Joel Neto's Blog, page 56
August 30, 2013
Terra Chã, 30 de Agosto de 2013
Duas militantes do Bloco de Esquerda, Elsa Almeida e Adriana Lopera de suas graças, querem pôr o partido a discutir a imposição de restrições aos piropos dos homens das obras. Li a notícia e senti-me solidário. Estou disponível, portanto, para mandar eu próprio uns quantos madrigais à Elsa e à Adriana. Sexo não me peçam, que estou velho e não gosto de chanatos sujos. Mas, caramba: não vamos deixar que duas raparigas urgentes de atenções masculinas façam implodir um projecto político tão útil e intelectualmente honesto como o do Bloco de Esquerda, pois não?
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Concluída a leitura de "6 de Junho: Um marco na rota da autonomia dos Açores", de Américo Natalino Viveiros, confirmo (embora aberto à refutação, como sempre) o que há algum tempo vinha intuindo: que ainda não fizemos a devida justiça, nem ao 6 de Junho como grande referência da nossa identidade açoriana (ou deveria antes dizer "açoreana"?), nem ao 17 de Novembro como um dos catalisadores do momento mais importante da história contemporânea de Portugal logo a seguir ao 25 de Abril (precisamente: o 25 de Novembro), nem à acção da FLA (e da FRIA, e do CREPE...) como corajoso grito de revolta de um povo em defesa da liberdade e da democracia. É mais do que tempo de fazermos as pazes com a nossa História. Como poderemos nós, em consciência, reconhecer o MFA e repudiar a FLA?
August 28, 2013
Terra Chã, 28 de Agosto de 2013
Suspiram: “Mas será que os homens só pensam em rabos e em mamas? Será que a mulher tem mesmo de continuar a ser reduzida a um objecto?”
É uma confusão comum. Mas é uma confusão.
Sim, os homens valorizam os rabos e as mamas muito mais prontamente do que os olhos, as mãos ou a (facilitemos) beleza interior. E, porém, o corpo não se torna por isso um objecto.
O corpo é uma intimidade. E a vantagem dos rabos e das mamas sobre as mãos ou os olhos é que a sua intimidade é mais evidente, mais imediata.
De resto, a isso, e salvos os delírios e as vulgaridades, se resume tudo: à intimidade. À penetração nessa intimidade. À posse, talvez. Ao roubo dela. Ao usufruto de um pedaço dela.
O corpo é essencial por isso, não por ser um objecto. Ou então é por isso que é um objecto e só como objecto é essencial.
A sensualidade não passa, pois, da capacidade que um corpo tem de sugerir-se na posse de diferentes camadas de intimidade. De patentear uma hierarquia, degraus – uma escala de intimidade através do qual poderá ser descoberto.
Daí que uma mulher bonita, às vezes, seja totalmente desprovida de sensualidade. Se é rasa, sem demãos, sem profundidade, jamais será sensual. Por muito bela que seja: não tem intimidade. Ou a sua vaga intimidade não chega a ser passível de cobiça.
De desejo.
O corpo é maravilhoso mesmo quando é feio. Tem é de ser íntimo. Profundo. Abissal, misterioso. Convidativo. Tem de fazer-nos apetecer mergulhar nele.
Nada disto é novo, mas às vezes é preciso recordá-lo, como tudo o que é importante. O corpo é tudo o que importa e tudo vem dar ao corpo, ainda que apenas ao seu espectro. Não é uma questão de beleza, ou sequer de sexo.
É de intimidade.
Terra Chã, 27 de Agosto de 2013
Da série Coisas Que Me Irritam Como o Diabo. Jornalistas que, sempre que escrevem sobre alguém que se despiu, não evitam escrever "despiu-se de preconceitos". Jornalistas que acham que a roupa é um preconceito, no fundo. Ou jornalistas tolos em geral. Não devia ser possível ser tolo e jornalista ao mesmo tempo. Mas é.
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Chegaram os cunhados, trazendo os sorrisos da gente de vinte anos. Gosto de falar com miúdos desta idade: cultivam o impulso da liberdade e não têm a desilusão estampada no rosto. Nunca se iludiram, na verdade – e a pergunta que se colocam é íntima: “Até onde estarei disposto a ceder para obter o direito a um caminho?” Já pensei totalmente o contrário. Hoje desconfio que perceberam tudo muito antes de nós.
August 26, 2013
Terra Chã, 26 de Agosto de 2013
A certa altura do fim-de-semana uma pessoa dá por si no areal da Praia da Vitória, sob um sol benigno e com a água a 22º C, rodeado de silêncio, com a areia mais limpa do que qualquer outra e o muro que a separa da cidade enfeitado com floreiras a toda a sua extensão, e pergunta-se: porque é que as pessoas vão para as Caraíbas de férias?
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Goethe estava bem tolo quando dizia que "apenas é digno da vida aquele que todos os dias parte para ela em combate". Um ano ou dois nos Açores e passava-lhe o protestantismo todo.
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Da série Coisas Que Me Irritam Como O Diabo. Ver escrito "áurea" onde deveria estar escrito "aura" – em livros, e ainda por cima da autoria de académicos.
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Várias pessoas lendo na praia, este fim-de-semana. Inclusive coisas a sério: Tolstoi e até Melville – o “Bartleby”, que nem sequer se pode relacionar com adaptações cinematográficas recentes, ao contrário de “Anna Karenina”. Pareceram-me continentais, nos melhores casos. Oxalá não.
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Uma gloriosa memória do fim-de-semana: a frase do Pereira, ao jantar de sexta-feira. Sobre “uma mãe que acarinha o projecto de esquizofrenia de um filho”, pois claro. Tenho de recordar-me da formulação dele.
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A minha sogra, uma das poucas leitoras que este diário terá no meu obscuro blog de Internet, acha que eu estou “mais ácido”. Bom sinal: começo a encontrar o equilíbrio que procurava entre a alegria de viver no paraíso e a preservação do sentido crítico. Um ano de deslumbramento radical parece-me suficiente.
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Desistir da verdade. De ter razão. De fazê-la vingar. Desistir da verdade e garantir que, apesar disso, o edifício fica de pé. Talvez essa, sim, seja ela. A verdade.
August 22, 2013
Terra Chã, 22 de Agosto de 2013
Mais uma prova do desleixo e da deterioração da cultura popular? A qualidade média dos textos de contracapa (ou afins) de livros, filmes e discos, assim como das sinopses e promoções distribuídas pelas assessorias de imprensa e publicadas automática e acriticamente nos jornais e nos separadores das lojas virtuais. Todos os anos um pouco mais desarticulados, incultos e inconsequentes, os textos e os profissionais – técnicos de comunicação e até editores, vendedores e até jornalistas. Vão por mim: isto, no fim, não fica pedra sobre pedra. Shame on us.
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Chove na minha horta. Bendigamos!
August 21, 2013
Terra Chã, 21 de Agosto de 2013
"Tenho quarenta janelas
Nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
Posso ver através delas
O mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do Sol,
Por outra a luz do luar,
Por outra a luz das estrelas
Que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea
Como um vapor de algodão,
Por aquela a luz dos homens,
Pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
Pela menor a certeza,
Pela da frente a beleza
Que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança
De quatro lados iguais, quatro arestas,
Quatro vértices, quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
Que as vigias são redondas,
E o sonho afaga e embala
À semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza,
Por aquela entra a saudade,
E o desejo, e a humildade,
E o silêncio, e a surpresa,
E o amor-dos-homens, e o tédio,
E o medo, e a melancolia,
E essa fome sem remédio
A que se chama poesia,
E a inocência, e a bondade,
E a dor própria, e a dor alheia,
E a paixão que se incendeia,
E a viuvez, e a piedade,
E o grande pássaro branco,
E o grande pássaro negro
Que se olham obliquamente,
Arrepiados de medo,
Todos os risos e choros,
Todas as fomes e sedes,
Tudo alonga a sua sombra
Nas minhas quatro paredes.
Oh janelas do meu quarto,
Quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
Falta-me a luz e o ar. "
António Gedeão
August 20, 2013
Terra Chã, 20 de Agosto de 2013
Costumo chamar-lhe “o primado do motor”, e a verdade é que não existe apenas aqui na Terceira, ou sequer nos Açores: aparece um pouco por todo o país, e em particular nas zonas rurais, embora sempre (parece-me) em menor grau do que aqui.
Cada vez mais jovens a quem infelizmente não foi prestada outra formação reduziram os seus projectos de vida a um só: a obtenção de um motor. Um carro ronronante em caso de sucesso total, um carro menos conspícuo em caso de sucesso razoável, uma mota em caso de sucesso relativo: ter um motor, ser proprietário dele, poder passeá-lo em frente aos outros, poder acelerá-lo de modo a que nos faça parecer verdadeiramente “bad” é sempre sinal de algum grau de sucesso.
É-o porque nos distingue de toda essa dinastia familiar que nunca conseguiu obter um motor e é-o porque um motor tem uma bondade intrínseca, uma espécie de nobreza – porque na verdade o motor é o máximo a que o Homem chegou e deve ser amado, cultuado, musificado, respeitado. Produto: toda uma cultura que às vezes parece cristalizar-se nesse extraordinário e definitivo princípio de que “a rua é para os carros”.
Achas que eu conduzo demasiado depressa, seu infeliz pedestre? Olha, chega-te para dentro! Tens a mania de que estás no direito de eu não me pôr meia hora à tua porta, às sete da manhã de um domingo, a acelerar a mota para ver se está tudo bem com o cano de escape? Eh, pá, tem lá paciência, é de um motor que estamos a falar, limita-te a compreender.
O primado do motor.
E, depois, o excesso de velocidade, as curvas feitas como que com carros de rali, os ajuntamentos para contemplar o motor – e logo mais excesso de velocidade, mais rali, uma revoada de motores e de motorizados, muito bad, muito cool. Não têm mais com o que se ocupar, e se protestamos damos-lhe logo com o quê: ir dar a volta e tornar a passar mais depressa ainda, regressar no próximo domingo para uma hora inteira de acelerações e escape roto, se for preciso descer do motor e perguntar de peito cheio: “Há azar, é?”
They’re so, so bad. Eles e elas, destravadas, que não são menos homens do que eles.
Às vezes, quando estou mal disposto, ocorrem-me denúncias de psicopatia (no sentido clínico do termo mesmo, de “falta de empatia, culpa e remorso”), inumanidades em geral, incapacidade de amar para além do modo como amam os cãezinhos da rua, desvios à própria evolução darwinista. Felizmente, estou bem disposto muito mais vezes e posso recordar-me daquilo de que verdadeiramente se trata: uma geração totalmente confusa, esvaziada de sentido e de ocupações, e para a qual este paternalismo eleitoralista e sôfrego veio a constituir nada menos do que a estocada final.
Uma “geração RSI”, se quiserem – um monte de miúdos à toa, primeiro sem destino e depois até sem origem, cuja vida não passará nunca de uma romaria de tributo ao motor, a não ser que um dia atropelem alguém e tenham de passar os anos que lhes restam a pagá-lo com trabalhos forçados ou na própria prisão. Neles se concretiza, de algum modo, todo um modelo de desenvolvimento.
Serão vítimas, muito mais do que agressores. Portanto, respect the engine. O que é que uma pessoa há-de fazer se não condescender?
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Habituara-me a olhar para Miguel Fonseca como um exemplo da tenacidade e da devoção ao trabalho que talvez pudessem, um dia, devolver aos Açores – e à Terceira em particular – o brio de outros tempos. O seu tão precoce desaparecimento é mais uma prova da injustiça, e do absurdo, disto tudo a que chamamos vida e mundo.
August 18, 2013
Terra Chã, 18 de Agosto de 2013
O que é que querem dizer estas entrevistas que as estrelinhas da televisão dão às revistas, dizendo coisas como “O calor desperta-me o apetite sexual”? Querem dizer: “Eu f**o muito. Eu f**o p’ra caraças!” No fundo, tem o mesmo desiderato que a pornografia ultra-realista (chamemos-lhe assim): municiar o onanismo doméstico de elementos fantasistas. Portanto, chamem-me moralista, se quiserem. Na verdade, eu sou todo pelo calor, pelo sexo e pelo apetite em geral. O problema é que, se uma junkie tatuada chega ao pé de mim e me sussurra “Eu f**o muito”, apetece-me logo ir mudar a garrafa de gás ou tratar do IRS, que sempre são actividades com mais potencial erótico.
August 17, 2013
Terra Chã, 17 de Agosto de 2013
Tenho reservas quanto às reservas de Onésimo Teotónio de Almeida (expressas no último “Jornal de Letras”) sobre a protecção da pedofilia que faz, perante o silêncio do narrador, certa personagem de “Murmúrios Com Vinho de Missa”, de Álamo Oliveira. Naturalmente, não há um só momento, aspecto ou ângulo de abordagem por que a pedofilia tenha legitimidade ou beleza. A pedofilia é abjecta, ignóbil, intolerável. Cobarde. Mas Onésimo sabe muito mais do que aquilo de que me parece ter-se lembrado. As personagens são apenas uma parte do narrador e o narrador é apenas uma parte do autor. Mesmo quando o narrador é 99,5 por cento do autor, é ainda cem por cento personagem – e os obstáculos entre os espaços de criação envolvidos tornam a multiplicar-se se considerarmos uma quarta entidade ainda, evidente tanto na história como na teoria da literatura, e que é o autor enquanto criador (e não enquanto homem, portanto). Isto para dizer que o caminho que vai de Álamo à sua personagem, como o que ia de Nabokov a Humbert Humbert, de Süskind a Jean-Baptiste Grenouille ou (sei lá) de Defoe a Robinson Crusoe, é longo e tortuoso. E, mesmo que não fosse caminho nenhum, restaria sempre a literatura como exercício de possibilidades, como proposta de contrastes, como provocação – como obra de arte mais do que como sistema filosófico. Para além de tudo, a técnica do unreliable narrator é antiga. E, ademais, a literatura não tem de ser edificante. Alguma da melhor literatura, aliás, foi profundamente imoral. Portanto, pretender que “Murmúrios Com Vinho de Missa” pudesse ser um grande romance na mesma sem a oposição de Jonathan ao consenso antipedofilia é esquecer quase todas essas camadas. O sensualismo de que se alimenta está-lhe demasiado próximo do coração, é demasiado parte da sua integridade, para ser suprimível. “Murmúrios Com Vinho de Missa” também é o romance que é por causa dele, do silêncio que o narrador faz sobre ele e da quase insana coragem que essas duas circunstâncias encerram. Penso eu neste meu pensar de sábado à tarde – e que, por isso e por princípio, não é definitivo.
August 14, 2013
Terra Chã, 14 de Agosto de 2013
Só agora li o Zafón, que concluí ontem à noite. Não me surpreende que tenha vendido milhões (um milhão só em Inglaterra, parece), sido traduzido para vinte e tal línguas ou publicado em 45 países. O que me surpreende é a aclamação crítica, que não apenas o presenteia com estrelas em barda, mas o ratifica como um livro para adultos. “A Sombra do Vento”, se não é um infanto-juvenil, é um livro para jovens-adultos. Tem uma intriga engenhosa de início, para além de uma certa atmosfera, mas ambas se dissipam com o passar das páginas, até redundarem num desenlace totalmente previsível e desprovido de chama, de resto contado com recurso às técnicas narrativas com menos risco (como, por exemplo, uma longuíssima carta que desvenda tudo o que é importante no mistério sem ter de levar os dilemas a jogo). O número de cenas cliché, roubadas ao cinema comercial, é significativo – e a quantidade de epílogos, com que Zafón vai atando as pontas todas até não sobrar um só desejo do telespect…, perdão, do leitor por satisfazer chega a ser cómica. Restam as personagens, sim (embora umas mais espessas do que as outras, diga-se), mas mesmo elas acabam rodeadas de compromissos e de cedências. Evidentemente, não vale a pena procurarem: os meus livros são piores. Li Zafón – o que provavelmente será injusto para ele – como pouco menos do que um monstro sagrado do suspense. Assim mo aconselharam críticos de todo o mundo, inclusive das melhores publicações (bem como os académicos e os jurados dos prémios literários, que lhe atribuíram 17 prémios por todo o Ocidente). E é isso que me constrange, não o sucesso. Sendo o leitor anónimo o infiel que é, tão inclinado a baixar a fasquia, quem vai proteger agora a literatura das investidas do cinema?
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Leio sobre o modo como muitos periódicos alemães regressaram à antiga ortografia, rejeitando a partir de 2004 a reforma de 1996 (e não 1998, como diz o artigo em anexo), que inicialmente tinham aceitado, e volto a confirmá-lo: o execrável Acordo com que nos últimos anos sujámos os jornais e os livros portugueses ainda é reversível, ou pelo menos confinável aos diários oficiais e aos gabinetes dos burocratas. A mim, parece-me uma oportunidade de ouro para os jornais provarem que ainda são capazes de liderar revoluções. Às vezes, os passos à retaguarda são os mais corajosos de todos. Quem dá o primeiro?


