Joel Neto's Blog, page 54
October 7, 2013
Lisboa, 29 de Setembro de 2013
Estão feitas as eleições, com os resultados esperados (ou pior). O mais triste disto é que a qualidade de uma classe política representa a qualidade do respectivo povo: do seu grau de compromisso em relação à coisa pública, da organização social que fundou, do grau de meritocracia que esta proporciona. Dito isto, é só fazer a lista: num dos momentos mais desafiantes da nossa história, produzimos como alternativas a chefes do Governo Pedro Passos Coelho e António José Seguro; o maior partido português não encontra melhor para candidatar às três principais câmaras nacionais do que Fernando Seara, o ex-presidente da câmara ao lado e Pedro Pinto (Pedro Pinto, meu Deus); o concelho com mais licenciados do país tornou a eleger um corrupto condenado, ainda por cima agora candidato a partir da cadeia (onde os apoiantes foram celebrar a vitória); e, no meio dos sucessivos votos de protesto (contra Passos Coelho, contra Tozé Seguro, contra os partidos), acabámos por reforçar dramaticamente o pecúlio autárquico do partido que há dois meses nos custou três mil milhões de euros (três mil milhões de euros tirados às famílias, aos pensionistas, aos próprios desempregados), por causa de uma irrevogabilidade que no dia a seguir se revogou. Lamento, mas isto não é o retrato deles: é o retrato de nós. O resto é a vitória do PS. Uma vitória de Pirro, por sinal.
October 2, 2013
Lisboa, 2 de Outubro de 2013
Refeições em novos restaurantes para a rubrica da “Notícias Magazine”, encontros com editores e colegas por causa de todo o tipo de assunto pendente, jantares com os amigos adiados da viagem anterior, adiamento para a próxima viagem dos amigos amigos a visitar imperativamente nesta, um desvio culposo ou outro ao cinema, ao teatro ou a um concerto, surtidas apressadas a comprar este ou aquele produto urgente e mais difícil de encontrar nas ilhas, uma investida ao Algarve para mais restaurantes e encontros úteis, uma ginástica dos diabos a ver se ainda consigo dar um salto à Aroeira para fazer uns duplos-bogeys com a velha malta, os mesmos textos de sempre a entregar todos os dias aos jornais, nenhum tempo para este diário em que sonhava deixar registadas todas as emoções de cada regresso e – como sempre – o sentimento de culpa a acumular-se a cada instante por tudo o que fica por fazer e (pior) todos os que ficam por ver. É a história destas minhas vindas a Lisboa. Alguma coisa tem de mudar, e o pior é que não sei ou quê ou como.
September 30, 2013
Lisboa, 1 de Outubro de 2013
Estão feitas as eleições, com os resultados esperados ou pior. O mais triste disto é que a qualidade de uma classe política representa a qualidade do respectivo povo: do seu grau de compromisso em relação à coisa pública, da organização social que fundou e do grau de meritocracia que esta proporciona. Dito isto, é só fazer a lista: num dos momentos mais desafiantes da nossa história, produzimos como alternativas a chefes do Governo Pedro Passos Coelho e António José Seguro; o maior partido português não encontra melhor para candidatar às três principais câmaras nacionais do que Fernando Seara, o ex-presidente da câmara ao lado e Pedro Pinto (Pedro Pinto, meu Deus); o concelho com mais licenciados do país tornou a eleger um criminoso condenado, ainda por cima agora candidato a partir da cadeia; e, no meio dos sucessivos votos de protesto (contra Passos Coelho, contra Tozé Seguro, contra os partidos), acabámos por reforçar dramaticamente o pecúlio autárquico do partido que há dois meses nos custou três mil milhões de euros (três mil milhões de euros tirados às famílias, aos pensionistas, aos próprios desempregados), por causa de uma irrevogabilidade que no dia a seguir se revogou. Lamento, mas isto não é o retrato deles: é o retrato de nós.
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Duas semanas pela capital, com um salto grande ao Algarve de permeio. Um dia, quando conseguir vir a esta cidade com uma agenda humana, será muito mais divertido voltar. Mas não deixa de ser bom reencontrá-la.
September 27, 2013
Terra Chã, 28 de Setembro de 2013
Os meus amigos de Lisboa andam zangados comigo, e eu percebo-os. Quando alguém identifica um defeito que seja na minha cidade, fico uma fera. Da minha cidade, tenham lá santa paciência, falo eu mal. E da minha ilha. E da minha freguesia. E do meu arquipélago.
Nisso, como aliás em muitas outras coisas, não me distingo em nada dos lisboetas. E também eu, para não andar aos tiros, haveria provavelmente de sentir a tentação de resumir-me agora, estando no seu lugar, à psicologia de pacotilha, do tipo: "Falas mal, mas é porque gostas disto. Às tantas até já estás mas é cheio de saudades."
A minha vantagem é que eu sei que tenho saudades. E que gosto muito de Lisboa.
Pois claro que gosto de Lisboa. E pois claro tenho saudades de muitas coisas dela. Lisboa foi a minha cidade durante vinte anos e é a minha cidade grande de eleição. A simples ideia de voltar a viver lá, neste momento (ou tanto quanto as minhas previsões podem alcançar), verifica-se sufocante, mesmo angustiante. Mas, se algum dia tiver de reinstalar-me na urbe, espero que seja ali.
Isso só me dá legitimidade para estudar os seus defeitos. Para reflectir sobre eles.
Um dia, quando eu tiver mesmo muitas saudades de Lisboa – mas saudades a sério, como aquelas que durante tantos anos tive dos Açores –, então já só terei guardado as boas memórias e serei incapaz de escrever sobre ela. Para obviar a isso, vou portanto deixando registadas aqui algumas impressões, que poderão vir a ser-me úteis noutros textos (e noutros contextos) no futuro.
Se isso tem uma leitura psicológica? Sei lá: talvez. Mas com certeza não há-de ser a leitura freudiana básica. Para leituras freudianas básicas, então eu também podia dizer que o incómodo dos lisboetas com as minhas palavras só prova que não estou assim tão longe da verdade.
De resto, muitos dos que agora se zangam por eu usar um estudo apressado de uma revista em agonia para sublinhar determinados vícios de Lisboa são os mesmos que todos os dias acenam com estudos tão desprovidos de valor científico como esse para exaltar as glórias pátrias ou municipais.
Portanto, nada disto é estranho. Ou sequer indesejável.
Era talvez um pouco evitável se os leitores fossem, embora não versados em metonímias e sinédoques, ao menos capazes de perceber que a matéria de que verdadeiramente falo não é sequer Lisboa, muito menos os lisboetas: é aquilo que uma grande cidade faz às pessoas – aquilo que nós, quando reunidos ao monte, fazemos uns aos outros. Mas não se pode ter tudo.
Terra Chã, 27 de Setembro de 2013
Estão os lisboetas muito indignados porque a "Reader's Digest" fez um teste com carteiras perdidas numa série de capitais mundiais e Lisboa foi aquela em que menos carteiras vieram a ser devolvidas aos donos (ou melhor: entregues às autoridades para lhes serem devolvidas). Em cada uma de dezasseis grandes cidades foram "perdidas" propositadamente doze carteiras contendo um número de telemóvel, uma foto de família, cupões, cartões de visita e o equivalente a cinquenta dólares. Em Helsínquia, por exemplo, foram devolvidas onze das doze carteiras; em Lisboa, apenas uma (e por um casal de turistas holandeses). Um teste injusto e sem critério, dizem os lisboetas. O problema é este: lêem-se os resultados e eles não surpreendem. Eu gostava de ter ouvido um lisboeta dizer: "Surpreende-me muito, isto." Mas nem só um o disse: preferiram todos contestar as regras do jogo. Desonestidade lisboeta? Eu diria portuguesa. Desonestidade estrutural e ainda desonestidade conjuntural. Andamos mais furiosos do que nunca, e isso tolda muito à volta. E, porém, não é a desonestidade que me inquieta: é o egoísmo. A total falta de solidariedade. Porque é que nenhuma das outras onze carteiras foi devolvida sequer sem o dinheiro, para ao menos se pouparem ao seu proprietário as chatices (já não digo a mágoa, devido a eventual valor estimativo) que a perda de uma carteira gera? Porque é que nenhuma delas foi sequer enfiada numa caixa do correio ao acaso, sem o dinheiro? Porque os lisboeta – ou os residentes de Lisboa, ou aqueles a quem a cidade roubou o coração – estão assim. E isso já não é generalizável aos portugueses todos: os açorianos, por exemplo, não estão. Ainda não estão, pelo menos.
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E, pronto, confirma-se: vão estreando agora oito/nove filmes por semana e a maior parte são dramas e comédias. Depois de dez anos sob o signo Peter Jackson, esgotando-se sucessivamente os filões do fantástico, do maravilhoso, do estranho e do primeira-trampa-que-nos-venha-à-cabeça-desde-que-cavalgue-a-onda-da-infantilização-do-público-adulto-e-faça-rapidamente-cem-milhões, voltamos enfim aos géneros tradicionais. Aviso já que vou demorar a sentir-me ressarcido. O cinema industrial deve-me uma década de dramalhões, divórcios, advogados idealistas, meninos com cancro e ladrões de bicicletas. Mas, em todo, cá vai o meu comentário intelectual: té qu’infim, fônix!
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Leio que o Brasil exigiu “escrita portuguesa na vertente brasileira” num concurso para um Centro Cultural em Maputo. Às vezes acho que, se fizéssemos um esforço, ainda conseguíamos cancelar a abjecção dessa coisa a que chamam Acordo Ortográfico. Mas, em regra, acho que a luta está perdida.
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A Catarina fez cinco frascos de doce de tomate com maçã. É a sua terceira investida e a receita ficou definitivamente apurada. Nisto da vida do campo, cá em casa, sou um mero aprendiz. A professora é uma lisboetazinha do Castelo que, como os lisboetas, chamava gadanha ao alfange.
September 26, 2013
Terra Chã, 26 de Setembro de 2013
Pesquisas avulsas, uma delas sobre o hino da Maria da Fonte, e logo uma curiosa constatação: virou uma referência dos comunistas contemporâneos (que, aliás, também já tiveram uma editora com o nome da revolução), e aliás de toda a esquerda. Acho divertido. A Maria da Fonte foi uma revolução feita pelo povo contra o Estado e os impostos. Nada podia ser menos comunista do que isso (e aliás menos socialista em geral). O hino é, no fundo, libertário e liberal – um tributo à iniciativa privada e à sua capacidade de mobilização. Pois a esquerda, convencida de que o mundo começou com Marx – quando muito com Rousseau, que um dia disse "Haja luz!", e fez-se luz – já o avocou. E nós, tontos, deixámo-lo. E deixamos, todos os dias, por falta de pachorra. Ao menos os comunistas têm sempre pachorra. Só por isso já merecem o meu respeito.
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“Emitia um cheiro doce, de velho asseado, e era o rasto desse cheiro que, para seu infinito desespero, José Artur perdia com cada vez mais frequência.” É isto, talvez. José Guilherme.
***
Voltou o “Quem Quer Ser Milionário”, concurso de televisão que até um filme dos Óscares já deu. Teoricamente, é um concurso de cultura geral. Na prática, propõe meia dúzia de perguntas inúteis por cada meia hora de emissão. Tudo o que importa, na verdade, é a conversa com o convidado, incluindo as dúvidas e as certezas deste, o seu processo de raciocínio e o seu presumível sentido de humor. Convidados sem um mínimo de graça, com gravíssimas limitações culturais, totalmente desprovidos de interesses, inclinados para a piadola fácil – e, no entanto, multidões reunidas há quinze anos para vê-los explicar como raciocinaram, como chegaram “lá”. “Lá” à resposta que, note-se, tantas vezes foi a apresentadora a dar-lhes, tão apiedada deles como da própria sobrevivência do programa. Por mim, não consigo deixar de ver naquilo tudo um sinal dos tempos.
Terra Chã, 25 de Setembro de 2013
Pesquisas avulsas, uma delas sobre o hino da Maria da Fonte, e logo uma curiosa constatação: virou uma referência dos comunistas contemporâneos (que, aliás, também já tiveram uma editora com o nome da revolução), e aliás de toda a esquerda. Acho divertido. A Maria da Fonte foi uma revolução feita pelo povo contra o Estado e os impostos. Nada podia ser menos comunista do que isso (e aliás menos socialista em geral). O hino é, no fundo, libertário e liberal – um tributo à iniciativa privada e à sua capacidade de mobilização. Pois a esquerda, convencida de que o mundo começou com Marx – quando muito com Rousseau, que um dia disse "Haja luz!", e fez-se luz – já o avocou. E nós, tontos, deixámo-lo. E deixamos, todos os dias, por falta de pachorra. Ao menos os comunistas têm sempre pachorra. Só por isso já merecem o meu respeito.
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“Emitia um cheiro doce, de velho asseado, e era o rasto desse cheiro que, para seu infinito desespero, José Artur perdia com cada vez mais frequência.” É isto, talvez. José Guilherme.
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Voltou o “Quem Quer Ser Milionário”, concurso de televisão que até um filme dos Óscares já deu. Teoricamente, é um concurso de cultura geral. Na prática, propõe meia dúzia de perguntas inúteis por cada meia hora de emissão. Tudo o que importa, na verdade, é a conversa com o convidado, incluindo as dúvidas e as certezas deste, o seu processo de raciocínio e o seu presumível sentido de humor. Convidados sem um mínimo de graça, com gravíssimas limitações culturais, totalmente desprovidos de interesses, inclinados para a piadola fácil – e, no entanto, multidões reunidas há quinze anos para vê-los explicar como raciocinaram, como chegaram “lá”. “Lá” à resposta que, note-se, tantas vezes foi a apresentadora a dar-lhes, tão apiedada deles como da própria sobrevivência do programa. Por mim, não consigo deixar de ver naquilo tudo um sinal dos tempos.
September 25, 2013
Terra Chã, 25 de Setembro de 2013
As expressões típicas do falajar terceirense continuam a cercar-me diariamente. Mas vão acabar por perder-se, nesta uniformização globalizante a que nem a terra etnograficamente mais prezada dos Açores resiste – e portanto o melhor é registarmo-las. Eis algumas das que reuni nos últimos meses. É a segunda parte da lista iniciada em Abril:
“Eh, home’, ataca-me esses sapatos!”;
“Vai de roda, que eu abro-te a porta!”
“Iiih, tal batacu!”;
“Home, tu queres é valhacas”;
“Tem um nariz que mete medo!”;
“Credo, aqueles pequenos da Fátima andam sempre tanto cheios de esterco…”;
“Eh, pequeno, não queres ir brincar com a pombinha para a areia?”;
“Eh, pá, tu desapega!”;
“Ai, tal palhaça!”;
“Ele anda sempre meio três vezes nove vinte e sete…”
“Eh, rapaz, come para baixo!”
“Home, vai cagá!”;
“Tou mais tenteadinho…”;
“Ah, 'quele, eu finei-me a rir!”;
“Sexta-feira vai-te dar certo?”;
“Pois agora...”;
“És deficiente, ó que é?”;
“Muito obrigado! Tu és um disparate…”;
“Eh, pequeno, não estejas a cegar teu irmão!”;
“Levas um banaço que nunca mais te ajuntas”;
“Coitado pobre!”;
“Entra!”;
“Andam-me a tirar o juízo para ir a São Jorge…”;
“Tu atina-te!”;
“Estás sempre a fazer pouco de mim!”;
“O gajo está despachado…”;
“Nisto...”;
“À conta de Nosso Senhor”;
“Levas uma tinta…”;
“Vou-me encostar uma pisca, que eu trabalho esta noite”;
“Essa sertã tá muito quente!”;
“Adeus e pronto”;
“Aquilo fez um piso na biscoita que nunca mais teve tafulho”;
“Ó vocês, tejem quietas!”;
“Olha o laparoso…”;
“Sem mais ter nem tirar?”;
“Dá-me meia bola bem servida”;
“Levas duas bolachas...”;
“Ih, o gajo deu uma pastilha com aquele carro…”;
“Oh, Joel, já estás a derramar!”;
“Apanhei uma turbina…”;
“Ai, dentadas!”;
“Home, ‘tás desinsofrido?”
“Ó mãe, meu primo fez-me uma bicha!”;
“E uma poia de merda numa folha, não queres?”;
“Bilicas!”;
“Casar contigo? ‘Tava penando…”;
“Aquilo foi uma barraca tesa…”;
“Não é preciso encheres esse prato a fazer cagulo, mulher!”;
“Eh, rapaz, mexe contigo!”;
“Deste um fofo, foi?”;
“Eh, cão, levas um varejo…”;
“Ah, filha da pêra!”;
“O Manel atirou um mergulho do cais…”;
“O mê pequene xinxim tá com soltura”;
“Não sejas toleirão!”;
“Home, pega na pomba!”;
“Ele vinha numa bala tesa”;
“Ai, tal nó!
“Não estejas p’raí a fazer ranço”;
“Eh, pequena, levas uma palmada por esse cu fora!”;
“Quero cá saber…”;
“Eh, mulher, salta p’á carrinha!”;
“Toda a vida se viu...”;
“Credo, eu fiquei para Deus Nosso Senhor me levar…”
“Ele hoje ‘tá da banda…”;
“Ah, mon…”
“Ai, tal cambeta”;
“Era cada tassalho de queijo...”;
“Vergonhas da minha cara!”;
“Eu reconheço que sou um bocado custódio…”;
“Senhores, mais boa tarde”;
“Cismemos!”;
“E, pronto, ‘tá desta maneira assim…”;
“Está estragado? Home’, o bicho maior mata o má’ pequeno”;
“Obrigado à senhora”;
“Mamá!”;
“Credo, nunca tal…”
“Quem é esse João? Um cambado?”;
“Eu hoje fazia-te desgraças”;
“Ficou tudo consolando a ver”;
“Eh, home’, ‘tás a modos? Isso é p’ra hoje?”;
“Ai, Nosse Senhiô!”;
“O gajo faz asneira velha..”;
“Trouxeste bagalhoço?”;
“Home’, trinca na pêra!”;
“Ah, ‘quela, eu até fiquei embaçada..”;
“Não estejas descontra vontade…”;
“Pois já se sabe...”;
“Ah, pequena arrematada!”;
“Isso não foi coisa quê…”;
“Ih, escarolei a cadeira toda!;
“Ela é uma pessoa assim um bocado tricofáite”;
“Fanaste-me cinco euros, ou foi impressão minha?”;
“Hás-de ir roer num corno!”;
“Fomos jogar pingue-pongue e eu dei-lhe umas calcinhas!”;
“Não tinhas uma pana para trazer isso, mulher?”;
“O estupor pegou direito e não pagou!”
***
Estranha coisa: eu efectivamente tinha saudades do Outono. Tenho muito mais tempo para escrever nas estações frias, e este vento que sopra lá fora, misturado com chuva e com os primeiros golpes de frio, enche-me de expectativas quanto à produção dos próximos meses. Continuo a ir diariamente ao mar, embora agora mais à Silveira do que ao Negrito (uma vez que é mais abrigada). Mas, por outro lado, acabámos de instalar uma salamandra na sala, para atacar as longas noites de Inverno. De certo modo, pois, andamos ansiosos por ele. E isso podia ser desconcertante, uma vez que o vilipendiámos durante anos. Mas não é: é só um sinal de que encontrámos a nossa casa. Mais um sinal, isto é.
***
Entrevista no DN de anteontem: “Afinal, o sexo do homem é muito mais honesto, visível e facilmente lavável, enquanto o das mulheres é mais sinistro.» De facto, Valter Hugo Mãe deu ao país do Facebook alguma coisa sobre o que falar. Adoro quando são os escritores a fazê-lo.
***
“Gostar e não gostar é, basicamente, o grau zero, tanto do pensamento como do usufruto.” Escrevi-o ontem, igualmente no DN, e apeteceu-mo deixá-lo aqui também.”
September 23, 2013
Terra Chã, 23 de Setembro de 2013
Morreu António Ramos Rosa, um dos grandes. Recordo-o em "Cada Árvore É Um Ser Para Ser Em Nós" (2002). E na epígrafe inicial do meu pobre "Os Sítios Sem Resposta”, já agora:
"Árvores
O que tentam dizer as árvores
No seu silêncio lento e nos seus vagos rumores,
o sentido que têm no lugar onde estão,
a reverência, a ressonância, a transparência,
e os acentos claros e sombrios de uma frase aérea.
E as sombras e as folhas são a inocência de uma ideia
que entre a água e o espaço se tornou uma leve
integridade.
Sob o mágico sopro da luz são barcos transparentes.
Não sei se é o ar se é o sangue que brota dos seus
ramos.
Ouço a espuma finíssima das suas gargantas verdes.
Não estou, nunca estarei longe desta água pura
e destas lâmpadas antigas de obscuras ilhas.
Que pura serenidade da memória, que horizontes
em torno do poço silencioso! É um canto num sono
e o vento e a luz são o hálito de uma criança
que sobre um ramo de árvore abraça o mundo."
***
O mais implacável poder que encontrei até hoje? A faculdade de reter o amor. O discernimento de retê-lo primeiro na medida certa, ao longo do período certo – e depois a capacidade de retê-lo ao acaso, de modo absolutamente arbitrário, ao sabor do vento e dos humores. Reter o amor. Nunca vi poder como esse, tão violento e paralisante. Ao pé dos que são capazes de reter amor, os detentores da bomba atómica parecem meros cobardes.
September 20, 2013
Terra Chã, 20 de Setembro de 2013
Dizer que muitas pessoas usam o Facebook para viver a vida que não têm não passa de psicologia de pacotilha. É provável que isso aconteça, sim, mas nesse caso o Facebook deixa de ser um advento da era global para passar a ser um milagre pelo qual devemos agradecer a mr. Zuckerberg. O verdadeiro lado negro do Facebook é outro: é darmos de repente por nós numa posição em que aquilo que não foi validado no Facebook – aquilo que não foi postado, aquilo que não foi partilhado –, simplesmente não existe. Pior: é nem sequer nos darmos por isso. Eis, parece-me, a verdadeira dimensão literária do Facebook. Ou, dito de outro modo: sim, até o Facebook tem uma dimensão literária (como tudo, está bem, mas quer dizer: até o Facebook). Nunca encontrei maneira, porém, de enfiá-lo num texto. Até hoje, bastou-me sempre meter ali aquela palavra, “Facebook”, para sentir que se escangalhava a literatura toda. Talvez fosse do sublinhado vermelho com que o meu FliP destaca as palavras que não conhece, talvez apenas daquele tão incómodo k e inestético. Talvez fosse um problema gráfico “apenas”, no fundo – a verdade é que eu não encontrava o tom, o momento, o desenho onde colocar aquela palavra sem que o texto todo se desmoronasse como pouco mais do que um recado à empregada. Chimamanda Ngozi Adichie, cujo colossal “Americanah” (colossal no sentido da dimensão, mais de setecentas páginas dele) não resisti a ir lendo pela noite dentro, resolve bem o problema: limita-se a escrever “Facebook”. Melhor: Facebook – e, apesar disso, a literatura continuava. Isto foi à sexta página, e eu fiquei de imediato agarrado. Faltam-me agora um pouco menos de setecentas páginas, parece-me – e mal posso esperar pela hora de almoço.


