Joel Neto's Blog, page 52

October 25, 2013

Terra Chã, 25 de Outubro de 2013


Às vezes lembro-me daqueles que me detestaram. Consigo enumerá-los um a um, pelos nomes e pelas características atléticas, pelas medidas do crânio e pelas mais subtis expressões faciais: colegas jornalistas, designers que paginavam os meus textos, namorados das minhas amigas, tipos com quem andei na faculdade, colegas do futebol e do golfe, correspondentes de Facebook, vizinhos de infância com tendência castigadora. A alguns conquistei-os, outros simplesmente deixei que continuassem a detestar-me, visto que os detestava também. Não falo de ódio. Daqueles que me odiaram eu envergonho-me de facto: em regra, dei-lhes motivos para isso. Se pudesse, retirava tudo, assim me lembrasse de todos os seus nomes. Os que me detestaram apenas porque eu fui implicante e moralista, ciumento e mesquinho, ligeiro e chocante, obsessivo e irresponsável (há imensas razões para detestar-me, e de muitas delas eu também sei os nomes) – esses, que me detestaram apenas porque fui como infelizmente sou, são outra coisa. Eu tê-los guardado, e continuar a guardá-los sempre que aparece um novo, é a prova viva do quanto sempre precisei de ser amado. Preferia amplamente ter guardado os nomes dos outros. Provaria que, pelo contrário, eu sempre precisara de ser um homem decente.



 


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O melhor blog da Terceira é o do Júlio Ávila, Eu Existo (euestouvivo.blogspot.pt) – e limito-me a constatar um facto. Com muito respeito por todos os outros, incluindo os meus.

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Published on October 25, 2013 04:40

October 24, 2013

Terra Chã, 24 de Outubro de 2013


O Outono é a estação perfeita, e perfeita nos Açores como em mais lugar nenhum. Ainda ontem: caminhada à chuva, seguida de meia hora a nadar na Silveira – e, enfim, aquela paz. A Catarina lá dentro, traduzindo. O Melville aninhado aos meus pés, ressonando, depois de debater-se com um osso dos grandes. A Radio Swiss Jazz tocando baixinho em fundo. O vento fustigando as janelas – e depois continuando a fustigá-las noite dentro, inclemente, entrando pelas frinchas e misturando-se com o cheiro a madeira queimada que saía da salamandra e o domesticava autoritário. Trabalhei mais e melhor do que em qualquer dia de Verão. Não estava a caminho de lado nenhum.



 


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Escreve Jean Meckert: “O que distingue um ser primário é a sua necessidade de ser útil. O homem que trabalha tem sempre qualquer coisa de moralista e de reivindicador.” Culpado. É nestes dias que percebo o quão longe estou do nirvana intelectual.

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Published on October 24, 2013 03:55

October 23, 2013

Terra Chã, 23 de Outubro de 2013


Mas quem ditou, afinal, esta nova regra segundo a qual a literatura "já não é" a arte de contar histórias? E quem lhe acrescentou a regra de que, se ainda o for, então o único caminho é algum tipo de realismo mágico, “urbano” ou “do século XXI” ou simplesmente “europeu”? Quero de volta os grandes narradores, e quero-os portugueses também. Preciso deles para meu próprio alimento.



 


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Todos os anos deploro o modo como o Halloween nos entra pela casa adentro, apesar da sua completa falta de tradição em Portugal. Pois este ano será muito pior. Dada a supressão do feriado de 1 de Novembro, restam apenas dois modos de celebrar a data no dia em causa: durante a noite, terreno mais do que fértil para a imposição da festividade anglo-saxónica; e no contexto das escolas, onde essa iconografia grassa com maior facilidade ainda, desde logo porque aparece na televisão e se torna um meio privilegiado para captar a sempre dispersa atenção dos miúdos. Nos Açores fazem-se agora planos para a celebração do Pão-Por-Deus no dia 3, domingo. Mas os Açores, e a Terceira em particular, são um dos poucos lugares onde as tradições (e esta tradição em concreto) efectivamente se esforçam por resistir. Ademais, trata-se de iniciativas tímidas, convocadas de modo disperso e através da internet, sem o apoio logístico das autoridades e com muito pouco interesse da parte da comunicação social. As televisões bem podiam dar uma ajuda. Mas estão demasiado ocupadas a anunciar fatos e chapéus de bruxa, pelo que precisam de exibir vassouras e abóboras iluminadas.

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Published on October 23, 2013 04:31

October 21, 2013

Terra Chã, 21 de Outubro de 2013


O que é certo é que, passado bem mais de um ano sobre o dia em que cheguei, continuo a sentir desejo pelos elementos que aqui se exacerbam. Pelo vento que nos fustiga enquanto passeamos pelo pontão de Angra, quase nem nos deixando andar; pela chuva que se abate sobre nós ao longo da caminhada matinal, levando os automobilistas a questionarem-se sobre quem serão aqueles dois malucos à procura de uma pneumonia; pelo sol que se abate brandamente sobre o cerrado em que estendemos as mantas aos sábados, para os piqueniques em que insistimos independentemente das circunstâncias. Continuo a sentir desejo pelos elementos que aqui se exacerbam e continuo a descobrir as suas obras, tanto quanto aquelas com que os homens tentam resistir-lhe. Ainda não há fim-de-semana de que volte sem dezenas de fotografias para descarregar e arquivar. E, sempre que, à segunda-feira de manhã, eu as descarrego e arquivo, volto a fazer-me as perguntas do costume: haverá um dia em que este encanto se transformará noutra coisa? Por exemplo: numa intimidade que talvez não seja ainda, precisamente porque é encanto? Num estar simples e automático, porque no fundo a indisponibilidade acaba por tocar a todos e é na disponibilidade que está o busílis?



 


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Comecei a horta de Outono. Trouxe várias dezenas de pés de beldroegas de Santa Bárbara, onde fizemos o piquenique de sábado, e depois ainda fui buscar uns centos de pés de cebolinho à estufa do Rodrigo. Hei-de semear beterraba, eventualmente abóboras, e mais à frente seguramente favas (talvez ervilhas também, logo vejo). Mas, em todo o caso, terei de reduzir bastante a actividade ao longo do Inverno (para além do que já é normal reduzi-la, isto é). Preciso de chegar ao próximo Verão com o edifício do romance erguido. Não perdi propriamente tempo: ele veio crescendo dentro de mim, ganhando corpo e personagens, transformando-se em coisas diferentes até, enfim, chegar à actual planta (perto de definitiva, quero acreditar). Nem todos os livros, já se sabe, nos consomem a mesma energia. Este estava desde o início rodeado de demasiadas expectativas para desabrochar depressa – e, para mais, a vida do campo oferece mais tempo, mas também impõe mais tarefas. Mas quem anda nisto nunca deixa de sentir culpa pelo passar dos dias. O que talvez seja, na verdade, a sua maior força.


 


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O Melville tornou-se uma presença inescapável cá em casa. Ao fim de uma semana, já não nos imaginamos a não tê-lo. Tão depressa se deita ao meu lado numa manta de piquenique, cabeça com cabeça, como acorda todo sujo dos seus próprios excrementos, porque os depositou fora do sítio e, depois, ao tentar evadir-se do parque que lhe construí na garagem, ainda caiu para cima deles. Às vezes é exasperante. Mas creio que nos vai tornar melhores pessoas. É tão despojado e profundo quanto isso.

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Published on October 21, 2013 04:33

October 18, 2013

Terra Chã, 18 de Outubro de 2013


Não se pode dizer que o Melville me esteja a tornar um homem optimista. É um cão, e para mais está aqui em casa há cinco dias. Por outro lado, é possível que se possa dizer que eu ter um cão vem confirmar que é precisamente nisso que me estou a transformar: num homem optimista que, aliás, escreve livros optimistas – como “Cerrados” tem vido a revelar-se. Talvez seja do impulso telúrico da ruralidade, embora eu goste de acreditar que se trata de uma escolha racional, até em atenção ao momento que o país atravessa. Ainda acredito na racionalidade como a melhor arma contra a loucura. Mas, por esta altura, interessa-me pouco o porquê: estou a transformar-me num homem optimista – e agora parecem-me inúteis uma boa parte do tempo e e quase toda a devoção que dediquei ao pessimismo.



 


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Recordou-mo o Roberto, com quem falei hoje longamente na Silveira, e de facto eu não o lia há tanto tempo que já nem me lembrava dele. Este texto do José Daniel Macide, depois incluído em “Crónicas com Flores”, é de facto uma das mais encantadoras declarações de amor alguma vez feitas a Angra do Heroísmo. O "Macide" foi o meu primeiro cronista, anterior mesmo a Miguel Esteves Cardoso, e por esta altura parece-me verdadeiramente deplorável que nem depois de me ter tornado seu colega eu tenha reunido coragem para me aproximar dele e conhecê-lo melhor.


“Balada para Angra.


É pecado dizê-lo, amor, mas se eu fosse Deus serias irremediavelmente a minha namorada. Apanharia com doçura a tua mão esguia e os teus dedos breves como madrugadas azuis do nosso silêncio e saberia, então, encostar-me à tua baía de todas as bonanças. Se eu fosse Deus, amor, ia percorrer-te a cada instante nas tuas marginalidades e nos teus epicentros sempre prontos a bulir e acabaria, irremediavelmente pecaminoso, ancorado a uns lábios de um luar saboroso até que o mar acabasse. Amor, se eu fosse Deus, iria ajoelhar-me até ao fim de tudo para te levar, com glória, para um reino que não é deste mundo.


Decerto que endoideci de paixão. Em vez alguma poderei entrançar-me nos teus cabelos longos e lindos e belos, nem adormecer sossegadamente no teu colo de verdura terna. Levou-te o mar para presente dos Oceanos. Eles são valentes e grandiosos, mas não foi isso que tínhamos combinado.”

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Published on October 18, 2013 11:46

October 16, 2013

Terra Chã, 16 de Outubro de 2013


Há três noites que ninguém dorme nos Dois Caminhos da Terra Chã, e depois, ao longo do dia, ali está ele: enroscado numa manta sob a prateleira dos livros novos e do rádio wi-fi – quieto durante longos minutos, mudando preguiçosamente de posição, enroscando-se de novo. Parece bucólico, mas é impressão: ele não lê aqueles livros nem ouve aquele jazz, afundado que está no seu próprio ronco. No máximo, levanta os olhos de vez em quando, para conferir se eu continuo ali a escrever. Depois vai comigo à Silveira, à hora de almoço – e é de facto sensível às atenções dos banhistas de Inverno, generosos com aquela amostra de cão tanto como com os candidatos humanos à grande aventura de nadar doze meses por ano. Em regra, porém, não tem grande paciência para andar: nem à trela, nem sozinho. Se vou à cozinha, vai atrás de mim, mas arrastando-se. Assim que hesito, como quem se prepara para dar por concluída a tarefa, volta direitinho corredor fora e enfia-se na cama novamente. Temos tentado repetir-lhe, para além do seu nome, as palavras que é mais importante um cão doméstico aprender: “anda”, “senta”, “não”, “muito bem”. Só aprendeu uma ainda: “caminha”. Ou isso, ou “caminha” é sempre aquilo em que pensa, mesmo que eu diga “hora da papa”, “vamos ao mar” ou “favas com chouriço”. Às vezes o Melville não me parece um cão: parece-me um gato. Menos quando desce à garagem, onde deveria dormir. Nessa altura parece um lobo – e então ninguém dorme nos Dois Caminhos da Terra Chã. Acho que este ano vou ter de reforçar no pão-por-Deus.



 


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Sim, não me custa reconhecê-lo, apesar de sempre ter dado mostras de desvalorizar o tema: se a venda de armas em Portugal fosse mais livre, como é na América, talvez o miúdo de Massamá que esfaqueou colegas e funcionários tivesse matado um monte de gente. Afinal, ele planeava um massacre maior do que o de Columbine, ou pelo menos sonhava com isso. O que a sua história verdadeiramente nos mostra, contudo, é como, deste como do outro lado do mundo, há adolescentes (creio que cada vez mais adolescentes, um número assustadoramente grande de adolescentes) a viver numa espécie de realidade paralela. Uma realidade paralela a que chamamos "globalizada" como poderíamos chamar "alienante" ou outra coisa qualquer, porque o que na verdade é é uma grandessíssima merda: uma realidade desprovida não apenas de valores e referências, mas da própria empatia – uma realidade por onde pululam jovens capazes de matar em massa já não por ódio, mas para bater um recorde do mundo. Por mim, chamo-lhe um nome muito simples: "sociedade dos famosos". Mas, claro: a maior parte daqueles a quem eu o disser vai continuar a achar que estou a fazer uma tempestade num copo de água.


 


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Aceitei o convite para coordenar o novo Conselho Consultivo de Independentes do PSD-Açores não para servir o partido, mas para servir a Região. Discordo do actual modelo de desenvolvimento dos Açores, mas não diabolizo os seus promotores, que em todo o caso levam muitos mais anos de serviço público do que eu alguma vez levarei. Espero ajudar a propor diagnósticos e a esboçar soluções para o exercício da oposição, mas também para o da governação (e o da actual governação em particular). E espero também que o PSD possa, enfim, dar por definitivamente ajustadas as contas com 1995, tornando a constituir-se como um projecto de poder inclusivo e com alcance para além dos ciclos eleitorais de doze meses apenas. Os açorianos precisam de duas alternativas credíveis, enérgicas e resistentes à simples espuma dos dias – e precisam, ademais, que elas sejam efectivamente alternativas uma à outra, tanto do ponto de vista técnico, como do ponto de vista ideológico. Julgo que Duarte Freitas é o homem certo para encabeçar o lado de cá do debate, como aliás acredito que Vasco Cordeiro, apesar das dores próprias do processo de sucessão de uma referência tutelar, é homem para encabeçar o lado de lá. Vou dedicar a esse debate tempo que cabia à minha família e aos meus livros, aos meus amigos e às minhas crónicas, à minha horta e ao meu cão – e vou fazê-lo apenas pelo prazer de fazê-lo, pela honra de contribuir fazendo-o.  No momento em que o escrevo, sem eleições no horizonte imediato, quando não estão em causa cargos ou nomeações, listas ou influências, a ideia parece-me encantadora. Também há-de depender um pouco de mim que, quando chegar a dança das cadeiras, ela continue a parecê-lo.

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Published on October 16, 2013 10:06

October 15, 2013

Terra Chã, 15 de Outubro de 2013


Todos os anos, por esta altura, eu os lembrava já. Agora que vivo aqui, lembro-os mais ainda. Lembro-me de nós, eu e José Guilherme, subindo a mata apoiados em bordões com os quais  escrutinávamos cada recanto à procura delas. Lembro-me do meu pai, acabado de chegar do trabalho e já correndo com um alfange na mão, para roçar por debaixo das árvores antes que a noite caísse sobre elas. Lembro-me novamente de nós, eu e José Guilherme, vendendo-as no Porto Judeu, com o 127 vermelho apitando muito animado – e depois lembro-me novamente do meu pai a olhar para máquina de escrever portátil que eu acabara de comprar com a minha parte dos lucros, ainda indeciso sobre se sentir-se orgulhoso, mas em todo o caso já esperançado. O tempo das castanhas. Não creio que haja uma época do ano mais puramente açoriana, mais explosivamente terceirense, mais encantadoramente da Terra Chã. Só por isso já valia a pena deslocar-me todos os dias ao cerrado, apesar da lama e da erva e dos picos dos ouriços, para limpar sob o castanheiro situado aqui ao lado de casa, mesmo não sendo ele propriedade minha. Acontece que o semeou a minha mãe, aos três anos apenas, enterrando uma castanha no limite junto às pedras do muro. O avô dela riu-se, como tantos anos depois o meu haveria de rir-se também das minhas ingenuidades de criança. Mas havia ternura nesses sorrisos – e, inevitavelmente, eles libertavam a flor. Como poderia eu deixar que os ratos devorassem o fruto do seu ventre?

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Published on October 15, 2013 15:06

October 14, 2013

Terra Chã, 14 de Outubro de 2013


Chegámos e tínhamos as beladonas à nossa espera. Trouxeram-me uma imensa paz: tudo nelas parecia rescender a literatura e a tempo, à estação dos poetas e à disponibilidade para escrever. E, no entanto, nem só elas nos esperavam. Antes de partir para Lisboa, deixáramos o Chrysler na reparação, de modo que o carro que nos esperava no aeroporto era o velho Opel. Olhei para ele, velho e desbotado, e pensei: “Caramba, já só estás bom para ser o carro do cão.” Chegámos a casa, desfizemos as malas e saímos para almoçar e fazer compras. Havia beladonas nas estradas, porém – e por isso decidimos dar uma volta maior, ao redor da ilha, matando saudades, namorando as flores, comprando fruta nas barraquinhas dos Biscoitos. Até que, algures no mato, ele nos esperava também. Vinha desorientado, descendo uma canada, talvez a mais de cinco quilómetros da casa mais próxima. Trazia as costelas à vista, em resultado da má nutrição, uma camada quase bíblica de sujidade e nenhuma coleira. Perguntámos a um lavrador que passava com a sua camioneta: nada, era cão perdido, abandonado como tantos outros. Pusemo-lo na bagageira do Opel e andámos para trás e para a frente, à procura de gente. Mas, na verdade, já sabíamos que o cão era nosso, que éramos a sua única oportunidade. Trouxemo-lo para casa, demos-lhe um longo banho e aconchegámo-lo na cama e nas cobertas que entretanto passáramos a comprar no supermercado. Gania sempre que nos afastávamos e, para que enfim nos deixasse dormir, tive de pôr-lhe por perto um rádio de pilhas com música de má qualidade. Chamámos-lhe Melville e hoje levamo-lo ao veterinário. E assim começo a pagar tudo o que disse sobre cães e – pior – sobre pessoas com cães.

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Published on October 14, 2013 05:27

Lisboa, 13 de Outubro de 2013


O que é deprimente, naquela edição do programa “Boa Tarde” (SIC) em que um idoso tem um AVC em directo e a entrevista continua, não é propriamente a entrevista continuar. Eu, por exemplo, nunca tinha visto um AVC a acontecer e, provavelmente, também não diagnosticaria aquele, para mais sob o stress de um directo televisivo. O que é deprimente é que, dantes, havia sempre uma mãe, uma tia sábia ou um vizinho atento para detectar estas coisas. Eram pessoas que efectivamente olhavam para as outras pessoas, que as viam, que sentiam as suas inflexões. Perguntavam-lhes: “O tio está um pouco pálido hoje, tem feito as suas análises?” E, três meses antes da tragédia, chamavam-nos a nós à parte, num misto de pesar e respeito: “Temos de perceber que o avô está a ficar velhinho…” Hoje, o mundo já não é assim. O mundo é um programa de televisão. É aquele programa de televisão onde todos os dias se fala de velhos, onde todos os dias se fala com velhos, mas apesar de tudo ninguém olha de facto para os velhos. Nem para os novos. No dia do AVC, há em “Boa Tarde” uma sala inteira de gente que se assusta quando o idoso hesita, mas depois respira fundo quando o vê encaixadinho na sua cadeira. A própria apresentadora, atarantada, pergunta-lhe se ele está bem, ouve-o balbuciar que sim e logo faz uma piadinha,“Ah, pronto, isso é que é preciso”, como quem diz “The show must go on!” Não é Conceição Lino que é menos humana. Somos nós todos. É a sociedade que construímos. É este tempo. Temos a televisão que merecemos porque, antes do mais, a televisão que temos somos nós próprios. O que é preciso, como diria Conceição, é que a casa esteja arrumada. Isto é: o décor.

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Published on October 14, 2013 04:56

Lisboa, 12 de Outubro de 2013


Jantar ontem à noite com boa parte do núcleo duro dos afectos lisboetas. A certa altura, uma informação: em sectores como a construção civil, a indústria metalúrgica ou o retalho alimentar, começa de facto a haver sinais de recuperação. Não falavam de cor: havia diante de mim um engenheiro de produção de uma multinacional, um empresário do ramo alimentar acabado de abrir a quarta loja e uma directora de departamento de uma grande construtora. Sabíamos todos que os sinais não são transversais à economia, e de resto ainda na véspera o P. me dera conta de um cenário dantesco na área da fotografia, das artes gráficas e das actividades criativas em geral. Mas ontem à noite permitimo-nos ter esperança. Fizemos um brinde, acabámos o jantar e depois ainda fomos beber bebidas caras ao Bairro Alto, que aliás me pareceu mais animado do que em qualquer outro instante nos últimos anos. Querer acreditar muda muita coisa. Quando se quer acreditar em alguma coisa, encontram-se sempre evidências para comprovar a sua existência. E, ademais, a vontade de acreditar, em si própria, já quer dizer alguma coisa.



 


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Dizem-me que fui o único português a receber com um mínimo de optimismo a intervenção do ministro Poiares Maduro no Parlamento, esta semana, sobre a estação pública de rádio e televisão. Talvez. A minha questão é se haveria uma proposta – uma que fosse, uminha, pequena ou grande, liberal ou socialista, para aplicar já ou daqui a vinte anos –, capaz de agradar a algum dos outros. A RTP é demasiados anos território de guerra para agora ser alvo de um consenso, ou sequer de um mínimo de racionalidade. Coisas de país rico. Não o ódio: a capacidade de transformá-lo num argumento com aparência de ponderação.


 


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"Falaram-vos, meus amigos, do povo, da classe operária, dos humildes, dos que trabalham ou que não trabalham. Tenham cuidado, não há piores burgueses do que esses. Foi sempre entre eles que encontrei os mais asquerosos dos asquerosos." Escreve-o, informa-me o José Riço Direitinho, Jean Meckert em “Abismo e Outros Contos”. A ver se ainda consigo passar na Bertrand esta tarde.

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Published on October 14, 2013 04:49