Joel Neto's Blog, page 42
February 13, 2014
Este é o povo dos vulcões e dos terramotos
Há alerta vermelho para os Açores, em função da passagem de uma tempestade com ventos fortes (fortíssimos, na verdade) – e, entre telefonemas, e-mails e mensagens de Facebook, já me contactaram dezenas de amigos, demonstrando a sua terna preocupação. Há pouco escrevi no Facebook, com alguma ironia: “Contem a nossa história.” Levaram-me a sério, e então tive de esclarecê-los. Há-de haver estragos, como sempre. Mas, como sempre também, e com poucas excepções, este povo acordará amanhã e olhará para o que estiver destruído e reconstruirá aquilo que tiver de ser reconstruído e cozinhará uma alcatra para o jantar, que de resto comerá a rir. Salvo tragédias esporádicas, que infelizmente podem ocorrer em qualquer altura do ano – e que muitas vezes ocorrem até com condições muito menos graves do que esta, desde logo porque não se verifica o cuidado que há em momentos como este –, isto é pouco diferente de um dia normal. Na verdade, os nossos amigos de além-mar preocupam-se mais do que a maioria de nós. E quem de nós se preocupa tanto como eles é porque tem problemas específicos para resolver: barcos para amarrar, animais para arrecadar, telhados para proteger. São, felizmente, uma minoria, embora mereçam a nossa preocupação. E, mesmo assim, muitos deles farão a sua alcatra também – e, como nós, comê-la-ão rindo.
February 12, 2014
Chateaubriand, Mark Twain, Charles Darwin, Herman Melville. E John Updike
«Açores
Grandes navios verdes
eis que navegam
ancorados, para sempre;
sob as águas
enormes raízes de lava
prendem-nos firmes
a meio do atlântico
ao passado.
Os turistas, pasmando
do convés,
proclamam aos guinchos lindas
as encostas malhadas
de casinhas
(confettis) e
doces losangos
de chocolate (terra).
Maravilham-se com
os campos graciosos
e os socalcos
feitos à mão para conter
os modestos frutos
das vinhas e das árvores
importadas pelos
portugueses:
paisagem rural
vindo à deriva
de há séculos;
a distância
amplia-se.
O navio singra.
Outra vez a constante
música alimenta
um vazio à popa,
os Açores sumidos.
O vácuo atrás e o vácuo
à frente são o mesmo.»
John Updike, trad. Jorge de Sena
Ética e estética
O V. chamou-me “de direita”. Foi na brincadeira, como entre nós é comum, mas em todo o caso permitiu-me explicá-lo ao resto da audiência. É evidente que eu não sou de direita. Entre ter um gozo particular em invectivar o discurso redondo de alguma esquerda e ser de direita vai alguma distância. E discordar do modelo de desenvolvimento em vigor nos Açores e ser de direita vai outra ainda. Preocupa-me a desigualdade social. Alguém que se preocupa com a desigualdade social nunca poderia ser de direita.
Por Via das Circunstâncias é o outro nome do Mal
Fechámos o fim-de-semana com “12 Anos Escravo”, de Steve McQueen, e voltámos para casa com os nervos em franja, à procura da primeira discussão. O que ali inquieta, mais uma vez, não é tanto a crueldade como a maldade. Por outras palavras, não é a personagem de Fassbender, um alcoólico louco, que mais inquieta: é a de Cumberbatch, um homem bom que “por via das circunstâncias” é também esclavagista. Aí, mais uma vez, se encontra o Mal. E aí se encontra também a chave para perceber o que eram muitos escravos, e aqueles escravos em particular: simples ferramentas, categoria abaixo ainda da dos animais. Bater-lhes, no fundo, era lateral.
February 10, 2014
Coisas que envaidecem um homem
Escrevo para os jornais há tempo suficiente para saber o que valem estas coisas. Às vezes são apenas a visão genérica de uma publicação, outras até a visão genérica de uma pessoa só. Não obstante, soube-me bem. A revista “Ler” fez um especial sobre “Mau Tempo no Canal” e colocou-me entre outros seis “autores ilustres” dos Açores a juntar a Nemésio, ao lado de Antero, Natália, Cristóvão de Aguiar, Onésimo Teotónio de Almeida e João de Melo. Faltam lá um monte de ilustres de várias gerações: Daniel de Sá e Álamo Oliveira, Emanuel Félix e Dias de Melo, Martins Garcia e Fernando Aires, Urbano Bettencourt e Vamberto Freitas, Pedro da Silveira e Ivo Machado, Rui Machado e Mário Cabral, Nuno Costa Santos e Alexandre Borges, Dinis Borges e Victor Rui Dores e Madalena Férin e Santos Barros e Leonardo Sousa e tantos outros. Não me fingirei indiferente, porém. Eu nunca quis muito mais da vida do que ser um escritor açoriano. Português, sim, mas português dos Açores. Mais do que isso: açoriano. Ser considerado válido como tal coisa, nas melhores publicações, tem o seu quê de pacificador. E fingir-me superior a isso, na presunção de que um escritor se deve comportar assim ou assado, seria trair aquilo que me funda: como homem e como criador também.
February 9, 2014
Da série Lugares Onde a Sustentabilidade Não é Só Uma Brincadeira de Meninos Ricos
Candeeiros em vime feitos pelo José dos Cestos. 25 euros a unidade – sem regatear. Nos Açores, naturalmente.
sem regatear.
February 7, 2014
A sorte de estar rodeado de gente inteligente e culta
Conversa com o Pedro ontem à noite, em pleno jantar de Dia de Amigos, sobre o primeiro terço do romance. Leu-o com cuidado, encontrou-lhe algumas das pontas soltas que pretendo atar e outras ainda que eu nem me apercebera de que soltara. Não as unirei a todas, mas ganhei nova perspectiva sobre a intriga. Tenho muita sorte com os amigos a quem pude pedir o brutal favor de ler (ou de ir lendo, depende dos casos) o manuscrito. Ademais, completam-se espontaneamente: a Ana Maria mais vocacionada para os grandes contornos e a sensibilidade em geral, o Pedro para as linhas narrativas e as suspensões, a Catarina para o estilo e – no fim – o Jorge para a melodia e a (chamemos-lhe assim) orquestração. Isto fora o Paulo, agente e amigo, que se pronuncia sobre tudo isso também e, depois, ainda lhe junta a estratégia. Parece muita gente, e é de facto muita generosidade junta. Mas nenhum grande livro é escrito de outro modo, a não ser por génio ou milagre. Portanto, as condições estão lá. Cabe-me a mim adicionar-lhes a grandeza. Não sei se o conseguirei, mas estou disposto a morrer mais jovem por isso.
February 6, 2014
Maria Luísa Bretão é morena e sardenta – naturalmente, também ajuda
Ao fim de 300 mil caracteres, dou por mim a escrever sobre uma personagem de 38 anos como se de uma princesa se tratasse, cheio de cuidados e pequenos fascínios. Noutra altura ter-me-ia ocorrido que os nossos gostos envelhecem connosco, e que provavelmente só isso nos salva. Era um cínico. Hoje acho, pelo contrário, que aos 38 anos uma mulher ainda pode voltar a ser uma princesa. Que, bem vistas as coisas, as mulheres de 38 anos são as novas princesas e é pena eu ter sido o último dos escritores a percebê-lo. Apesar de tudo, passaram-se 200 anos sobre Balzac.
February 5, 2014
Da série Dias Açorianos
Não tive pena, ou sequer saudades
Uma amiga remeteu-me para um texto antigo e eu descobri – não sem alguma surpresa – que nunca mais escrevi assim. É um texto da fase final dos meus tempos de Bairro Alto, não tão distantes assim dos meus tempos de Lisboa e, portanto, escrito há não tantos anos quanto isso. Mas foi outra vida e foi outra escrita. Não tive pena, ou sequer saudades. Pergunto-me apenas quantas vidas um homem viverá.
***
«No outro dia, deitei um telemóvel para o lixo. Não sei se vocês alguma vez deitaram um telemóvel para o lixo. É impossível. Um telemóvel deitado para o lixo é a mesma coisa que um bumerangue atirado de uma montanha: volta sempre. É que não conseguimos livrar-nos dele. Há sempre alguém que o encontra. Há sempre alguém a mexer no nosso lixo. E então, dois dias depois, telefona-nos lá para casa a nossa mãe, a namorada, um amigo: “Perdeste o telemóvel?” Num rebate de consciência, o respigador decidira tentar devolver o telemóvel ao dono e pusera-se a ligar para todos os números da marcação rápida do aparelho. Afinal, ninguém ia atirar para o lixo um telemóvel ainda em tão bom estado. Provavelmente, o dono perdera-o. É outra coisa com que devemos contar: para além de haver sempre alguém a mexer no nosso lixo, bem pode acontecer que esse alguém tenha coração. Por mim, aprendi a lição: nunca mais deito um telemóvel para o lixo. Quando morrer, espero levá-los a bordo: vinte ou trinta telemóveis ao meu lado no caixão, todos eles representando dois anos diferentes da minha vida. Cada um estraga o dinheiro naquilo que pode.
Adiante. Isto tudo para dizer-vos que, em querendo sentir determinada emoção, um homem sente-a sempre. Se quer chatear-se, é facílimo: algures ao longo dia, alguma coisa há-de oferecer-lhe a possibilidade de chatear-se. Se quer decepcionar-se com alguém, melhor ainda: não há semana em que não nos demos todos mutuamente pelo menos um motivo de decepção. E eu, por aqueles dias em que deitei um telemóvel para o lixo, devia andar ansioso por comover-me. Talvez fosse sentimento de culpa, porque, para além de um telemóvel, havia deitado para o lixo várias coisas: revistas antigas, pares de sapatos, até móveis. De maneira que, quando finalmente a minha mãe ligou: “Perdeste o telemóvel, filho? Um senhor achou-o. Fiquei com o número dele, para se encontrarem”, comecei logo a comover-me. Um telemóvel tão velho, caramba – quem haveria de considerar que um telemóvel tão velho, com o monitor tão comprometido e o teclado tão desengonçado, ainda teria algum préstimo? E mais comovido ainda consegui pôr-me quando, enfim, avistei o dito senhor, na verdade um rapaz da minha idade, subindo a rua ao meu encontro, com o seu blusão do Benfica muito apertadinho junto ao pescoço, para se proteger do frio.
Explicou-me (e o seu rosto como que transbordava bondade), erguendo o meu velho telemóvel na mão: “Foi o meu sogro que mo ofereceu. Encontrou-o ali ao pé da drogaria. Ainda o mandámos desbloquear, mas depois começámos a ver os números e pensámos: ‘Eh, pá, é melhor devolver isto ao homem.” Explicava-mo, mas eu já não o ouvia. Imaginava-os aos dois, sogro e genro, ambos benfiquistas, sentados frente a frente na sala de estar, com o Telejornal ao fundo, aguardando o jantar e tentando, em desespero, encontrar a intimidade nunca conquistada. “Tenho aqui um telemóvel. Toma. Ofereço-to”. Depois ocorreram-me as duas mulheres à porta da cozinha, espreitando através do reposteiro, mortificadas por não terem baixado o som da televisão, de forma a ouvirem o que debatiam os seus homens. E, finalmente, vi o sogro apenas, um velho baixo, rubicundo, totalmente fofinho, com o seu boné da Delta Cafés muito enfiado, saindo de casa às seis da manhã e depois subindo para cima do camião, primeiro a marmita e logo ele próprio, a caminho de uma obra.
Guardei o aparelho no bolso e, de tão choroso, mal agradeci, apesar do compasso de espera do rapaz, como se me quisesse dizer mais qualquer coisa. De maneira que, no dia seguinte, voltei a ligar: “Peço desculpa. Nem demonstrei devidamente a minha gratidão.” E do outro lado: “Nada, nada. Se quiser pagar os vinte e cinco euros que foi de desbloquear o telemóvel, está à vontade.” Combinámos no mesmo sítio. Não veio o rapaz, mas o sogro: tinha calças tipo tropa, sweatshirt com capuz amarelo e oculão de surfista – e olhava de lado, metendo estilo. Estava mais em forma do que eu e, pelo ócio do encontro, vivia do RSI. Dei-lhe os vinte e cinco euros, tornei a agradecer-lhe, mandei um abraço ao genro e, como que decidindo-o, comovi-me outra vez. Vinte e cinco euros por uma crónica não é nada caro.»


