, cada uma de sua cor, consoante a acidez da terra que lhe coubesse em sorte; a seguir floriam as buganvílias, anunciando o fim do Verão; no Outono vinham primeiro as beladonas e depois as camélias, vermelhas, róseas, riscadas segundo todos os tipos de padrão; o Inverno começava pelas magnólias e extinguia-se, enfim, nas azáleas – e de cada vez que um temporal, ou a seca, ou outro sobressalto qualquer abreviasse o ciclo de uma delas, logo a terra se esforçava por socorrer a poesia, fazendo acudir os hibiscos, o jasmim ou apenas os mantos infinitos de erva azeda, que progrediam por quintais e cerrados como um sangue exultante de desejo.»/Terra Chã, 24.1.14

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Published on January 24, 2014 14:30

Cenas da vida no campo

A Catarina acabou o meu cachecol. É lindo e até um pouco comovente. Passeá-lo-ei vaidoso./Terra Chã, 24.1.14


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Published on January 24, 2014 02:33

January 23, 2014

Minha putefiazinha maquilhada de ternura


Leio-o e não consigo seleccionar. Vou usá-lo todo. Angra nunca foi tão belamente descrita nas suas encantadoras contradições:


 



ODE A ANGRA MINHA CIDADE EM TOM DE ELEGIA


 


Angra oh minha cidadezinha de bolso querida


minha putefiazinha maquilada de ternura


oh rola de papo vaidoso da Memória de D. Pedro IV


do Cais das Pipas para as naus da Índia


de Afonso VI babando-se de tolo pelos Canos Verdes


oh minha tolinha inchada de orgulho


do aqui-já-foi-só-Portugal. Oh cidade de Martins Homem


petrificado na Praça Velha


mercado do saber-mundo da novidade da vida alheia


pátio do cartaz de cinema para logo à noite


depois do comércio depois da manguinha-de-alpaca


de olhos cansados e tristes


poisados para além da janela


minha capitalzinha de avental


traçada na mão papuda da hospitalidade.


Oh Angra nome de baía


cidade sentada na banqueta da tarde


cidade do mar te chamou Félix


oh minha pequena burguesinha ignorante


minha cretinazinha paspalhona


usas ainda nas trancinhas os lacinhos de fita


à antiga inda te ficas pela


novidade do barco estrangeiro que vem


para a descarga do trigo. Ficas-te


pelo Cais da Alfândega. Lá cabe


todo o teu universo. Ficas-te pela


crença no boato de especulação política


Ficaste pela honesta pela criteriosa notícia


dos teus jornais habilidosamente bem colados


politiqueiros pequeninos obesos calvos beatos


mentindo com todas as verdades e insinuando


nos tentáculos das suas entrelinhas subtis.


Oh minha cidade de mar cidade de traço de pernas sensuais


crestadas pelo sol dos cajins dos calhaus da rocha


oh minha desavergonhadinha à moda de Lisboa


imitação caricatura em diminuta escala


imitação mal imitada limitada


minha cidade de arredores bem


São Carlos de quintas e laranjais


cidade minha de arredores mal


São Mateus da Calheta cheio de vendas e pescadores.


 


Oh Angra cidade única e minha


cidade de nevoeiro encantado silenciosa


memória alongando-se pela bruma esvanecendo-se


já não de D. Pedro IV mas tu cidade


em ti própria renascida outra memória


verdadeiramente tua


a de


teus marginais


a de


teus infelizes operários teus pescadores do Corpo Santo


teus esfumados reformados em seus passos mudos


teus engraxadores rezingões sumidos na insignificância


teus guardas municipais de sentinas teus vendedores de


fava torrada e amendoim no Largo do


Prior das Camionetas ao pé do teu Jardim


todos os teus empregados sindicalizados e


não sindicalizados tuas empregadas


domésticas muitas delas


raparigas extremosas e prendadíssimas


que esta sim é tua verdadeira memória


é tua grande e presente memória de necessidades


e oprimidos


memória presente de todos os outros que vivem apagadamente


de um ordenado menor de gente menor


e esquecida na soleira da porta


aguardando um raiozinho de socialismo.


Oh Angra minha e amada verdadeiramente


chamada do Heroismo


cidade de nevoeiro encantado


crescendo no silêncio de tantas mágoas.


Pressentem-se tuas dores em tuas noites de mãe calada


surdas e absurdas cidade perfurada


inventada retratada genuinamente nascida


na vida quotidiana de tuas


ruas de teus bairros desprezados e pobres.


Angra verdadeira coroada de trabalho de sofrimento


senhora de nunca sabida crónica esquecida de teu povo


de formigueiros imperscrutáveis que correm no sigilo de teu sangue


minha pequena cidade cosmopolita


metrópole infindável de aventuras e sonhos de maré


minha mistura de pirolito e vinho de cheiro


craca de cinco bicos na lapa da baía nascida


cálice meu perfumado


de aguardente da terra


massa sovada e suada


no alguidar de teu rosto.


 


Que faremos nesta terra cidade minha meu povo


a nossos corpos a nossas mãos a nossos braços


diante deste espaço de ondas inquietas.


MARCOLINO CANDEIAS

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Published on January 23, 2014 01:30

Minha putefiazinha maquilada de ternura


Leio-o e não consigo seleccionar. Vou usá-lo todo. Angra nunca foi tão belamente descrita nas suas encantadoras contradições:


 



ODE A ANGRA MINHA CIDADE EM TOM DE ELEGIA


 


Angra oh minha cidadezinha de bolso querida


minha putefiazinha maquilada de ternura


oh rola de papo vaidoso da Memória de D. Pedro IV


do Cais das Pipas para as naus da Índia


de Afonso VI babando-se de tolo pelos Canos Verdes


oh minha tolinha inchada de orgulho


do aqui-já-foi-só-Portugal. Oh cidade de Martins Homem


petrificado na Praça Velha


mercado do saber-mundo da novidade da vida alheia


pátio do cartaz de cinema para logo à noite


depois do comércio depois da manguinha-de-alpaca


de olhos cansados e tristes


poisados para além da janela


minha capitalzinha de avental


traçada na mão papuda da hospitalidade.


Oh Angra nome de baía


cidade sentada na banqueta da tarde


cidade do mar te chamou Félix


oh minha pequena burguesinha ignorante


minha cretinazinha paspalhona


usas ainda nas trancinhas os lacinhos de fita


à antiga inda te ficas pela


novidade do barco estrangeiro que vem


para a descarga do trigo. Ficas-te


pelo Cais da Alfândega. Lá cabe


todo o teu universo. Ficas-te pela


crença no boato de especulação política


Ficaste pela honesta pela criteriosa notícia


dos teus jornais habilidosamente bem colados


politiqueiros pequeninos obesos calvos beatos


mentindo com todas as verdades e insinuando


nos tentáculos das suas entrelinhas subtis.


Oh minha cidade de mar cidade de traço de pernas sensuais


crestadas pelo sol dos cajins dos calhaus da rocha


oh minha desavergonhadinha à moda de Lisboa


imitação caricatura em diminuta escala


imitação mal imitada limitada


minha cidade de arredores bem


São Carlos de quintas e laranjais


cidade minha de arredores mal


São Mateus da Calheta cheio de vendas e pescadores.


 


Oh Angra cidade única e minha


cidade de nevoeiro encantado silenciosa


memória alongando-se pela bruma esvanecendo-se


já não de D. Pedro IV mas tu cidade


em ti própria renascida outra memória


verdadeiramente tua


a de


teus marginais


a de


teus infelizes operários teus pescadores do Corpo Santo


teus esfumados reformados em seus passos mudos


teus engraxadores rezingões sumidos na insignificância


teus guardas municipais de sentinas teus vendedores de


fava torrada e amendoim no Largo do


Prior das Camionetas ao pé do teu Jardim


todos os teus empregados sindicalizados e


não sindicalizados tuas empregadas


domésticas muitas delas


raparigas extremosas e prendadíssimas


que esta sim é tua verdadeira memória


é tua grande e presente memória de necessidades


e oprimidos


memória presente de todos os outros que vivem apagadamente


de um ordenado menor de gente menor


e esquecida na soleira da porta


aguardando um raiozinho de socialismo.


Oh Angra minha e amada verdadeiramente


chamada do Heroismo


cidade de nevoeiro encantado


crescendo no silêncio de tantas mágoas.


Pressentem-se tuas dores em tuas noites de mãe calada


surdas e absurdas cidade perfurada


inventada retratada genuinamente nascida


na vida quotidiana de tuas


ruas de teus bairros desprezados e pobres.


Angra verdadeira coroada de trabalho de sofrimento


senhora de nunca sabida crónica esquecida de teu povo


de formigueiros imperscrutáveis que correm no sigilo de teu sangue


minha pequena cidade cosmopolita


metrópole infindável de aventuras e sonhos de maré


minha mistura de pirolito e vinho de cheiro


craca de cinco bicos na lapa da baía nascida


cálice meu perfumado


de aguardente da terra


massa sovada e suada


no alguidar de teu rosto.


 


Que faremos nesta terra cidade minha meu povo


a nossos corpos a nossas mãos a nossos braços


diante deste espaço de ondas inquietas.


MARCOLINO CANDEIAS

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Published on January 23, 2014 01:30

January 22, 2014

Mas, quanto a isso, Lisboa lava as mãos

O Tribunal Constitucional foi absolutamente razoável ao autorizar o reforço das compensações salariais aos funcionários públicos açorianos. A insularidade tem custos e as verbas provêm do Orçamento Regional. Só que a tragédia humana em curso nos Açores, neste momento, não tem nada a ver com a função pública. Em Portugal o desemprego baixou 2,8%, nos Açores aumentou 15,4%. E não foi em 2013: foi em Dezembro./Terra Chã, 22.1.14


 


Vocês estão a ver o que estes números significam?



 

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Published on January 22, 2014 01:40

January 20, 2014

E agora está aqui a suspirar, frustrado, porque os caretas já não querem brincar mais


O Melville foi, enfim, esterilizado. Pensámos que chegaria a casa combalido e triste. Imaginámo-nos a fazer-lhe canjinhas, a aconchegá-lo com mantas acolchoadas, a discutir um com o outro porque hoje, ao menos hoje, não deveria ser dia de dormir na garagem. Afinal, veio igual. Trazia um penso na pélvis e, quanto ao resto, foi o caos do costume. Entrei na clínica e já lá andava a rabiar, tirando o juízo à gaiata da recepção. No carro, venceu duas vezes as barreiras do porta-bagagens e à terceira tentativa quase se enforcou no cinto de segurança. Chegou a casa, comeu tudo o que pôde, brincou com os brinquedos todos, atirou-se aos livros, aos bibelôs e ao papel higiénico. Agora está aqui debaixo da mesa, a tentar fornicar a minha perna, tentando tirar o máximo partido das hormonas que ainda lhe restam no sistema. É o bom e velho Melville, afinal. Já tinha saudades dele./Terra Chã, 20.1.14.


 


E vocês, esterilizam os animais?

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Published on January 20, 2014 14:17

Eu hoje invejei um homem

Chamam-lhe José dos Cestos, mas eu vou chamar-lhe Sr. José. Conheci-o hoje, a pretexto de um cesto particular que pretendo mandar fazer, e ali fiquei, todo o tempo que pude, a vê-lo trabalhar, escolhendo os vimes, entrelaçando-os com vigor, contando da sua arte. Uma impressão, por momentos, de que a vida podia afinal não ser mais do que isso: fazer cestos de vime, fazê-los bem feitos e cobrar com justiça. Aquele homem chegou lá sem ter precisado de andar tanto. Ele sabe quanto vale aquilo que faz e sabe quanto vale ele próprio, ao fazê-lo./Terra Chã, 20.1.14.


 


E para vós, o que constitui uma vida simples?


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Published on January 20, 2014 14:14

Tanta volta para chegar a isto

Bom, chega de trabalho por hoje. Vou acordar a patroa e o cão e dar a habitual volta à ilha dos domingos. Pelas minhas contas, apanharemos o crepúsculo em Santa Bárbara. O mundo não precisa de ser maior do que isso./Terra Chã, 19.1.14.


 


E o mundo do leitor, de que tamanho precisa de ser?


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Published on January 20, 2014 14:09

January 19, 2014

Chamei-lhe José Corvelo, mas também devia ter usado o nome dele


Esta manhã dei boleia a uma personagem de "Os Sítios Sem Resposta", que ia a caminho da venda do Eduardo. Era um homem antes de eu o ter transformado numa personagem e continuou a ser um homem depois disso. Temo, pela degradação do seu vigor físico e pela própria marcha do calendário, que a personagem lhe sobreviva em menos tempo do que gostaria. Triste consolo será. Aos velhos da Terra Chã, o Vieira e o Henrique Cabaça, o José Nogueira e o Elias, o José Cota, o Manuel Cabreiro e todos os outros (poucos) que ainda restam desse glorioso tempo dos homens bons, eu gostava de poder homenagear individualmente, demoradamente, sistematicamente, pelo exemplo de vida e de tenacidade que constituíram para mim e para quem mais tenha querido aprender com ele. Um deles será uma das principais personagens de "Cerrados", com o seu próprio nome e tudo. Talvez nunca o saiba, porque lê mal e se interessa pouco por tolices. Mas a homenagem, bem vistas as coisas, também não é para ele: é para nós. E talvez nem seja homenagem, mas ralhete. Esquecemo-nos de mais. Esquecemos. Esquecer é a grande tragédia, não apenas deste povo, mas da própria espécie.

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Published on January 19, 2014 03:29

January 17, 2014

Nada disto é novo, mas às vezes precisa de ser repetido


Pedem-me, para a NTV, um texto sobre “Casa dos Segredos”. Mas é para já:



«Não percam tempo, por favor, a dizer-me que “Casa dos Segredos-Desafio Final 2” é diferente de “Casa dos Segredos 1”, “2”, “3” ou “4” ou de “Casa dos Segredos-Desafio Final 1”. “Casa dos Segredos” é “Casa dos Segredos”: um sucedâneo de “Big Brother” ainda pior do que o “Big Brother” – um reality show ainda mais voyeurista, em que participa gente ainda mais desinteressante e boçal, produzido de um modo que reforça ainda mais essa boçalidade e não anunciando outra coisa senão sucedâneos piores ainda, e mais boçais, e com gente mais vazia. Os espectadores gostam? Os espectadores são, demasiadas vezes, os maiores inimigos de si próprios. Na obsessão do escapismo – de se distraírem, de fugirem do quotidiano, de garantirem aquilo a que Coleridge chamava suspension of disbelief (ou seja, de efectivamente acreditarem em mundos diferentes e mais simples) –, submetem-se a si, submetem os seus momentos em família e submetem as suas crianças ao endeusamento da miséria humana, do vácuo intelectual, da incultura, da falta de ética de trabalho, da vingançazinha, da raivinha, do mexericozinho, do coitozinho estratégico e do desembaraçozinho de quem não tem cá papas na língua. É um hábito deplorável, que induz uma formação igualmente deplorável e que também ajuda a explicar como foi possível este povo chegar aqui, totalmente impotente perante o rumo do país, os desmandos das suas elites e os desafios do bem comum. E a TVI, com toda a experiência adquirida, fornece à medida – cada vez mais à medida, cada vez mais perfeito, cada vez mais viciante, cada vez mais oportuno. Cá vai um elogio, pois: trata-se, de facto, de uma máquina de produção poderosíssima. Como aquelas de que se serviram tantas ditaduras.»/Terra Chã, 17.1.14


 


E vocês, ainda não vomitam a televisão generalista?

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Published on January 17, 2014 13:20