Joel Neto's Blog, page 41
March 2, 2014
"E" em vez de "mas"
Às vezes ocorre-me que devíamos dispensar as adversativas. Chega a ser uma sensação cristalina. Todas estas contradições têm a sua harmonia e, numa manhã de sábado com sol, essa harmonia pode torna-se bastante nítida.
February 28, 2014
Às vezes...
February 27, 2014
Trabalho independente para usar pela oposição e pela governação - sem diabolizações inúteis
Salto ontem a Ponta Delgada para a apresentação do Conselho Consultivo de Independentes do PSD/A, para cuja coordenação-geral aceitei o convite de Duarte Freitas. Um excelente grupo de coordenadores sectoriais, um evidente entusiasmo por parte da direcção e das estruturas do partido e, já esta manhã, vários emails e mensagens de personalidades de diferentes ilhas, disponibilizando-se para participar. Nos Açores, o PSD é oposição e o PS governo há 17 anos. A nossa taxa de desemprego continua a crescer a um ritmo avassalador, temos um nível de abandono escolar superior à de muitos países em vias de desenvolvimento e estamos na liderança nacional em virtualmente todos os índices de subdesenvolvimento humano: analfabetismo, alcoolismo, violência doméstica, abuso sexual, gravidez precoce. Muitos açorianos não gostam de ouvir dizê-lo. Infelizmente, sem os enfrentarmos os números só se agravarão.
February 25, 2014
Entretanto nasceu o gaiato, veio cheio de saúde e saiu à mãe
Nem sempre gosto tanto de escrever sobre os restaurantes que visito para a Notícias Magazine como gostei de escrever sobre este Delícias de Goa. Foi uma visita especial.
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«AS SETE PARTIDAS DO MUNDO
Muita da comida com que um lugar se faz representar não é tanto um produto desse lugar, como um produto dos esforços dos visitantes (ou imigrantes) de outro lugar ainda para manterem viva a sua própria comida com recurso aos ingredientes aí disponíveis. Dito de um modo filosófico, é mestiçagem. Dito de um modo gastronómico, é fusão.
A comida de Goa é essencialmente fusão. Acontece que, em processos semelhantes, vem às vezes a verificar-se que determinada técnica cristalizou melhor do outro lado do mundo, onde alguém se esforçou nostalgicamente pela sua preservação, do que em sua própria casa, onde evoluiu sem grandes receios. No Sul do Brasil, por exemplo, encontrei gente dançando a Chamarrita dos Açores com uma pureza de movimentos e uma emoção nos olhos que nem sempre encontro na minha própria terra.
A gastronomia goesa tem um pouco disto também. E, muito provavelmente, nenhum outro restaurante português a interpreta tão bem como o Delícias de Goa.
Fui com o Jorge e a Raquel, os três cheios de fome, mas ela mais grávida do que nós (há sempre uma mulher grávida nestas crónicas). E a primeira coisa que me encantou foi o acolhimento de José Paula Rodrigues, o exemplo de vida e tenacidade que constitui e a paixão com que se esforça, hoje, pelo culto de uma certa ideia de lusofonia.
Goês de nascimento e criação, José Paula andou décadas por África, trabalhou em petróleo e em finança. Há agora quase seis anos, perdeu a cabeça: abriu um restaurante de declinação indiana – e, em vez da habitual tikka masala de galinha, para que sempre se encontra clientela, foi experimentando pratos tradicionais de Angola, Brasil e Macau, à sombra de uma carta essencialmente goesa e mutante que hoje consiste de relíquias como sarapatel, chacuti, balchão, biryani, vindalho, suquem ou ambotic, para além dos inevitáveis caris e chouriços e especialidades sazonais e/ou eventuais como cabidela, feijoada ou lampreia à goesa (sim, lampreia à goesa).
Começámos pelas pequenas chamuças, feitas na casa e a partir do zero (como tudo o resto, confirmámo-lo depois), e de imediato nos afluíram à boca 450 anos de aculturação, estoicismo e pimenta-malagueta. Prosseguimos pelos caris, primeiro o de camarão (muito bom) e depois o de caranguejo (magnífico), e imaginámo-nos em Belém, chamando nomes ao Velho do Restelo e ao seu conformismo sem imaginação. Provámos o sarapatel, uma versão particularmente exótica dos sarapatéis lusitanos, e já dobrávamos o Cabo das Tormentas, enfrentando o monstro com as mãos nuas, como se nada pudesse deter-nos.
Finalizámos com bebinca (talvez, paradoxalmente, o prato menos marcante da noite), e com um chamado Gelado do Reino, à base de nozes, elegante e apaziguador. Acompanhámos com Pica Peixe 2012, um primeira colheita de Nuno Cancela de Abreu com moscatel graúdo e arinto, e depois demos um salto ao Douro para um Cytisus 2012, do mesmo produtor.
Cercavam-nos rosas dos ventos, flores de lis e murais evocativos da vida familiar de Goa. A última coisa de que me lembro foi de fazer contas aos meses, a ver se estou em Lisboa em Março, para esse venturoso fim-de-semana da lampreia. Então, saí para a rua e fumei. Como se poderia falar de Descobrimentos sem tabaco?»
February 23, 2014
Da série Fim-de-Semana
February 19, 2014
Já sei que vocês não leram e não gostaram
Deixem-me dizer-vos uma coisa para vos rachar esses óculinhos de massa: "Veneza Pode Esperar", de Rita Ferro, é um belo diário – na sua dimensão confessional como na honestidade, no que as suas piscadelas de olho tribais e classistas nos dizem como nos recursos estilísticos, no retrato de uma mulher como no de um fragmento particular do espaço-tempo.
February 18, 2014
A vida no campo
O pior é quando tenho de ir à cidade, principalmente durante o dia. Uma vez basta para fazer desmoronar o equilíbrio de toda a uma semana.
Um ano e meio depois, continuamos com uma vida profundamente rotineira. É a minha maior força. Sem isso não teria qualquer possibilidade de cumprir os prazos. Nenhum deles está em causa, para já.
O resto é chato, suponho. Acordo cedo e trabalho na ficção durante toda a manhã. Volto a ela ao fim do dia, para releituras e catalogação de notas, e entretanto já fiz uma série de outras coisas.
À hora de almoço partimos os três, eu, a Catarina e o Melville, para uma longa caminhada. Nas últimas semanas temos ido para os altos da Terra Chã, através das matas do meu pai e dos pastos que foram do meu avô.
É uma caminhada extenuante, que obriga o Melville a dormir a tarde toda, deixando-me trabalhar em paz.
Hoje levámos farnel e sentámo-nos a almoçar sobre umas fragas, a observar o casario distendido até ao mar, sob o nevoeiro. Ainda está frio – provavelmente esperaremos umas semanas até transformá-lo numa rotina.
Agora são duas da tarde e tenho pela frente vários textos para os jornais. Acabarei nunca antes das nove da noite, após o que trabalharei ainda um pouco mais na ficção, antes de ir jantar e fazer o cão correr no jardim, a ver se se cansa de novo.
Vou à cidade ao sábado e às vezes ao domingo. As compras, faço-as normalmente no supermercado de São Mateus. O gás vêm-mo trazer a casa.
Se tenho alguma burocracia, ou uma consulta médica, ou um compromisso mal assumido, é um desastre. Passo a semana angustiadíssimo porque nesse dia não poderei escrever senão para os jornais.
Os jornais não esperam. Fazer esperar os livros dói. E não se pode escrever sem tempo para respirar. Sem tempo para perder.
Amanhã lá tenho de ir, para nem sei bem o quê. Estou azedo desde ontem. Einstein haveria de gostar disto: Angra já me stressa tanto como Lisboa um dia me stressou.
Não foi a cidade que mudou: fui eu. E ainda bem.
Aqui e em qualquer outro lado
Troco duas mensagens de e-mail com a M., uma antiga namorada do S. cuja energia alegrava a Rua da Rosa na recta final dos meus tempos de Bairro Alto. Mudou-se para Rabo de Peixe, em São Miguel, onde vai ocupar-se de uma unidade de turismo rural, e pede-me conselhos sobre a vida nas ilhas. Digo-lhe: “Já agora, dou-te um conselho, sim. Dois, na verdade. Mantém-te longe da política e o mais longe possível dos políticos; e, quando deres por ti de candeias às avessas com as pessoas, refugia-te na paisagem.” Acabo de ser objecto de uma inquietante descortesia por parte de um dirigente regional, que esta absurda convicção de que somos todos irmãos vai tornando difícil de engolir – e, enviada a mensagem, dou por mim zangado com o meu próprio azedume. Na verdade, são dois conselhos que eu próprio não segui. Mas, pensando bem, são os mesmos que eu daria a quem quer que me pedisse conselhos sobre a vida onde quer que fosse. A política em vigor é quase sempre uma merda e as pessoas são quase sempre menos confiáveis do que a paisagem. Ademais, ela estará de facto melhor se conseguir segui-los.
February 14, 2014
Nos dez anos da morte de Emanuel Félix
«AS RAPARIGAS LÁ DE CASA
Como eu amei as raparigas lá de casa
discretas fabricantes da penumbra
guardavam o meu sono como se guardassem
o meu sonho
repetiam comigo as primeiras palavras
como se repetissem os meus versos
povoavam o silêncio da casa
anulando o chão os pés as portas por onde
saíam
deixando sempre um rastro de hortelã
traziam a manhã
cada manhã
o cheiro do pão fresco da humidade da terra
do leite acabado de ordenhar
(se voltassem a passar todas juntas agora
veríeis como ficava no ar o odor doce e materno
das manadas quando passam)
aproximavam-se as raparigas lá de casa
e eu escutava a inquieta maresia
dos seus corpos
umas vezes duros e frios como seixos
outras vezes tépidos como o interior dos frutos
no outono
penteavam-me
e as suas mãos eram leves e frescas como as folhas
na primavera
não me lembro da cor dos olhos quando olhava
os olhos das raparigas lá de casa
mas sei que era neles que se acendia
o sol
ou se agitava a superfície dos lagos
do jardim com lagos a que me levavam de mãos dadas
as raparigas lá de casa
que tinham namorados e com eles
traíam
a nossa indefinível cumplicidade
eu perdoava sempre e ainda agora perdoo
às raparigas lá de casa
porque sabia e sei que apenas o faziam
por ser esse o lado mau de sua inexplicável bondade
o vício da virtude da sua imensa ternura
da ternura inefável do meu primeiro amor
do meu amor pelas raparigas lá de casa»
Emanuel Félix,
“Habitação das Chuvas”, 1997
Não tarda durmo eu no corredor
No fim, desistimos: fechámos as portas dos quartos à chave e deixámos o sacaninha dormir no corredor. Não tivemos coração para pô-lo na rua com o temporal, mesmo se se tratava apenas de um resto dele. Entretanto, portou-se tão bem, com tal cuidado e tal gratidão, que decidimos dar-lhe uma oportunidade. Daqui a pouco vou buscar a cama dele à garagem. E assim se consuma o cliché. Mereço tudo o que possam dizer de mim.


