Joel Neto's Blog, page 53

October 14, 2013

Lisboa, 11 de Outubro de 2013


Uma coisa em Almeida Faria me impressiona quase tanto como os livros: a extraordinária modéstia. Ontem à tarde, no lançamento da reedição de “Cortes”, no Chiado, percebia-se a sua inquietação com a maçada das pessoas que ali se haviam deslocado e nem lhe faltou pedir desculpa por, tendo em conta as regras da FNAC, não poder oferecer livros a toda a gente. A apresentação, uma espécie de entrevista ao vivo feita pelo Pedro Mexia, foi uma pequena peça para a historiografia da nossa literatura do pós-25 de Abril. “Cortes” é brilhante, como toda a dita “Tetralogia Lusitana”. E, no entanto, nem pudemos falar dele convenientemente, ao cumprimentarmo-nos: aquilo de que Almeida Faria queria mesmo saber, como sempre, era dos Açores. É um homem elegante e fraterno, humilde e brilhante. Sinto-me honrado por poder trocar um abraço com alguém da sua dimensão. Mas eu conheço outros homens grandes, e nem por isso suspendo o trabalho para acorrer aos lançamentos das suas reedições. Almeida Faria ama os Açores – e a isso, sim, eu não poderia nunca ficar indiferente.



 


***


 


Paragem no Chiado, uns minutos antes do lançamento, para o cumprimento de um ritual: barba e cabelo na Barbearia Santos, a mais antiga da Europa. E, incrivelmente, volta a acontecer: chego à noite a casa e tenho à minha espera um email de um homem que se sentou ao meu lado, que me conhece dos jornais e dos livros (é um criativo e um profissional de televisão, explicou-me, e está atento a esse tipo de coisas) e que, tendo tido pejo em meter conversa, não quis em todo o caso deixar de registar em letra de forma o encontro. É uma vaidade que poucas vezes tenho a honra de exercer, mas que em todo se me proporciona com regularidade naquele estabelecimento em particular. E não deixa de agradar-me a ideia de que, se o meu trabalho me tornou reconhecido em algum lugar, foi na Barbearia Santos. Foi sempre para homens capazes de frequentar uma velha barbearia de bairro que eu escrevi.

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Published on October 14, 2013 04:43

October 10, 2013

Lisboa, 10 de Outubro de 2013


O Louis não queria ver o “Turbo”: queria ver um filme “daqueles que metem medo”. Teve de contentar-se com o “Turbo”, à falta de alternativas em cartaz para o tempo que tínhamos disponível, e fez a sua carinha adorável: “Não faz mal. Eu também queria ver o ‘Turbo’.” Tem sete anos, uma voz fininha e o hábito de começar as frases por “alors”, cioso desse código que lhe permite falar francês comigo como com poucos adultos portugueses. Depois repetiu a história: “Sabes, o Sporting ganhou ao Benfica!” Eu, sem me lembrar bem da última vez que tal milagre aconteceu: “O Sporting é o melhor do mundo.” E ele, agora sem “alors”: “É o melhor de Portugal. Do mundo é o Real Madrid.” Desde o princípio que me preocupo em resistir à mais deprimente tentação em que tantos dos meus contemporâneos caem: a substituição dos filhos que não se têm pelos sobrinhos e pelos afilhados por que se exacerbam afectos. Mas este gaiato cresce dentro de mim sempre que nos encontramos. E desde segunda-feira, dia em que fomos ao cinema, que aquela vozinha anda comigo: “Alors…”

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Published on October 10, 2013 04:01

October 9, 2013

Lisboa, 9 de Outubro de 2013


Anda a civilização angustiadíssima porque uma jovem actriz americana, Miley Cirus de sua graça, acabou o percurso como protagonista da personagem “Hannah Montana”, cantora pop e ícone da juventude, e transformou-se num palhaço sexual, fazendo figuras seminua em galas de entrega de prémios da cultura popular e completamente nua em fotos que faz distribuir através das ditas redes sociais. “Se calhar há demasiado sexo”, teme-se agora. Até Annie Lennox, que nos tempos do onanismo a minha geração gostava tanto de ver desnuda (descobríamos então as virtudes da estética andrógina, e era tentador), já veio dizer que a pequena Miley devia ter mais recato: afinal, o seu público é muito jovem.



Só posso rir-me. Onde é que esta gente andou nos últimos trinta anos, afinal? É claro que há demasiado sexo. Mas é claro que há demasiado sexo, com os diabos! Adolescentes de todo o mundo filmam-se a fazer sexo só para porem o vídeo na Internet. Casais da nossa idade, educados e sólidos, andam doidos por desencaminhar casais amigos para a prática do chamado swing. Actrizes de todas as idades dão entrevistas às revistas convencionais o mais despidas possível, e em tudo o que dizem se insinua a mesma coisa: “Eu fornico muito. Eu fornico imenso e sou uma fornicadora incrível!” É evidente que, quando esgotasse o modelo “Hannah Montana”, Miley Cirus não tinha outra solução senão virar um boneco sexual. Nós até já tínhamos um exemplo português anterior: Luciana Abreu.


Fomos nós quem transformou o espaço público nisto. Foi Annie Lennox. Falar de sexo é que é fixe – a isto o resumimos um dia. O próximo passo é óbvio: toda a gente a fornicar com toda a gente. E o seguinte também: ninguém a fornicar com ninguém.

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Published on October 09, 2013 03:32

October 7, 2013

Lisboa, 6 de Outubro de 2013


O problema é este: nenhum de nós sabe mesmo se estamos no bom caminho. Ninguém consegue dizer, com absoluta certeza, se o dito Plano de Reajustamento está ou não a correr bem. Nem os economistas, nem os investigadores, nem os historiadores, e certamente não também os comentadores da televisão, da rádio e dos jornais. Não há discurso sem adversativas, não há debate sem cedências. Só as paixões desempatam verdadeiramente. Em suma, vamo-nos todos insultando como podemos, consoante as conveniências da conversa e os ódios acumulados. Sabemos que, na sua generalidade, a classe política é uma merda (matéria em que, na verdade, temos tanta responsabilidade como ela), mas não mais do que isso. E, entretanto, desfazem-se amizades, zangam-se famílias, soma-se solidão. Estamos a ser estúpidos. Nós queremos a mesma coisa: a felicidade geral. Limitamo-nos discordar quanto aos métodos. Não bastará termos de pagar isto?



 


***


 


Ainda não me decidi sobre “Blue Jasmine”. Tão depressa me parece o melhor como o pior Woody Allen dos últimos anos. Cate Blanchett – para quem, claro, o habitual pensamento único já pede Óscares, estrelas no Passeio da Fama e Nóbeis da Medicina – não tem perfil para a mulher neurótica, o que pode condicionar tudo o resto (pudera). Mas, sobretudo, falta ali uma camada de qualquer coisa, e o pior é que temo que seja humanidade. Inquietou-me a caricatura, tanto quanto a crueldade do castigo final. Conheço este Woody Allen, mas da comédia. Que “Blue Jasmine” pise tão claramente os seus territórios e depois redunde numa tragédia pareceu-me, à primeira vista, irresponsável e ignóbil. Tenho de revê-lo rapidamente.

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Published on October 07, 2013 03:44

Serra de Loulé, 5 de Outubro de 2013


Saio do quarto restaurante visitado ao longo da semana para a rubrica da “Notícias Magazine”, este nos Olhos d’Água, e decido voltar por territórios antigos: o trajecto entre Albufeira e Vilamoura. Foi o meu segundo Algarve, o primeiro após um certo fim-de-semana em Lagos que mudaria a minha vida para mais de uma dúzia de anos. Mas essa é matéria para outro texto. Aqui foi o trabalho que me trouxe: vários verões consecutivos a perseguir futebolistas em férias, como jornalista desportivo, primeiro ao serviço da “Gazeta dos Desportos” e depois ao serviço do “Record”.



Na altura havia descampados, hoje é tudo construção. De resto, continua o essencial mais ou menos como eu me lembrava dele: os prédios tão abjectos e decrépitos como dantes, um número impossível de assimilar de placas sinaléticas, anunciando menos direcções geográficas do que propostas comerciais, e fumos cinzentos revestindo a maior parte delas, numa denúncia impotente de anos e anos de sublimação motorizada.


Não tive propriamente saudades, mas nem por isso deixei de comover-me. Houve um tempo em que eu fui o jovem jornalista de mariconera a tiracolo e bloco de notas na mão, sempre pronto a erguer a esferográfica e a assinalar um contra-senso. Recusava acamaradar com jogadores e famosos em geral, menos interessado do que hoje no papel de actor secundário, e aviava quatro ou cinco páginas de jornal por dia. Todo eu era trabalho, no que seria talvez a minha única virtude.


Ao fim de dezasseis horas de volante, gravações e dactilografia, mergulhava enfim na noite, perseguindo mais futebolistas e, nos intervalos, dando caça às inglesas a que era suposto um rapaz de vinte anos dar caça. Falhava a maior parte das vezes e voltava para o hotel num misto de frustração e de alívio. Dois anos depois caí de cama, com um síndroma vertiginoso qualquer – e ainda hoje não sei se devo responsabilizar por isso o excesso de trabalho, o fracasso romântico ou a atmosfera de feira franca em geral (e que, aliás, se prolongou).


Em todo o caso, gosto de rir-me disso: dos papéis que representei ao longo da vida. Eu fui esse jornalista copiado dos filmes como fui o jovem fanfarrão para o qual, estupidamente, o céu parecia o único limite. Fui o profissional responsável e disciplinador como fui a mula de redacção, diletante e preguiçosa. Fui o viajante incansável e fui o chefinho medíocre que procurava poupar dinheiro ao patrão reduzindo nas viagens dos jornalistas, fui o editor que procurava poupar dinheiro ao patrão sem sacrifício da qualidade do jornal e fui novamente a mula de redacção, agora mais velha e perigosa, dizendo palavrões, desconfiando do futuro do jornalismo e persuadindo os estagiários à desesperança.


Sim: quase todos os papéis – não há quase nenhum papel que eu não me lembre de representar, ao longo dos últimos vinte anos.


Em vinte anos, vesti-me como um adolescente e usei uma pastinha com blazer, fui o gordo com calças de ganga de mau corte, cabelo cortado à máquina e camisas aos quadrados abotoadas até quase cá acima e depois o burguês-boémio de caqui e botas Timberland, debonair e doméstico em igual monta. Fui o namorado diligente e fui o marido infiel, fui um bardamerda e fui um coração de manteiga. Usei um brinco na orelha, usei gel na cabeça e usei as duas coisas ao mesmo tempo, num momento de particular desespero. Fui um jornalista e fui um escritor, detestei o universo dos escritores e depois quis avidamente pertencer-lhe. Fui um príncipe e fui um grunho. Fui rural e fui urbano, fui suburbano e fui do mundo, fui urbano e fui de novo rural.



E fui outras coisas ainda. E hoje não sei bem o que seja, para dizer a verdade. Nem isso me importa muito. Sei isto: todos esses homens que fui vêm comigo. Visitam-me e eu falo com eles – todos os dias, com um de cada vez, com todos ao mesmo tempo. Julgo que nunca me faltará sobre o que escrever, e isso chega-me para o resto da vida.

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Published on October 07, 2013 03:40

Serra de Loulé, 4 de Outubro de 2013


Percebi hoje que até os livros de banda desenhada da Disney já têm os títulos em inglês, como acontece com “Comix” (de “comics”). Fiquei cheio de vontade de virar fundamentalista. Caramba: chega de títulos em inglês: nos livros, nos filmes e até nas séries de televisão. Já não bastavam os “Smurfs”? Eu quero que o “Comix” volte a chamar-se “Almanaque Disney”, como quero que os “Smurfs” se chamem “Estrunfes” outra vez. Quero que a “Lie do Me” se passe a chamar “Mente-me” e quero até que o “Lost In Translation” se possa chamar “O Amor É Um Lugar Estranho” sem que eu próprio me choque com isso. Quero deixar de ser parolo e quero andar em cima disto quando formos parolos. Primeira medida: acabaram-se os anglicismos, a não ser como recurso de ironia ou em situações de absoluta necessidade. Serei um feroz polícia de mim mesmo – e digo-o com convicção.



 


***


 


Quer dizer: em França, a pátria da cultura, filmes anglófonos como “The Phone Booth” ou “Silver Linings Playboook” já levam como títulos “The Phone Game” ou “Happiness Therapy”. Ou seja, mantêm-se em inglês, mas “traduzem-se” para versões mais acessíveis, em atenção às tradicionais dificuldades gaulesas com a língua de Shakespeare. Não se pode ser mais parolo do que isto. E eu hei-de fazer a minha parte para que ao menos não cheguemos aqui.

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Published on October 07, 2013 03:36

Serra de Loulé, 3 de Outubro de 2013


Talvez um dia eu olhe para mim próprio como o estúpido que rejeitou uma residência de quatro semanas na Ledig House, hoje talvez a mais cobiçada residência literária (e artística) do mundo. Mas nesse caso terei falhado em tudo o mais, pelo que haverá com certeza outras coisas a lamentar. Para já, o que temos é isto: convidaram-me, pagavam-me tudo, e mesmo assim rejeitei. Já tenho o meu refúgio, que é a Terra Chã – e, ademais, todas as razões por que me apeteceria agora instalar-me durante um mês em Nova Iorque são marginais ao objecto literário: a vaidade de repetir os gestos de tantos escritores que ali estiveram em circunstâncias idênticas, o sonho “impossível” da minha geração que é ser editado nos Estados Unidos, as saudades quase diárias da América, novamente a vaidade. A soma não chegou para motivar-me a organizar-me em tempo recorde – e disse que não. Não deixo de sentir um certo autocomprazimento nisso. Eu pude.


 


***


 


O São Gabriel proporcionou-me a melhor refeição do ano: uma degustação de oito ou nove pratos tão inventivos  como saborosos, aliás de acordo com o que os melhores me diziam da culinária de Leonel Pereira. Explicou-me ele que a sua primeira preocupação é procurar que eles não gritem, mas antes falem brandamente. E depois: “Às vezes sinto que a minha cozinha quer levantar voo e corro a agarrá-la. É assim que eu sou.” Foi a primeira vez que uma tal conversa me pareceu mais do que conversa e a única, até hoje, em que senti verdadeiramente que um chef podia ser um artista. A arte nunca esteve no rasgo como está na contenção.



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Published on October 07, 2013 03:32

Serra de Loulé, 2 de Outubro de 2013

Grande entrevista de Richard Zimler a Luís Caetano, escutada ao longo da viagem para o Algarve, via Antena 2. A mais fascinante tensão humana é a que opõe a vontade e o desejo, o que – suponho – será tão válido para os grandes abismos humanos como para as pequenas decisões do dia a dia. Nota mental para a que tenho de tomar até amanhã de manhã, pois: a verdadeira coragem está em fazer triunfar a vontade sem ignorar o desejo. É demasiado perigoso ignorar o desejo.




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Published on October 07, 2013 03:30

Lisboa, 1 de Outubro de 2013


O mais desconcertante, ao ler a Chimamanda, é conferir as semelhanças entre as suas perplexidades ao chegar da Nigéria a Brooklyn, algures nos anos 90, e as minhas próprias perplexidades ao chegar da Terra Chã a Oeiras, precisamente na mesma década. Afinal, as pessoas vestiam-se com roupas bem mais leves, sem a preocupação de que o frio da cidade as apanhasse desprevenidas. Comiam-se por rotina produtos enlatados e uma sandes podia perfeitamente ser considerada uma refeição. As pessoas não pareciam tão felizes ou bem-sucedidas como na televisão, e a atmosfera geral não era, de todo, tão inteligente ou educada como esperado. Os edifícios espelhados rasgavam os céus, mas tinham sujidade nos vidros. Uma mulher com mais de cinquenta quilos era considerada rechonchuda. O rock pesado podia ser harmonioso e, enquanto o ouviam, as raparigas bebiam cerveja de uma lata. Os cães eram mantidos em casa, como se fossem pessoas. Toda a gente tinha opinião sobre tudo o que se lhe perguntasse, porque ficava mal não ter opinião sobre alguma coisa. Podia-se passar uma aula inteira da universidade a falar sobre um filme comercial. E os pobres não tinham culpas. Como diz Chimamanda, falando de Kimberly: “A pobreza era uma coisa reluzente; ela não conseguia conceber que as pessoas pobres fossem maldosas ou cruéis, porque a sua pobreza as tinha canonizado.” Creio que os vinte anos que aqui vivi, como os quatro que Chimamanda passou na América, foram uma luta entre a aprendizagem cavalgante e a conservação da perplexidade contra tudo o que é estúpido. Nem sempre o consegui, mas ela também não. Por outro lado, Chimamanda conseguiu recuperar rapidamente o seu sotaque africano, enquanto eu às vezes ainda luto por lembrar-me do meu sotaque açoriano. Mas eu fui emigrante cinco vezes mais tempo. Ter sido apenas igualmente parvo, penso, já não é nada mau.

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Published on October 07, 2013 03:28

Lisboa, 30 de Setembro de 2013


Refeições em novos restaurantes para a rubrica da “Notícias Magazine”, encontros com editores e colegas por causa de todo o tipo de assunto pendente, jantares com os amigos adiados da viagem anterior, adiamento para a próxima viagem dos amigos a visitar imperativamente nesta, um desvio culposo ou outro ao cinema, ao teatro ou a um concerto, surtidas apressadas a comprar este ou aquele produto urgente e mais difícil de encontrar nas ilhas, uma investida ao Algarve para mais restaurantes e encontros úteis, uma ginástica dos diabos a ver se ainda consigo dar um salto à Aroeira para fazer uns duplos-bogeys com a velha malta, os mesmos textos de sempre a entregar todos os dias aos jornais, nenhum tempo para este diário em que sonhava deixar registadas todas as emoções de cada regresso e – como sempre – o sentimento de culpa a acumular-se a cada instante por tudo o que fica por fazer e (pior) por todos os que ficam por ver. É a história destas minhas vindas a Lisboa. Acordo na segunda-feira de manhã e a minha primeira certeza é essa: alguma coisa tem de mudar. O pior é que não sei ou quê, muito menos como.


 


***


 


Não obstante, é bom regressar. Fecho dia mais cedo do que o aconselhável e saio para dar uma volta. No Chiado, sob as galerias de acesso ao Fábulas, há um filipino que canta, aproveitando a acústica – e o som da sua guitarra, misturado com a delicadeza da sua voz, soa-me familiar. Insinuam-se cheiros a ervas aromáticas vendidas a retalho, há uma nova loja chamada Tiroliro-ló, uma rapariga de vinte anos retribui com um sorriso o meu olhar distraído, obrigando-me a conferir se tenho a braguilha aberta, ou talvez sangue escorrendo na cara. Um polícia tira fotografias a um turista. Uma senhora trava a fundo numa passadeira, para me deixar atravessar. Cheira agora intensamente a castanhas, anunciando a estação em que Lisboa é mais Lisboa. Duas dezenas de estudantes descem a rua cantando e humilhando-se mutuamente, como se se esforçassem por lembrar-nos de que não devemos nunca deixar de sentir vergonha pela espécie. Há barulhos em volta: o som metálico do eléctrico, um carro de lixo revolvendo garrafas de vidro, uma sirene. Estou de volta. Nenhum outro dia, a partir daqui, será tão bom como este.



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Published on October 07, 2013 03:21