Joel Neto's Blog, page 59

July 25, 2013

Terra Chã, 25 de Julho de 2013


Pensamentos dispersos.



 



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De todas as grandes ironias de que se alimenta a relação contemporânea entre homens e mulheres, a que mais me diverte é a permanente acusação de machismo a que sou sujeito – a que somos todos sujeitos, e tantas vezes a pretexto das mais absolutas irrelevâncias. São as mulheres, na verdade, quem mais promove o machismo. Enquanto jovens, o simples silêncio pode ser, para elas, uma agressão. Procriando, logo se ocupam de transformar o rebento no maior macho do pedaço. Ah, a mãe mediterrânica, a mãe mediterrânica – a mãe mediterrânica é a pedra de toque desta civilização.




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Está confirmado: tenho uma segunda epicondilite, desta vez no cotovelo esquerdo. A actividade física do campo despertou em mim fragilidades que eu não esperava. E que, de algum modo, me envergonham.


 


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Ser capaz de transformar o estoicismo em resiliência. A partir de certa altura, tudo o que importa é isso: ser capaz de transformar o estoicismo em resiliência. Que pena orgulharmo-nos tanto da palavra saudade e ainda não termos criado um termo que nos ponha a salvo do anglicismo.




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Talvez a melhor imagem sobre a relação com o leitor seja essa que um dia me sugeriu, sem o saber, o canadiano Robert Piché. Piloto da Air Transat, ele aterrou em 2001 na ilha Terceira, em circunstâncias absolutamente épicas e sem um ferido sequer, um Airbus carregado com 300 passageiros escassos minutos antes a caminho da morte. Tornou-se então o número um da minha galeria de heróis, estatuto que conserva até hoje. Entrevistei-o dois ou três anos mais tarde e perguntei-lhe: "Em que medida a possibilidade de salvar aquelas 300 vidas o estimulou a voar 40 milhas sem combustível e a aterrar sem motores, em voo planante, a mais de 600 km/h?" Respondeu-me: "Os passageiros nunca foram a minha principal preocupação. Quis sobretudo salvar a minha própria pele. Salvando-a, eles salvavam as suas também." É para salvar a nossa própria pele que escrevemos. Se porventura alguém conseguir vir à boleia connosco, melhor. E, sim: trata-se, mais uma vez, do Bem como efeito colateral do Mal. Talvez não seja só este século, afinal, que se explica assim.


 


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Bom, bom, era se um dia fizéssemos as pazes com a palavra "não". Se conseguíssemos responder honestamente aos pedidos, aos convites, às sugestões: "Não." "Não, lamento, mas não quero ir jantar contigo." "Não, tenho muita pena, mas a tua proposta não me interessa." "Não, não me leves a mal, mas não te empresto a minha casa no Algarve." “Não, infelizmente, não há maneira de eu conseguir ter aqui para a semana a peça de que o seu carro precisa.” Pelo contrário, continuamos porreiristas até ao fim – e depois, simplesmente, silêncio. Nem telefones, nem emails, nem mensagens, nem sinais de fumo: silêncio total, até que o outro perceba que a resposta, no fundo, era "Não". A quantidade de energia que se perde no meio disto é impressionante. Mas nós continuamos a preferir esse desgaste a simplesmente olhar o outro nos olhos. Talvez nem seja propriamente cobardia. Somos assim – é tudo.


 

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Published on July 25, 2013 04:21

July 24, 2013

Terra Chã, 24 de Julho de 2013


Um homem "prezado", uma freguesia "prezada", uma gente "prezada”. Fala-se cada vez menos assim. Chamem-me nomes, se quiserem: tenho saudades de quando se era prezado ou não – e de quando ser ou não prezado (ser honesto, ser asseado, ser digno) era aquilo que distinguia uns dos outros.



 


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A nova loucura de Hollywood, e que vai tomando de assalto a cultura pop em geral, é um filme em que Batman e o Super-Homem aparecem juntos. Caramba: metam os vampiros, os zombies e os lobisomens também. E os duendes, os elfos, os hobbits e os dragões. E o X3PO e os extra-terrestres e as plantas carnívoras e as casas assombradas – metam essa gaita toda de uma vez e depois façam uma porcaria de uma pira, queimem tudo e chamem-me para  estacionar do outro lado da rua, a rir, watching it burn, all Halloween orange and chimney red. Já não se pode com a imbecilização do mundo dos adultos, que diabo. Será que ainda não esgotámos a nossa quota de prazer culposo?

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Published on July 24, 2013 05:36

July 23, 2013

Terra Chã, 23 de Julho de 2013


Apanhei hoje o resto dos alhos. Não chegaram a formar as cabeçorras que me povoavam os sonhos, mas espigaram e já não cresceriam mais. De qualquer modo, há um mês que não os compramos no supermercado, e ainda nos resta para mais uns dois. Resultado: lucro. Vou semear mais.



O feijão verde também começa a declinar. Por um lado, ainda bem, porque já o enjoámos um pouco. Mas para o ano vou semear muito mais e congelar uma boa parte. Portanto, e para já, nenhuma mágoa: assim que acabar, uso o respectivo talhão para nabos vermelhos – e depois logo se vê.


Os tomates, por seu lado, estão cada vez maiores. Mais uma semana ou duas e começam a alaranjar. Iniciar-se-á então a guerra contra os melros. Penso que estou preparado. Mas os sacaninhas também são capazes de estar.


Tenho de desbastar os rabanetes e as cenouras. E a partir do próximo fim-de-semana já posso apanhar as batatas, o que, tendo em conta a epicondilite e as vagas melhoras dos últimos dias (em que poupei o cotovelo), não é propriamente auspicioso.


Para já, porém, o vento derrubou-me metade dos pés de milho doce. Por muito dura que seja a jornada laboral de hoje, pois, tenho de tirar tempo, algures durante a tarde, para criar ali uma sustentação qualquer.


Tudo bem. Faz parte do jogo. Isto é uma horta, não um jardim japonês. Até aí, já aprendi.

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Published on July 23, 2013 03:48

July 22, 2013

Terra Chã, 22 de Julho de 2013

O que eu gostava, verdadeiramente, era que saísse daqui alguma consciência política. Mas temo que a maior parte de nós continue a olhar para as ideologias, as estratégias e os partidos políticos como para clubes de futebol. Que, no fundo, nada deste pensamento todo chegue a passar de raiva, por muito natural que ela seja (e é).




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Está tudo em suspenso com o nascimento iminente do filho dos príncipes de Gales. A obsessão do Ocidente com os monarcas britânicos, e aliás a ternura pelo regime monárquico que parece habitar o coração de cada um de nós, é coisa que não entenderei nunca. Aparentemente, há mesmo uma sopeira dentro de cada homem e de cada mulher. O que, de resto, explica muito mais do que neste caso parece explicar.


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Published on July 22, 2013 07:41

Terra Chã, 21 de Julho de 2013


Dos mais rurais aos mais cool, dos mais arrivistas aos mais urbanos, dos mais suburbanos aos mais aparentemente livres, e naturalmente também aos bem-sucedidos e aos verdadeiramente ricos – não há homem, português ou estrangeiro, velho ou novo, preto ou branco, que não sinta a tentação de reclamar algum tipo de linhagem. Há sempre pelo menos (pelo menos!) um avô que descendia de alguém, que desbravou alguma coisa, que emprenhou a filha do morgado, que influenciou a História. Mistério: nunca é mais caso de orgulho no avôzinho do que de orgulho no nosso sangue. Em nós próprios. E o que eu começo a achar, à beira dos quarenta, é que se vai tornando cada vez mais improvável que isso me entre na cabeça. De qualquer modo, temos de aprender a viver com as nossas derrotas.



 


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No fundo, há sempre um complexo social. E uma necessidade de suplantar (ou de esmagar) o outro, ainda que sem se conquistar o que quer que seja com as próprias mãos. Não falo só da impulso de realeza, do desejo de reclamar sangue azul. Até se dá às vezes a circunstância de ser o contrário: do orgulho de ser filho de um famoso ladrão. No fundo, só ninguém quer ser filho do subchefe. Eu, por acaso, quero. Nenhum homem honesto alguma vez fez História. E eu, na impossibilidade de ser honesto, gosto de ser filho da honestidade férrea.


 


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Mais um fim-de-semana perfeito: sábado de piquenique a dois e churrasco com amigos, domingo de passeios, praia e agricultura. O último paraíso da Europa – eis aquilo de que se trata.

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Published on July 22, 2013 04:19

Terra Chã, 20 de Julho de 2013


A estratégia proposta pelo Presidente da República para a solução da crise política estava condenada a dar mau resultado, como diz o doutor Alegre? Pois claro que estava. Esperavam o quê, servos de Deus? Um país com novecentos anos não consegue produzir como alternativas de poder, num dos piores momentos da sua História, mais do que Passos Coelho e Tozé Seguro – esperavam o quê, afinal?



 


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Continuo a confirmá-lo diariamente: quase todos os artistas não consumados (a Ana Bárbara chamar-lhes-ia "poetas desvalidos", e eu gostaria de ter sido eu a inventar a expressão) vão dar agora à fotografia. É, hoje, a mais democrática de todas as possibilidades de arte. Dantes era a versalhada. Ainda bem: assim sempre se poupa um pouco as palavras.


 


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Persisto em coleccionar expressões terceirenses, e qualquer dia tenho de compilar o segundo tomo da lista iniciada há uns meses. Creio, no entanto, que já escolhi a minha preferida. Teria sempre de ser um misto de simplicidade, espontaneidade e paradoxo. E gosto mesmo daquela que usa a palavra “disparate” como um adjectivo – ainda por cima elogioso, quase endeusador. No sentido de “disparatadamente bom”, isto é. Do tipo: “O quê? Tu estás a oferecer-me este Mercedes-Benz descapotável? Eh, pá, tu és um disparate!”

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Published on July 22, 2013 04:13

July 19, 2013

Terra Chã, 19 de Julho de 2013


Mais de cem pessoas, afinal, na primeira sessão do ciclo de cinema – e no fim um bonito aplauso, numa demonstração cabal de que efectivamente gostaram de estar ali. Isto apesar da instabilidade da meteorologia (incluindo uma chuvada dez minutos antes do arranque, para pôr as coisas em perspectiva) e da concorrência do festival Azure. Expectativas totalmente suplantadas, pois. Para a semana há Fellini – e depois ainda há von Sternberg, John Huston, Visconti, Woody Allen e Orson Welles. Estamos entusiasmados.



 


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O cotovelo vai-se transformando na verdadeira face negra deste extraordinário tempo. Começa a custar-me até a escrever, e levar uma chávena de café à boca, abrir uma porta ou sequer esticar o braço tornaram-se tarefas não apenas dolorosas, mas inconcretizáveis. É o tal espinho na carne, suponho. Haverá aqui também influência da humidade, dada a ineficácia dos próprios anti-inflamatórios?

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Published on July 19, 2013 05:30

July 18, 2013

Terra Chã, 18 de Julho de 2013


É uma vida açoriana, pois claro. Reactivado o Cine Clube da Ilha Terceira, após 22 anos de inactividade, quisemos desde o início evitar que ele se resumisse, como outros, a uma plataforma para a extensão de festivais e exibições esporádicas de cinema alternativo ou de género. E, como também fizemos questão de que ele não se limitasse a dialogar com os dinheiros públicos, como tanta coisa nestas ilhas, fomos à procura da iniciativa privada para organizar um evento que de algum modo marcasse este nosso primeiro Verão. Lembrámo-nos de um ciclo de cinema ao ar livre, e a adesão do Q.B.-Food Court e do Meo (entre outras entidades) permitiu-nos organizá-lo em tempo recorde, num lugar encantador e com baixíssimos custos. Deu trabalho e arranca esta noite. Estávamos tranquilos, porque não chovia há semanas, aliás para grande infortúnio de hortas, jardins e cerrados. Pois começou precisamente anteontem – e ainda piorou hoje. Fez-me lembrar a minha infância (e as infâncias açorianas em geral), sobre que escrevi assim n’Os Sítios Sem Resposta: “Tudo o resto era chuva: uma chuva às vezes persistente e outras apenas oportunista, determinada a transformar a história de cada infância no triste conto dos piqueniques cancelados à última hora, das tardes de praia que não ocorreram, dos sábados passados a ver televisão porque o dia sonhado, em que ainda por cima havia tourada, acabara em tempestade.” E, à sua maneira, vem carregado de ternura.

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Published on July 18, 2013 04:20

July 17, 2013

Terra Chã, 17 de Julho de 2013


Agora, todos os dias clamo por chuva. Chega a ser cómico, porque durante anos a minha relação com esta terra enfermou precisamente por aí: pela minha resistência à meteorologia e ao facto de chover nas horas mais inconvenientes, quando não a todas as horas. Pois agora, e na impossibilidade de chover apenas na horta, distribuindo-se um sol glorioso em derredor, preciso que chova na ilha toda. Não chove. Ontem caíram uns pingos e logo os celebrei, aplaudindo: “Enfim!” Nada: pingou e secou-se. Já esta manhã, com a terra vagamente húmida, abateu-se um nevoeiro, trazendo os seus míldios e as suas porcarias. Logo esta semana, isto é – esta semana em que nem sulfatei os tomateiros (as batateiras estão mesmo no fim do tempo, já nada as agarra ou resgata), nem os pulverizei com extracto de alho. Bonita coisa.



 


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Mais memória e menos imaginação, sim. É isso: mais memória e menos imaginação. Talvez esteja aí, aliás, a chave para a tal categorização que os americanos inventaram. A ficção fala de imaginação. A literatura fala de memória.



 


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Quatrocentos e quarenta mil caracteres. É quanto eu descobri hoje que este diário já tem. Em bastante menos de um ano, e uma vez que começou no final de Agosto mas só no Outono encarreirou verdadeiramente. O que quererá isto dizer?

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Published on July 17, 2013 03:13

July 16, 2013

Terra Chã, 16 de Julho de 2013

A epicondilite agravou-se, e neste momento até me dá a sensação de que o braço esquerdo se encaminha para o mesmo estado. Sobrecarga, provavelmente. Mas serão precisos agora tratamentos diários. Vou ter de abrir espaço na agenda para cuidar de mim. Está oficialmente aberta, pois, a fase egoísta. De qualquer maneira, eu não poderia estar sempre disponível para tudo. Não como estive este ano.



 


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Hoje tive saudades da América. Outra vez. Há quantos anos não vou à América?




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Published on July 16, 2013 09:59