Joel Neto's Blog, page 50

November 17, 2013

Terra Chã, 17 de Novembro de 2013


Um imigrante chinês, que já tinha praticamente o monopólio dos lojas-do-chinês da ilha, acaba de abrir um pequeno centro comercial em Angra. Fica na zona industrial da cidade, mas é sofisticado, com lojas de marca, iluminação cara e (imagino) aromatizadores de qualidade. Muitos terceirenses, daqueles para os quais o maior defeito desta terra era não ter um centro comercial, passam em excitação todo o fim-de-semana, entupindo o edifício e esgotando os lugares de estacionamento em volta. Estão gratos ao chinês, e eu também estou: a sua é uma lição de tenacidade e de ética laboral que nos fazia falta receber (e que ainda nos faz falta assimilar).  Por outro lado, aquilo que distingue uma loja-do-chinês, hoje, já nem é muitas vezes o preço, pois todos sabemos da qualidade dos produtos: é a total disponibilidade dos seus proprietários para trabalharem vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, cinquenta e duas semanas por ano – sem uma folga, sem um feriado, sem Natal ou dias santos. E eu já não tenho a certeza de que essa lição mantenha as virtualidades que um dia lhe encontrei. Independentemente da diáspora que assim se impõe, digo: não é saudável e, independentemente dos seus méritos como chamada de atenção, como desafio, deve ser colocada em perspectiva. Eu mudei tanto quanto isso.



 


***


 



Volta pela ilha ao longo da tarde de ontem, como sempre ao sábado, desta vez com a preocupação de identificar os mamarrachos que, apesar de tudo, a beleza da paisagem ainda consegue (pelo menos aos meus olhos, devendo-se talvez descontar o estado de paixão) obnubilar. Há de facto casas asquerosas na Terceira, e as motivações por detrás dos seus desenhos parecem constituir um cocktail de três factores distintos: o mau gosto, a megalomania e o desejo de ser diferente. Dos três, o mais perigoso é este último: confunde-se demasiado com um mérito em si próprio.

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Published on November 17, 2013 06:31

Terra Chã, 16 de Novembro de 2013


Está a ilha a braços com o triste relato da morte de uma criança sob as rodas do tractor do avô. A história, prenhe de ruralidade na sua iconografia, demonstra-nos, mais do que qualquer outra coisa, como basta uma distracção: um pequeno momento de distracção e pode destruir-se tudo, inclusive aquilo por que mais zelámos, aqueles de que cuidámos como de mais nada, todo um sistema de vida, toda uma possibilidade, o próprio amor. Por outro lado, não tardou a acorrer o século XXI e a desmultiplicar-se em vídeos do YouTube e posts do Facebook, publicados a meio entre links para canções FM e frases de efeito roubadas à literatura cor-de-rosa. Pareciam dedicados à memória da criança em causa, esses vídeos e esses posts, mas eram na verdade muito mais dedicados a provar que os seus autores, amigos diligentíssimos da família (supõe-se), também eram de algum modo protagonistas da história – que a história também era de algum modo “sobre” eles. Toda a fealdade desta espécie consegue, às vezes, concentrar-se num conto só.

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Published on November 17, 2013 06:23

Terra Chã, 15 de Novembro de 2013

Chegaram as anonas. Corações-de-negro, como se diz aqui. O Outono explode de romantismo.




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Published on November 17, 2013 06:21

SourceURL:file:///Macintosh%20HD/Users/joelneto... Terra Chã, 15 de Novembro de 2013

Chegaram as anonas. Corações-de-negro, como se diz aqui. O Outono explode de romantismo.




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Published on November 17, 2013 06:21

November 14, 2013

Terra Chã, 14 de Novembro de 2013


A hora de almoço na Silveira, ao longo da qual nado durante uma meia hora enquanto o Melville me espera sobre o pontão, coleccionando festas entre virtualmente todos os outros banhistas de Inverno de Angra, foi hoje um fracasso. Um barbado castanho, grande e sujo, apareceu não sei de onde, sem coleira ou dono, e só depois de uma fita razoável consegui tirar de lá o meu cão em segurança. Já me lembro porque é que não gostava de cães: porque qualquer palerma pode ter um e, depois, não cuidar devidamente dele.



 


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Leio a confissão de Mike Tyson, incluindo o hábito de lutar com cocaína no sangue e o truque de calçar (será “calçar” o verbo?) um pénis falso com urina alheia para escapar aos controlos anti-doping, e torno a temer por mim. Não que ainda esperasse muito de Tyson, nomeadamente depois de vê-lo associar-se a gente como Robin Givens ou Don King, violar uma mulher, arrancar a orelha de um adversário à dentada ou dedicar-se à columbofilia. Mas ele foi, em todo o caso, o melhor pugilista que eu vi combater. E o padrão que se vai definindo em torno dos meus heróis começa a preocupar-me. Oxalá nunca se descubra nada sobre Senna para além daquela coisa de deixar como viúvas todas as estrelas pop que encontrou – e queira Deus, já agora, que Roger Federer, Usain Bolt e Tiger Woods tenham o cadastro limpo de batota (excluindo a batota conjugal, em que Tiger foi mestre, mas com a qual não tenho nada a ver). De resto, Diego Maradona, Barry Bonds, Lance Armstrong, Mike Tyson: todos eles se destruíram, a si e ao que representavam para mim – e depois ainda usaram a fealdade da sua história para reabilitar a conta bancária, inclusive à custa do seu próprio carácter. Chego a ganhar um certo respeito por Ben Johnson, o canadiano que ainda há dias lamentava ter pago pelo doping como nenhum outro atleta na história, e que aliás continua um teso. Como é que um homem passa metade da vida a admirar a superação e depois chega ao ponto em que me encontro?

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Published on November 14, 2013 10:45

November 12, 2013

Terra Chã, 12 de Novembro de 2013


O problema das chamadas redes sociais, e do Facebook em particular, não é de emissão: é de recepção. Não está naquilo que elas permitem dizer, ou escrever, ou criar: está naquilo que, em regra, os nossos correspondentes estão na disposição ouvir, ler ou contemplar. Fui um ávido utilizador do Facebook nos últimos cinco anos, primeiro na convicção de que nenhuma divulgação do nosso trabalho é propriamente inútil, depois na suspeita de que não havia melhor maneira de me ir mantendo a par do dia a dia dos amigos (ademais, estando agora longe), inclusive os nascidos online, e finalmente na certeza de que nenhum outro agregador me oferecia uma filtragem tão evidente das notícias que punham as pessoas a conversar, serviço sempre útil a um cronista. Afinal, há esforços de divulgação que nos tomam demasiado tempo para os benefícios que comportam, se é que não são mesmo prejudiciais para a imagem (sempre a imagem) do nosso trabalho e de nós próprios; dantes nós falávamos com os amigos quando podíamos, por telefone ou por carta, mesmo por email, e nem por isso éramos menos amigos, ou estávamos sequer mais ausentes; e está mais do que visto que aquilo que põe as pessoas a falar – perdoe-se-me a arrogância, se ainda for possível – resume-se quase sempre ao voyeurismo ou à raiva, o que acaba até por condicionar as publicações das páginas oficiais de jornais, rádios e televisões. Afinal, e depois de uma intervenção cada vez menos frequente, falta-me agora a paciência. Talvez volte a tê-la – talvez até não consiga já viver sem aquilo. Mas hoje, como nos últimos dias, penso em escrever ali alguma coisa e simplesmente não me ocorre o quê: o que seja enriquecedor, ou mesmo apenas divertido, ao mesmo tempo para os meus correspondentes e para mim próprio. O mundo que temos não é resultado da existência do Facebook, mas o Facebook é resultado do mundo que temos, o que de qualquer maneira não o recomenda por aí além. E o mais extraordinário é que a sensação por detrás dessa conclusão é a de liberdade. Ou parece-me momentaneamente sê-lo, o que em todo o caso se afigura prenhe de possibilidades. Nunca foi exactamente para isto que eu quis a Internet, e talvez tenha enfim acabado a minha escravidão. Talvez.



 


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Quer dizer: é preciso cultivar uma certa solidão nesta actividade, não?



 


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O Grande Prémio de Crónica da APE foi atribuído a “Mazagran”, de J. Rentes de Carvalho. Para quê escondê-lo, mesmo de mim próprio? Eu tinha de facto esperança numa vitória de “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa.” Resta-me o vago conforto de ter perdido para um dos grandes. Porque Rentes de Carvalho é efectivamente um deles.

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Published on November 12, 2013 12:36

November 11, 2013

Terra Chã, 10 de Novembro de 2013


Jantar ontem à noite com a República das Letras, do Miguel Monjardino. É incrível o que o Miguel faz com aqueles miúdos: as armas de que os mune para a vida de todos os dias tanto quanto para a vida intelectual, aquilo em que eles próprios transformam esses ensinamentos para melhor se apropriarem deles. O sentimento generalizado é o de partir: esperar impacientemente o instante de ir para Lisboa, de ir para o estrangeiro. Senti-o também, depois demorei a voltar e não voltei para debaixo das saias da mamã, como (infelizmente) tantos da minha geração. Mesmo assim, perguntei-me: quantos não estarão, ao fim de tão pouco tempo, morrendo de saudades daquilo que tanto desejavam deixar para trás? Perguntei-mo e desejei que sim: por esta terra, por nós, mas sobretudo por eles. Então, cheguei-me para trás e ouvi citar Thoreau: “Fui para os bosques viver de livre vontade/ Para sugar todo o tutano da vida/ Para aniquilar tudo o que não era vida/ E para, quando morrer, não descobrir que não vivi.” Podia ser a minha própria biografia concentrada em quatro versos. Talvez seja a de algum deles.



 


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O Sporting perdeu com o Benfica. Eu não gosto quando o Sporting perde com o Benfica.

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Published on November 11, 2013 13:58

Terra Chã, 9 de Novembro de 2013


Um casalinho de dezoito anos divide connosco a zona de merendas do Raminho. Um velho Nissan com ailerons e várias pinturas sobrepostas, a última das quais branca e especialmente mal aplicada, espera-os à entrada. Havia um casaco modesto pendurado no cabide do banco de trás, porém – e isso captou a minha atenção. Chegámos e instalámo-nos, com a cesta de piquenique e o frango assado. Estavam no limite do parque, sentados lado a lado sobre um pequeno cobertor e comendo batatas fritas com uma torta Dan Cake ao lado, à espera do seu triunfo. O Melville escapou-se-nos e foi importuná-los. A miúda teve medo e eu pedi desculpa. Ele protegeu-a do cão, mas a seguir fez-lhe uma festa, deu-lhe uma batata frita e levantou os olhos para mim, conciliador: “Não tem importância. Eles quando são pequeninos são assim, irrequietos.” Não: não tenho a certeza de que ele tenha dito mesmo as palavras “não tem importância”. Sei que disse “irrequietos” e foi conciliador. E tenho em todo o caso a certeza de que o que havia ali, naquele rapaz, no seu olhar, na sua voz, era ternura, toda a sabedoria que se foi deixando acumular e um certo desejo de crescer, de ser o homem daquela mulher e de sê-lo de uma maneira decente e responsável. Não torno a julgar à distância os miúdos dos carrinhos tuning. Por um momento, tive esperança neles.



 


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Morreu o ti Francisco, e eu demorei a aperceber-me do que se passara. Foi, afinal, assassinado pelo companheiro de quarto no lar de idosos em que vivia, em Toronto. Recordo-o em vida, em todo o caso: dias inteiros com uma foice na mão, roçando e tornando a roçar a encosta aqui ao lado da nossa, acima e abaixo e de novo acima. Não o fazia porque o preocupasse a arrumação do quintal. Tinha oitenta anos e era gordo. Fazia-o porque amava a terra e porque queria estar em contacto com ela até ao último instante antes de voltar ao Canadá. Eu perguntava-lhe: “Quando é que o ti Francisco vem de vez?” Dizia-me que tinha de voltar para a companhia da família, e eu próprio acabava por adiar o meu regresso. Quando finalmente voltei, ele já estava retido em Toronto, debilitado e reduzido na vontade. Não sei se lhe mandei um abraço pelo Eduíno, o seu filho cavalheiro, mas gostaria de tê-lo feito. Àquele amor à terra, e à fortíssima impressão que ele sempre causou em mim, jovem e depois já não tão jovem, devo uma parte da minha formação humana.

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Published on November 11, 2013 13:56

November 8, 2013

Terra Chã, 8 de Novembro de 2013


Por outro lado, esta terra conserva para o forasteiro uma magia e um mistério que, muito provavelmente, são os seus maiores valores. Demonstrou-o ainda ontem o jornalista Mário Crespo, com o modo como ouviu e repetiu as palavras de Duarte Freitas, entrevistado no “Jornal das 9” da SIC Notícias: “Apesar de tudo, é bom viver nos Açores.” É de facto bom viver nos Açores. Os portugueses intuem-no e imaginam que seja bom visitar os Açores também. Como é que não se consegue transformar isto em economia e em turismo – eis o que não me entra na cabeça de maneira nenhuma.



 


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Ou muito me engano, ou vem aí um fenómeno verdadeiramente vulcânico na literatura açoriana e portuguesa. Lê-se o seu “Há-De Flutuar Uma Cidade No Crepúsculo Da Vida” e não se acredita que tenha apenas dezanove anos. Depois vai-se ler um conto, daqueles em que está sempre a trabalhar porque a literatura se tornou uma obsessão, e a perplexidade reitera-se. Melhor fixar este nome: Leonardo Sousa. Um garoto de São Miguel, assistente técnico de informática e Escritor com maiúscula.


 


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Sou conhecido há duas décadas pela pouca disponibilidade para as alterações à rotina. Sempre trabalhei muito e sempre tive demasiadas ambições para a minha inteligência, quanto mais para os meus eventuais interesses sociais. Houve momentos em que senti culpa e outros em que não senti culpa nenhuma, desde logo porque também ocorre os amigos, os colegas de profissão, os camaradas de letras, os artistas e os anfitriões desejosos de partilha exercerem disponibilidade acima do razoável. Neste momento, sou culpado. Acordo de madrugada, faço uma caminhada, trabalho no romance a manhã toda, uso a hora de almoço para ir dar umas braçadas à Silveira com o Melville, a ver se consigo mudar o filtro – e depois volto para a máquina, para mais nove ou dez horas de trabalho, desta vez para os jornais. Não sobra tempo nem para o facultativo, nem para o obrigatório. Sei-o e, se escrevo agora sobre isso, também é na esperança de que alguém o leia. Sou culpado e quase nunca sinto culpa, porque se trata de escrever. Mas esta semana, por exemplo, não fui ver o Zeca nem nenhum dos seus dois filmes, exibidos no Outono Vivo – e agora estou envergonhado de mim próprio.

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Published on November 08, 2013 09:39

November 7, 2013

Terra Chã, 7 de Novembro de 2013


Primeiro pareceu-me uma brincadeira, depois encontrei razões para me preocupar. Ou muito me engano, ou começa efectivamente a ganhar lastro entre uma parte da elite política e social de São Miguel a ideia de que a Terceira tem “demasiado poder” no actual status quo regional. Vejo-o no Facebook e, de repente, vejo-o um pouco por todo o lado. Ou fiquei subitamente paranóico, ou estamos um pouco mais longe do que devíamos da coesão de que precisamos. Em defesa do bem maior, espero ter ficado paranóico.



 


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Às vezes parece-me que o mundo está todo nisso, a espécie toda: nos modos com que uma pessoa coloca em cima do tapete rolante do supermercado a placa Cliente Seguinte.


 


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É fácil parecer-se inteligente quando se é céptico. O optimismo, ao menos, tem desafio.

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Published on November 07, 2013 13:40