Joel Neto's Blog, page 104
August 7, 2011
A cultura pop e os seus alaridos

Por esta altura, já estou mais do que conformado com a infantilização da espécie. Virem-me com Balzac ou com Lightning McQueen, o carro falante de Radiator Springs, já é igual ao litro – e se de repente se reúne à minha volta uma horda aos berros, que quer ir ver os vampiros, ou os lobisomens, ou os dinossauros, ou os zombies, ou os super-heróis, ou os extra-terrestres, ou os dragões, ou os elfos, ou os duendes, ou os hobbits, ou os ogres, ou as sereias, ou os feiticeiros, ou os videntes, ou os mentalistas, ou os guerreiros azuis, ou os carros falantes, ou os brinquedos falantes, ou os cães falantes ou outra trampa qualquer falante que os da minha idade andem loucos por ir ver, desculpando-se com "os miúdos" de forma a disfarçar a sua própria incapacidade para processar outra coisa que não filmes para crianças e livros para crianças e jogos de computador para crianças, eu ergo o copo e não me ocorre dizer senão: "Epá, comprem bilhete para mim, que eu também quero ir ouvir falar o sacaninha do automóvel!"
Ser capaz de, em momentos seleccionados, enfiar um barrete de sorriso na cara é coisa que, ao final de uma certa experiência neste mundo, se inscreve no próprio manual de instruções da conservação de amigos. Há gente na minha vida que só gosta filmes de brincar, pronto. É chato, mas é assim. De resto, sempre me orgulhei de ter, entre as pessoas da minha mais restrita estimação, um pouco de tudo. Tenho ricos e pobres, intelectuais e brutamontes. Tenho portugueses e brasileiros, goeses e açorianos. Tenho académicos e arquitectos, contabilistas e padeiros. Tenho sportinguistas e benfiquistas, portistas e gajos do Belenenses. Tenho gente de direita e gente de esquerda, gente que não liga à política e até um socialista, que por acaso só no outro dia descobri que era socialista, mas nem por isso disse nada. Em havendo folia, contem comigo. Se é para comer e beber, contem comigo. Se é para ir à bola, jogar 18 buraquinhos, ver uma peça dos Artistas Unidos, chamar nomes aos tipos da Emel – enfim, se é para fazer uma coisa divertida, contem sempre comigo.
Naturalmente, contem comigo também para o cinema. E, em sendo o filme imbecil, pois paciência. Assim como assim, adoro pipocas, como já aqui assumi, de resto num acto não totalmente desprovido de coragem (sobretudo tendo em conta que ainda gostava de vos vender uns livrinhos).
Agora, a filmes em 3D não vou mais. Não vou. Porque o cinema em 3D, seja em que sala for, fale a intriga do que falar, tenhamos nós à volta a equipa de luta greco-romana do Benfica ou um autocarro de turistas finlandesas em trânsito para Albufeira, é sempre um barrete – e um barrete tão grande que nem para conservar um amigo vale a pena enfiar. Ainda no outro dia li um artigo de Walter Murch, editor oscarizado e responsável pela montagem de "Apocalypse Now" ou "O Paciente Inglês", em que ele dizia que o 3D não funciona porque cria problemas de perspectiva e de panorâmica. Talvez tenha razão. A mim, faz-me reflexo. E inquieta-me sair de casa para ver um filme, pagar um bilhete ao dobro do preço, comprar uns óculos especiais, passar os primeiros quinze minutos num tira-óculos, põe-óculos, tira-óculos, põe-óculos, tira-óculos, põe-óculos, ao sabor da publicidade e das apresentações – e depois ainda ver o filme todo cheio de reflexos, só por causa de um bocadinho mais de profundidade de campo, que ainda por cima tem alguma expressão com a tecnologia Real 3D, mas não tem quase nenhuma com a tecnologia Digital 3D, que é o que por aí mais há.
Querem a minha opinião? É golpe. É marketing do mau. É banha da cobra. Pelo amor de Deus: onze euros? Por onze euros, e numa economia assim, o mínimo que eu peço é que a Scarlett Johansson saia da tela e se venha sentar ao meu lado, no escurinho. De resto, é só fazer as contas. Uma família de quatro pessoas vai ao cinema. Cada um paga onze euros de bilhete e mais meio euro pelos óculos. Se comerem pipocas, então a conta sobe: mais uns três euros por pessoa, em média, entre as pipocas e as bebidas. Factura (e isto sem gasolina nem hambúrgueres no McDonalds): 58 euros para um cineminha em família. Onze contos e seiscentos, como se dizia no tempo em que o cinema não era quase todo uma bodega.
Eu quero é que o senhor Ridley Scott vá gozar com a cara de outro.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")
NS', 6 de Agosto de 2011
(imagem: © www.ps3blog.net)
August 1, 2011
Mais workshops sobre dildos, por favor

À hora a que escrevo, estará quase a terminar mais uma edição do Acampamento Liberdade, que tornou a reunir um monte de "jovens" do Bloco de Esquerda num bonito cenário de província (este ano foi no Bioparque, em São Pedro do Sul). Não sei como a coisa correu, mas imagino que tenha sido mais ou menos o costume: muita poeira, muita ganza e muito pouco banho – enfim, o normal num partido com preocupações ambientalistas e amor à agricultura biológica.
Não é isso que me traz aqui. O que me traz aqui é o programa do acampamento deste ano, a forma como, comparado com os programas de acampamentos anteriores, ele reflecte a crescente perda de sentido de humor por parte do BE – e ainda, já mesmo a fechar a crónica, uma teoria um tanto mirabolante, bastante discutível, mas talvez um pouquinho divertida sobre a influência que essa perda de sentido de humor tem desempenhado no inexorável declínio eleitoral do partido.
Comparemos o programa deste ano com o de 2008, por exemplo. Há três anos, o período da manhã era ocupado por debates em torno de temas como "Imigração e Racismo", "Biocombustíveis e Crise Alimentar" e "LGBT, Feminismo e Combate Social" – enfim, as três grandes angústias globais nesse trágico ano em que faliu o Lehman Brothers (daí os cereais), Obama ganhou vantagem na corrida presidencial (daí a conclusão óbvia de que o ocidente está cada vez mais racista) e as malas a tiracolo saíram de moda (daí a preocupação LGBT).
Já este ano, o período da manhã foi dedicado em exclusivo a temas chatíssimos: "Revoluções Árabes", "Quantos Pobres São Precisos Para Fazer Um Rico?" (não, não se trata de um workshop de plasticina, foi mesmo um debate com Francisco Louçã) e "O Socialismo É Um Desporto de Combate". Basicamente, tudo parecia gravitar em torno do tema da manhã do segundo dia, "Bloco: De Onde Vimos E Para Onde Vamos?" (ao contrário de mim, o BE escreve os títulos todos em caixas baixas, porque as letras também são todas iguais), destinado a desmontar a actual crise do partido. E era tal a obsessão com a reconstrução do dito que no sábado de manhã, em vez do habitual torneio de futebol, ainda se procedeu a novo colóquio.
De resto, à tarde foi a mesma coisa. Em 2008 houve um debate sobre drogas leves (eu li primeiro "Debate e drogas leves", mas foi da pressa: o nome era "Debate: Drogas Leves") e em 2011 um debate sobre o FMI; em 2008 houve um workshop sobre brinquedos sexuais e em 2011 um plenário sobre o ensino superior; em 2008 houve um atelier sobre massagens e em 2011 um workshop sobre economia. No essencial, foi tudo muito menos divertido. E, em vez de pequeninos torneios de futebol todos os fins de tarde – qualificações para as finais de sábado de manhã, quase de certeza –, só houve projecção de filmes e observação de estrelas (juro: "Observação de Estrelas"), coisa que os jovens militantes do BE, como é natural, já fazem todos os dias em casa, ao exercitarem os ensinamentos apreendidos nos debates divertidos de outros anos.
No mais, foi o habitual: muito workshop sobre pintura a stencil, colocação de faixas e mobilização para comícios – e, no fim, uma festa LGBT, o que provavelmente ainda foi o mais divertido de tudo (pudera). Brincadeira: quase nenhuma. Nem sequer os jogos de Twister com que, à noite, a malta costumava fintar o duche. Na verdade, o único apontamento de humor no programa deste ano foi o facto de, em vez do tradicional "Acampamento de Jovens do Bloco de Esquerda", o encontro ter-se chamado "Acampamento Liberdade", não tendo os jovens usufruído de nenhuma para improvisar fosse no que fosse, tal a intensidade da agenda. Mas, de qualquer forma, era humor de recorte demasiado fino – estou em crer que, com tanto fumo no ar, muita gente nem percebeu.
E o meu medo é que, no meio disto tudo, o Bloco de Esquerda esteja a pensar tornar-se num partido a sério, com preocupações a sério, e não apenas com aquelas que lhe dão mais sounbdbyte entre (lembram-se do anúncio?) punks e freaks, skaters e góticos, dreads e tigresas, okupas e hippies, ravers, rockabillies e nadistas em geral. Por favor, não deixem morrer o Bloco de Esquerda – o verdadeiro, cheio de revolta, divertidíssimo, inútil. A política portuguesa ficará muito mais pobre e eu perderei uma das minhas mais estimadas vítimas de bullying.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")
NS', 30 de Julho de 2011
(imagem: © www.psacores.org)
July 24, 2011
Aplausos para a Católica

É claro: a maior parte do que tenha a ver com o Verão e a sua indumentária é uma pequena tragédia. Um homem põe-se a pensar na economia, decide que vai voltar a dar uma oportunidade aos saldos, onde há dez anos não consegue comprar uma camisa, e arrepende-se logo na primeira loja em que entra. Aparentemente, nos primeiros dois dias houve belíssimas pechinchas: fantásticas camisas de 140 euros vendidas a 130 e gloriosos pares de calças de 160 praticamente oferecidos por 149,99. Ao fim de uma semana apenas, porém, é a desolação. Ainda Agosto vem longe e já está tudo com 60 por cento de desconto. Por outro lado, está também tudo remetido a uma prateleira sombria e mal arrumada, para assegurar que o pelintra em causa se dá conta da sua pelintrice – e, principalmente, o espólio resume-se a calças às riscas com pespontos em vermelho-vivo, camisas com bolas cor-de-laranja combinadas com quadrados roxos (perdão, "xadrez lilás") e, quanto ao resto, muito pólo, muito calção e um ou outro téni (não vale a pena telefonar, sr. revisor, é "téni" mesmo que eu quero dizer).
No fundo, e a partir do momento em que começam as promoções, já só há lugar a três tipos de homem em Lisboa: o engravatadinho da gestão de produto, o street-wearer do assalto à navalha e o betinho do sapato de vela e crocodilo ao peito. Tudo o resto fica confinado a zonas de fronteira, a limbos, a terras de ninguém – e, como se trata de franjas incaracterísticas, ocupadas por gente desprovida de carisma, os designers não encontram outra solução senão ocupá-las com roupa de brincar. Bem vista as coisas, não há camisa que não tenha uns números, uns dizeres, uns bonequinhos. Não há calças que não tenham uns botões nos sítios mais surpreendentes, uns quase-rasgões nas coxas, umas faixas que parecem cintos, presas às carcelas como se fossem cintos, com fivelas iguaizinhas às fivelas dos cintos, mas que na verdade não abrem nem fecham – são apenas para enfeitar. E não há t-shirt que não tenha uma marca gigante, a silhueta de uma planta de cannabis ou mesmo uma frase de andaime, apesar de tudo preferível a um lema de vida (a não ser nos casos em que os dois coincidem).
Se se trata de uma mulher, nenhum problema: procurando bem, há alternativas. Se for um gay, idem aspas: mais ou menos extravagante, há sempre alguma macaquice enquadrável no largo espectro de combinações que o género autoriza. Já um hetero tem dificuldades. No essencial, e para conseguir comprar duas camisas, um homem tem de sair de sair de casa no dia anterior, disposto a fazer fila à porta do centro comercial e deixando sobre a mesa da sala um bilhete dirigido à mulher e aos filhos: "Não sei quando volto. Se demorar, não se prendam. Contem a minha história." Ora, eu não tenho tempo para isso – e, se tivesse, não era a isso que o dedicava. Por outro lado, suponho que muitos outros não tenham tempo também, caso contrário não se encontrariam cada vez mais homens de Lisboa passeando na rua com jeans e chinelos, arranjo sobre todos os outros plausível a partir da roupa de brincadeirinha a que os famigerados saldos nos limitam.
Os chinelos. Se me perguntarem qual é, de todas as soluções de indumentária ao alcance de um ser humano, aquela que eu nunca usarei na rua, então cá vai: são os chinelos. Grandalhões ou disfarçadinhos, cor-de-laranja como havaianas ou pretos como os mais sofisticados sapatos italianos, combinados com bermudas às flores ou, o que é o pior de tudo, com calças de ganga – não há um par de chinelos que um homem possa usar na rua sem se transformar de imediato num parolo histérico. Perguntam-me: "Mas estás tonto, ou quê? E se estiverem quarenta graus, continuas a achar isso?" Sim, continuo: até sessenta graus, acho uma parolice histérica. Para mim, é muito simples. Um homem põe uns chinelos para sair à rua e logo deixa de ser um homem para passar a ser outra coisa qualquer: um adolescente em crise de género, um interno do Júlio de Matos em precária ou uma personagem dos Morangos Com Açúcar evadida da telinha. Por favor, não me obriguem a ver pés de homens. O último homem com pés bonitos de que me lembro era o Liedson – e mesmo esse tinha o preocupação de, ao sair para a rua, calçar uns pitons. As nossas escatologias são para exibir em casa.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")
NS', 23 de Julho de 2011
(imagem: © www.psacores.org)
July 17, 2011
Crónica política

Tenho usado os Açores, neste espaço, como o epítome da terra antiga e decente. Faço-o às vezes por questões racionais, muitas vezes por questões emocionais e uma vez por outra por questões puramente lúdicas, que amiúde são as mais relevantes de todas. O facto é que, enquanto por aqui, no continente, vamos discutindo os solavancos próprios de uma bancarrota evitada in extremis, nos Açores começam a reunir-se as condições ideais para uma golpada política de dimensões latino-americanas. E, como nem sempre a decência geral se tem revelado suficiente para blindar a democracia açoriana dos seus velhos inimigos, é importante que António José Seguro e Francisco Assis, agora que se preparam para discutir o futuro do partido que esteve no poder em Portugal nos últimos seis anos e que está no poder nos Açores há quinze, se definam sobre se pretendem ou não permitir a dita golpada.
Curto resumo dos acontecimentos. A Sexta Revisão Constitucional, publicada em 24 de Julho de 2004, impunha aos Açores e à Madeira a aprovação de um novo Estatuto Político-Administrativo. A Madeira, onde os imperativos da República gozam de pouca popularidade, fez uma primeira investida e deixou cair o processo. Os Açores determinaram que respeitariam a Constituição – e de imediato deram início ao debate. Uma das regras a incluir dizia respeito aos mandatos do presidente do Governo Regional, que passavam a estar limitados a três. Problema: Carlos César já estava no terceiro mandato, pelo que conseguiu levar à aprovação uma norma transitória, redigida por ele próprio, em que se previa que, caso a publicação do novo Estatuto em Diário da República ocorresse durante o terceiro mandato do presidente, então este estaria autorizado a um quarto mandato ainda.
As coisas, como se sabe, acabaram por decorrer aos tropeções. Quando o novo Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores foi definitivamente aprovado, já havia sido alvo de vetos prévios do Tribunal Constitucional e do próprio Presidente da República. Pior: no dia em que foi publicado em Diário da República, Carlos César já não estava no seu terceiro mandato, mas no quarto, começado há pouco tempo. E é precisamente com recurso a esse inesperado sobressalto cronológico que alimenta agora o tabu – o qual vem deixando a própria oposição suspensa – sobre se candidata ou nas eleições legislativas regionais de 2012. Afinal, a ausência de letra da lei sobre um quinto mandato pode ou não permitir a César vinte anos de exercício do poder, incluindo uma maior degradação ainda da sociedade civil, há tantos anos habituada a transaccionar o voto por empregos públicos, subsídios à subsistência ou mesmo apenas passeios de barco?
Não pode. É claro que não pode: a letra da lei não o proíbe, mas o espírito da lei impede-o abundantemente. Só que esse impedimento pode apenas vir a ser decretado pelo Tribunal Constitucional – e, nesse caso, depois das eleições, não antes. Donde resulta que Carlos César vai fazendo a sua parte na construção de um cenário que lhe permita ganhar as eleições para o PS – porque de facto ganharia – e, depois, um pouco à maneira das novas dinastias republicanas, ser obrigado a legar o poder a um dos seus putativos sucessores (Vasco Cordeiro, Sérgio Ávila ou José Contente), qualquer um deles, dizem as sondagens, destinado a ser esmagado nas urnas pela líder da oposição, Berta Cabral. Alguma da comunicação social do arquipélago, de resto, já vem fazendo a sua parte também, dando eco à ideia, não por acaso cada vez mais acarinhada pelo presidente, de que, de qualquer maneira, as legislativas são um sufrágio para a Assembleia Regional, não para a Presidência do Governo. E ademais, como todos sabemos, há manigâncias a que a distância geográfica, ainda que por preguiça, traz uma estranha, difusa, mas ainda assim efectiva legitimidade política.
Ouvir da parte de Assis e Seguro a garantia de que não deixarão os Açores caudilhizar-se, como se calhar a Madeira se caudilhizou, seria tranquilizador para os açorianos que persistem ciosos da sua democracia. Mais do que isso: seria uma garantia de que as eleições de 2012 decorreriam em ambiente respirável, sem as chantagens emocionais e as habilidades políticas que começam a insinuar-se no horizonte. Bem basta que no actual programa do Governo da República não conste uma palavra sobre as regiões autónomas, não?
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")
NS', 16 de Julho de 2011
(imagem: © www.psacores.org)
July 10, 2011
Cenas da vida no campo

Campónio encartado, dou por mim, ciclicamente, a caminho de uma dita "unidade de turismo rural" escondida atrás de alguma montanha, no meio de uma floresta, no fundo de uma herdade. Raras vezes a experiência redundou noutra coisa que não em fracasso. E, no entanto, torno a ter uns dias livres, confiro a impossibilidade de dar um salto aos Açores – onde continuo sem descobrir como posso evitar que os melros pretos me comam os tomates de capucho – e já aí estou de novo à procura de uma (adoro esta palavra) unidade. Gosto razoavelmente de bichos, gosto bastante de árvores, gosto muito de espaços abertos e gosto ainda mais das gentes do campo. Gosto, preciso delas, deles, disso. E não é por, passados dois dias apenas, estar já a morrer de saudades da cidade, de bueiros por onde saem fumos pestilentos, de inspectores da EMEL e de esquinas onde os rapazes urinam de pé e as raparigas como calha, que deixo de voltar ao chamado turismo rural na oportunidade seguinte.
Agora, que há meia dúzia de gestos de caridade com que os proprietários dessas (cá vai outra vez) unidades podiam prevenir tais saudades, tão inesperadas como absurdas para um campónio encartado, isso há. Por exemplo: podiam evitar apresentar-me uma sanita velha, com um daqueles tampos rachados que dão beliscões quando nos sentamos, como uma pérola do mobiliário pós-vitoriano, apenas conservado em resultado do empenho dos proprietários e do sereno tráfego intestinal dos visitantes. Podiam apresentar-me o quintal, e até chamar-me a atenção para o monte de silvas ao canto, sem começar de imediato a declamar odes às amoras que ele produz e às compotas que com elas se fazem, se ainda por cima estamos em Maio e nem sequer em flor as silvas estão. E podiam, já agora, evitar mandar-me tomar banho antes de entrar na piscina natural, na presunção de que trago comigo suficientes micróbios para contaminar as rãs com que tenho de nadar e o mosquedo que, ao longo de toda essa aventura, sobre nós esvoaçará.
De resto, e muito honestamente, não há paciência para os moderninhos de Lisboa que a si próprios se transformaram em anfitriões de turismo rural. Não há paciência para o seu cosmopolitismo bacoco, para a sua contemplação ostensiva, para a sua pose missionária. Nem quero saber se deram o berro, se decidiram ter filhos em ambiente mais saudável, se apenas perderam o emprego e não tiveram outra solução senão pegar nas terras que um tio velho lhes deixara. Muitos anfitriões de turismo rural que conheço nunca plantaram uma batata e, no entanto, asseguram-se mais campestres do que um pastor da Serra D'Aire. Ao pé de um anfitrião de turismo rural português, até um camponês de Trás-Os-Montes se sente culpado por ter um cartão multibanco e um telemóvel de carregamentos. Para além de tudo, há-de ser comedor de carne, utilizador de carro e mesmo utente de um centro de vacinação – vai ter mas é de ouvir o sermãozinho todo, que não é melhor do que os outros.
Aliás, não há nada de que o proprietário de uma unidade de turismo rural portuguesa goste mais do que de falar durante a tarde inteira e de ser ouvido durante a tarde também. E o script é simples. Na primeira hora, todos eles são contemplação, compostagem, espírito blue. Na segunda hora, todos eles são neurose, protesto contra as limitações da região e lamento por não ser possível combinar o melhor do campo e o melhor da cidade numa vida só. E na terceira hora, vistos os nossos braços levemente abertos de quem diz "Ouça, meu bom homem, minha boa senhora, deixem-nos gozar um bocadinho o cheiro destas oliveiras, que amanhã já temos de fazer-nos à estrada", todos eles são fundamentalismo, repreensão velada e julgamento definitivo sobre o quão aquém nós estamos de tudo aquilo, sobre como somos ignorantes e brutos e assassinos e indignos do seu esforço, da sua piscina natural, do seu silvado fértil, da sua sanita beliscadeira.
E, porém, no ano seguinte estou a caminho de uma nova unidade de turismo rural, disposto a pagar mais duzentos e trezentos euros por duas noites mal dormidas. Já saio de Lisboa aborrecido, para dizer a verdade. Mas, mais dia menos dia, encontro uma que tenha tomates de capucho – e, então, talvez o anfitrião me ensine a protegê-los dos melros pretos. Ainda não experimentei os métodos dos moderninhos.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")
NS', 9 de Julho de 2011
(imagem: © www.azinhalturismorural.com)
July 3, 2011
Pingue-pongue aos pontapés

De férias durante um período não necessariamente correspondente às semanas em que esta coluna esteve ausente, dei-me conta, a certa altura, de que o Sporting disputava o playoff do campeonato nacional de futsal. E, não só os meus consócios celebravam em delírio cada golo marcado no dito playoff como, ainda por cima, a coisa viria a durar a quase totalidade desses dias em que eu devia estar a descansar do trabalho, dos calores do debate e, principalmente, do jogo do pontapé na bola, que de tanta melancolia me tem preenchido ele.
Fiquei perplexo. Por um lado, e determinados a proporcionar ao mundo uma prova cabal do quão baixo descemos, os meus consócios demonstravam considerar o futsal uma modalidade desportiva digna de celebrações. Por outro, e a julgar pelo nível de euforia, o futsal insinuava-se de repente como um ressarcimento, ainda que vago (e, mesmo assim, não sei), pelas agruras acumuladas no futebol a sério ao longo dos últimos nove anos. Acarinhei a perplexidade durante uma data de dias, enquanto se realizava aquela desconcertante caminhada em direcção a tão pequenina glória. E depois, incapaz já de continuar perplexo, decidi ficar apenas chateado.
Para quem não sabe, o futsal é a aquela coisa que algumas senhoras mais antigas talvez ainda confundam com futebol, mas que no fundo é sobretudo a única "versão" do "futebol" (notem-se as aspas) que os homens da nossa idade, com o abdómen e consumo médio de nicotina dos homens da nossa idade, conseguem jogar. Disputa-se num campo pequenino, que com esforço até somos capazes de percorrer de uma vez só – e, vistos ao longe, os seus praticantes parecem como que murganhos com tosse convulsa, erguendo e voltando a erguer os seus rabos de croissant-lovers, numa sucessão de saltinhos destinada sobretudo a dar a ideia de que aquilo é uma enorme correria.
Por um lado, é de facto uma enorme correria. Por outro, também o futebol de praia, o corfebol e o jogo do mata são enormes correrias, e nem por isso se reclamam substitutos para o futebol. Porque é que o futsal o faz? No fundo, o futsal está para o futebol como as damas estão para o xadrez: não arte ou profundidade, mas mesmo assim ninguém fica sem comer peças ao adversário. Má comparação, é verdade – apesar de tudo, as damas e o xadrez jogam-se em tabuleiros do mesmo tamanho. Pronto, o futsal está para o futebol como o mini golfe está para o golfe a sério: os campos são mais curtos, mas mesmo assim onde um tem lagos e bunkers de areia, o outro tem dinossauros e montanhas-russas que engolem as bolas e as levam para longe também. Má comparação, é verdade – apesar de tudo, o golfe e o mini golfe jogam-se com bolas das mesmas dimensões.
Pronto, o futsal está para o futebol como o pingue-pongue está para o ténis: o campo é mais pequeno, as bolas são mais frágeis, as raquetes parecem de brincar, mas mesmo assim há uns maduros que se especializaram naquilo, um país em vias de desenvolvimento determinado a reclamar os feitos deles como espelhos da glória pátria e, enfim, um povo inteiro a arfar como se fazer efeitos em bolas de plástico num pavilhão com uma dúzia de chineses bocejantes nas bancadas fosse o mesmo que preparar um ponto no fundo do court, subir à rede, fazer dois vóleis, cortar um amorti, ganhar o Wimbledon e provocar um sobressalto sensual à rainha perante milhões de espectadores distribuídos pelo mundo inteiro (China incluída). Chega? Não chega.
Portanto, não me venham com cantigas. Ganhar ao Benfica nunca é mau, no futsal como no curling ou na pelota basca. Mas ganhar ao Benfica no futebol não tem comparação com nada – e, portanto, não tem comparação com ganhar ao Benfica no futsal também. De resto, ganhar ao Benfica é capaz de estar um tanto sobrevalorizado, nos dias que correm. Ou muito me engano, ou vão direitinhos, os benfiquistas, pelo mesmo ralo em que fomos no ano passado. Ah, é verdade: agora estou a falar de futebol a sério, não de futsal. Mas quantas vezes é que eu tenho de vos dizer isto? Eu estou-me nas tintas para o futsal.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")
NS', 2 de Julho de 2011
(imagem: © www.visaodemercado.blogspot.com)
June 19, 2011
Eu quero resgatar o domingo
Bem vistas as coisas, era quase sempre domingo – e agora que eu me ponho aqui a escrever, sentado nesta cozinha repleta de luz enquanto os foguetes explodem ao fundo e a cada um deles a banda filarmónica retoma a sua melodia festiva, celebrando o Bodo e celebrando o domingo, lembro-me desses dias e de tudo o que de cada um deles fazia um dia diferente dos outros. Para começar, não havia textos para entregar, telefonemas para fazer, e-mails para esgrimir. Não havia lutas para travar. Era domingo, dia do Senhor – e aos domingos, independentemente do senhor de cada um, os homens descansavam.
Eu não era um homem, claro – era apenas um miúdo –, mas aos domingos acompanhava com eles, homens e mulheres. De manhã, vestíamos cada um a sua melhor toilette, tantas vezes ponderada durante a semana inteira, e íamos agradecer o dom da vida (chamávamos-lhe "o dom da vida", e ainda hoje não tenho a certeza de que isso fosse tão ridículo como eu fiz questão que vos parecesse agora). Depois, e ao longo da tarde, vogávamos pelas estradas, de carro, a ouvir o relato. Às vezes, visitávamos pessoas, doentes e saudáveis: gente que se repetia de domingo para domingo e gente de que eu nem sequer me lembrava, que cheirava de maneira diferente e que tinha filhos que cheiravam de maneira diferente também. Outras vezes vogávamos apenas, ouvindo o relato – e, pelos passeios, havia homens e mulheres de braço dado, prezados e solenes, quase namorando, celebração sobre todas as outras apropriada a um domingo.
Com sorte, conseguíamos autorização para manter a toilette durante o dia inteiro – e, em faltando a sorte, ainda nos restavam, por ordem, o desleixo, a dissimulação e a desobediência civil. Agora que penso nisso, talvez venha daí a minha aversão à praia. Raramente era dia de praia, o domingo. Domingo era dia de vestir uma camisa branca, de usar os melhores sapatos – e à praia, como se sabe, nunca ninguém foi calçado com os melhores sapatos. Era um tempo em que as pessoas gostavam de andar bonitas, esse em que havia domingos e em que, para andar bonito, não era preciso que se casasse alguém, que houvesse uma boda, que se tirassem fotografias. Bastava ser domingo e as pessoas estarem vivas e ninguém ter dúvidas de que no dia seguinte seria segunda-feira e dentro de alguns dias domingo outra vez.
E, agora que me sento aqui a escrever, nesta cozinha repleta de luz mas apesar disso exalando cansaço e tensão, exalando textos e telefonemas e e-mails, aqueles foguetes que continuam a explodir ao fundo e aquela banda filarmónica que a cada foguete retoma a sua melodia festiva, mesmo que desafinada, parecem-me um resto de civilização: o derradeiro resquício do que um dia houve de decência e de brio e de rectidão e de elegância, o último estertor de uma coisa antiga e tragicamente perdida. O domingo. Os domingos em que havia Bodo e tocava a banda, os domingos em que apenas se passeava a ouvir um relato de futebol, os domingos em que nem jogo havia mas nem por isso os homens e as mulheres e as crianças deixavam de calçar os seus melhores sapatos, que depois guardavam numa caixa, no fundo do guarda-fatos, à espera do domingo seguinte.
Perdemos os domingos. Perdemo-los quase todos. Para uns, virou um dia igual aos outros. Trabalha-se aos domingos como se trabalha noutro dia qualquer. Aliás: trabalha-se melhor aos domingos, rendibilizando os seus silêncios, louvando a sua falta de deadlines. Para outros, virou dia de ócio puro, dia de não fazer nada. Faz-se nada aos domingos como se faz nada aos sábados. Faz-se nada aos domingos como se faz nada nos outros dias todos também. Em todo o caso, valem zero, esses domingos. Para domingos desses, ninguém precisa de ir ao fundo do guarda-fatos buscar a caixa onde se guardam os sapatos de domingo.
Resgatar os domingos: eis tudo quanto nos resta. Tenho a certeza de que a senhora dona Troika compreende: nada disto vai a sítio algum enquanto as coisas não forem postas no seu devido lugar. Dai-me, pois, uma camisa branca e uns sapatos de ir à missa, que em nada mais eu consigo já descortinar a rectidão – e, se acharem que esse milagroso encontro é caso para chamar a filarmónica, pois não serei eu a opor-me. Faz favor de proceder ao foguetório.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")
NS', 18 de Junho de 2011
(imagem: © www.timeofherlives.com
June 16, 2011
Homens que matam outros homens só com o olhar

Podem ser doutores e engenheiros, mas muitas vezes são escriturários, trolhas, mesmo engraxadores. Tive um tio-avô que tinha essa qualidade e que manteve essa qualidade mesmo depois de se reformar e de, efectivamente, passar a engraxar sapatos na Praça Velha. Já fiz dele personagem num conto, embora manipulando-lhe as idiossincrasias. O facto é que andava por ali com uma caixa de madeira na mão, dando-se ares de exagerada importância – e que, quando era chamado a uma engraxadela (diz-se "engraxadela?"), não andava, mas desfilava, até finalmente agachar-se em frente ao cliente, estender um pano de camurça no chão, dispor sobre ele os seus utensílios, endireitar as costas e, então sim, começar o trabalho. Talvez não fosse bem assim. Talvez seja eu quem o recorda dessa maneira, à distância de mais de trinta anos, quase tantos quantos tenho de memória. Talvez David Machado de Sousa fosse mesmo apenas mais um daqueles pobres diabos de cuja simples existência os transeuntes se riam. Mas havia – juro que havia – homens de respeito que se punham sobre ele, com o pé esticado na direcção da sua escova, e em vez do habitual esgar de nojo, como se se preparassem para esmagar uma barata, metiam um ar quase urgente, de quem teme ficar sem o pé, o resto da manhã definitivamente consagrado à procura desesperada da aprovação daquele homem.
De forma que David Machado de Sousa tinha isso que às vezes têm os doutores e os engenheiros, mas outras vezes quem tem são os escriturários, os trolhas, mesmo os engraxadores como ele: a capacidade de cerrar o sobrolho e de imediato ganhar ascendente sobre o homem em frente. Já aqui falei dos méritos da snobeira. Os pobres efectivamente respeitam de outra forma aqueles que conseguem forjar-se snobes. Chamam-lhes "selectos", os pobres – e de imediato se dispõem a ir com eles até ao fim do mundo, a elegê-los para a Junta e para a Assembleia da República, a descer com eles até às trincheiras. Coisa diferente é esta, porém. O que se desprende destes homens não é altivez. O que se desprende deles é terror. É poder. E eu, inevitavelmente, morro de inveja deles. Morro de inveja deles e, apesar de ter tantas contas a acertar com eles, após meia vida de risota (minha) e de reprovação (deles), dou por mim a assobiar para o lado sempre que tropeço numa fragilidade que possa comprometê-los. O facto é que cultivam quase sempre uma saudável ignorância, os homens que franzem o sobrolho. Para começar, julgam-se mesmo importantes, o que muitas vezes é mais do que suficiente para a morte ao artista. Mas eu duvido que um só deles tenha a prestação do carro em atraso. Sei que nem um só deles se abstém nas eleições. E nunca vi um só deles deixar ir de táxi para casa um familiar que aterre no aeroporto.
Não têm sentido de humor nenhum, esses homens que franzem o sobrolho. Todo o sistema sobre que erguem o equilíbrio das suas vidas é um equívoco delicado e instável, à espera apenas do primeiro sopro do vento. E, porém, a mentira anda demasiado menosprezada, nos dias em que vivemos. Talvez tenha chegado, enfim, o tempo de voltarmos a dar à mentira o seu devido valor. E talvez tenha chegado o tempo de relativizarmos o sentido de humor também. Há-de haver uma altura na nossa vida colectiva, tanto quanto na nossa vida pessoal, em que simplesmente já teremos rido o suficiente por uns tempos. E eu pergunto-me se o tempo não será este: o tempo de nos levarmos enfim a sério, ao contrário do que nos aconselham os cânones oficiais da inteligência e as práticas do cosmopolitismo moderninho. Afinal, andamos agora há décadas à gargalhada: que somos tontos, que o país que construímos é tonto, que a espécie que representamos é tonta e que mais tontos ainda seremos se não nos rirmos da nossa própria tontice, da tontice do país, da tontice da espécie. E o mais provável é que tenha agora chegado a hora de estendermos o nosso paninho de camurça no chão, dispormos sobre ele os utensílios, endireitarmos as costas, deitarmos mãos ao trabalho – e, ao primeiro que se puser com risinhos, cerrarmos o sobrolho, de forma a que se sinta pequenino, apavorado, urgente da nossa aprovação.
Contra mim falo.
Assim como assim, já não temos cá o Bloco de Esquerda. Alguém vai ter de zelar pela decência do ciclo que agora se inicia.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")
NS', 11 de Junho de 2011
(imagem: © www.azeferino.web.simplesnet.pt)
June 4, 2011
Boicote cívico

Dizer que a fundação da SATA Air Açores foi uma prova da tenacidade açoriana do pós-Guerra é constatar uma evidência. Creditar à SATA Air Açores uma responsabilidade significativa no desenvolvimento da autonomia açoriana é pecar por defeito. À SATA Air Açores devem os açorianos, em parte, a identificação entre as ilhas. À SATA Air Açores devem os portugueses, em parte, a descoberta dessas ilhas. Mas à SATA Air Açores, ou à sua subsidiária SATA Internacional (ambas empresas públicas, parcialmente sustentadas pelo orçamento regional), devem os açorianos, os portugueses e quem quer que visite os Açores uma colecção expressiva de injustiças – mais expressiva ainda desde que, com o apoio da capital, uma pequena parcela da capacidade dos voos Lisboa-Açores-Lisboa passou a dispor de tarifas reduzidas.
Durante décadas, a SATA Internacional, que tinha, tivera ou teria rotas para a América, a Madeira ou as Canárias, exigiu um gateway para Lisboa. Os açorianos juntaram-se-lhe em coro, porque acreditavam que a concessão desse gateway à companhia regional – que poderia receber os passageiros numa ilha e depois distribuí-los pelas restantes – resultaria numa efectiva concorrência à TAP, levando à redução generalizada dos preços. Ingénua convicção: para ganhar a rota de Ponta Delgada, a SATA não hesitou em coligar-se com a TAP, passando a voar em code-share com ela para as (agora) quatro rotas Lisboa-Açores-Lisboa – e, entretanto, a joint-venture manteve desde o princípio todas as desvantagens de um cartel, sem alguma vez oferecer um só dos benefícios de um verdadeiro code-share.
Ou seja: não só o preço das passagens se manteve escandalosamente alto (grosso modo, entre € 190 e € 390 para um voo entre o continente e as ilhas, dez vezes mais do que aquilo que um português pode gastar para ir a Berlim ou a Dublin), como os direitos adquiridos por um passageiro na relação com uma das companhias se mantêm até hoje por reconhecer pela outra. Exemplo aleatório: um cliente regular da TAP, com cartão de passageiro frequente "Silver" e um saco e golfe entre as malas, tem direito, num voo "code-share" (notem-se as aspas) operado pela TAP, a check-in prioritário, 35+5 kg de bagagem, 15 kg extra para o saco desportivo e duas publicações para leitura a bordo; pelo contrário, e se, apesar do "code-share", a aeronave for SATA, espera sentadinho, tem direito a apenas 20+5 kg de bagagem, precisa de pedir para levar o saco de golfe (o que fica sujeito a aprovação) – e, se quiser ler, pois que leia a revista da companhia.
A situação é injusta há uma década. Paciência. Para um forasteiro, visitar as ilhas não tem preço. Para um local, sair de vez em quando da ilha menos preço ainda tem. Só que, já este ano, Carlos César fez contas ao mandato, decidiu-se por um último brilharete e garantiu que 10% dos lugares de cada avião fossem ocupados por tarifas de € 88, € 99 ou € 146 + taxas. Pois a medida não tardou a explodir, também ela, na cara dos passageiros: não só conseguir esses bilhetes se verificou um suplício, como (sobretudo) a SATA – e isto mesmo tendo ganho fluxo e facturação com a mudança – passou a usar a "benesse" como argumento emocional. Resultado: se há 25 pessoas a voar a preços reduzidos, então nem uma das 250 que ocupam o avião pode, por exemplo, ultrapassar sequer em 0,5 kg o peso limite da sua bagagem. Por cada quilo, como é de lei, são sete euros – e ainda há dias eu vi um passageiro pagar 10,5 euros depois de lhe ter sido cobrado 1,5 kg de excesso, rigor que nem a TAP tem coragem de praticar.
Os Açores são uma das regiões economicamente mais deprimidas da Europa ocidental. Para muitos passageiros SATA/TAP, dez euros fazem mesmo a diferença – e cem podem ser o fim do mundo. E o que faz a SATA? Vampiriza o erário público, legitima a manutenção das tarifas altas, colecciona novas subvenções, aplica todas as coimas que pode aos passageiros (a bagagem é apenas um dos expedientes desta nova sanha taxatória) – e depois ainda se põe a voar para a Madeira ao preço da chuva. Ah, sim, esquecia-me: esta mesma SATA, sustentada pelo erário público açoriano, voa para o Funchal por € 68. Pois eu só vejo uma solução: o boicote colectivo. Por mim, tão depressa não torno a voar na SATA Internacional. A SATA Internacional, neste momento, é um insulto ao meu povo.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")
NS', 21 de Maio de 2011
(imagem: © www.infraton.i.olhares.com)
May 23, 2011
Eu, inútil, me confesso

ACTO UM. "É um avião, isto..." Há uma certa displicência no olhar dele, mas forçada: o que está por detrás dela é amor. Estamos à porta da tenda, a fumar. Lá de dentro, ecoa "a banda": um teclista e um guitarrista, daqueles que tocam Dire Straits com três acordes só. Vimo-nos duas vezes na vida, penso, e o mais provável é que ele tenha antipatizado tanto comigo como eu me esforcei por ignorá-lo. Une-nos agora isto: ambos aborrecidos de morte, amaldiçoando os casamentos ao sábado e as suas longas festas. E, porém, ele esforça-se por estragar a aproximação. "É um avião, isto…", diz, olhando para o seu próprio carro como o poeta se deslumbra com o imenso. Digo "Hum-hum", apago o cigarro e volto para dentro, mergulhando nos três acordes de Walk Of Life, o noivo já sem casaco, a noiva fazendo pontaria com o bouquet à amiga mais encalhada, os moços das camisas pretas e gravatas amarelas permitindo-se, enfim, certas liberdades.
ACTO DOIS. "São uns selvagens. Estacionam em qualquer lado", suspira, manobrando com dificuldade. É sexta-feira à noite e, como de costume, Lisboa tem o bulício de uma segunda-feira de manhã. No táxi está fresco, porém – e a música que ecoa das colunas é suave. Reconheço-lhe o sotaque do Ribatejo, e é por aí que pego. "É de onde?" E ele, despachando e logo recentrando: "De Santarém. Mas houvesse mais como eu e não era nada disto! Saio sempre de casa com tempo. Nunca estaciono mal. E olhe que, às vezes, perco ali uma hora, uma hora e meia…" Volto eu: "O meu pai cresceu em Torres Novas." E ele: "… e não é por causa do trânsito. É por causa do carro mesmo. Um risquinho numa jante e fico logo doente! Tenho-o há doze anos e nunca bati, nem sequer toquezinhos a estacionar. Aqui há uns tempos…" Lentamente, as suas palavras vão-se diluindo, até se tornarem ininteligíveis. Acabo por desligar.
ACTO TRÊS. "Atão, estás contente com a carrinha?" pergunta o grandalhão. Acabámos de bater o tee shot do 11, um par 5 comprido, ao longo do qual se fazem os primeiros balanços do dia. Lá de cima, o sol derrete tudo o que pode: pescoços, garrafas de água, swings. Faltam-nos ainda oito buracos, mas o 11 é o tee mais elevado do campo, pelo que a hora é de descomprimir. "Epá, ganda máquina!", responde o velho. "É um avião, não é?", insiste o grande. A metáfora repete-se. E volta o velho: "Ui. É que basta um cheirinho. Um gajo carrega um nadinha no acelerador e pchiiiuuu!" "É a melhor série da Mercedes! Mesmo eles dizem." "A tua também é uma 5, não?" "Sim, mas de 240 cavalos." "O quê, não é uma 2200?!" "Claro. Mas com 240 cavalos. Agora, para aquilo que tu precisas, 214 é suficiente." Eu estou lá à frente, com um wedge na mão, a sonhar com birdie depois de green em 3. E de repente dou por mim a pensar: "Quantos cavalos terá o meu carro? Cilindrada eu sei: 1600. Mas quantos cavalos eram?"
EPÍLOGO. É que não sei mesmo. Imagino que tenha uns cem, cento e vinte, o que quer dizer que basta ao meu amigo mais velho um cheirinho de acelerador e pchiiiuuu! – lá fico eu a comer o pó dele. Ainda bem que estou a jogar melhor do que ele neste sábado, porque duas derrotas no mesmo dia é mais do que o meu pobre ego pode aguentar. De resto, resta-me morrer de inveja de alguém capaz de manter uma conversa "sobre carros". Sempre tive carro. Sempre achei graça a alguns carros em particular – e, em vários casos, acabei por comprá-los. E, no entanto, continuo a olhar para um par de pistons aos saltos e a julgar que se trata de magia. Vejo uma donzela em apuros, com os quatro piscas ligados na berma da estrada, e não tenho mais para oferecer-lhe do que o meu corpo. Todas as semanas sou multado: por mau estacionamento, por falta de inspecção, por falta de selo. A minha ideia de fim-de-semana infernal inclui uma ida à praia, uma fila de duas horas para cada lado, um sufoco para estacionar na poeira e, durante aquele bocadinho efectivamente sentado sobre a areia, a leitura completa do catálogo 2011 da BMW. Não percebo de carros, não adoro carros, não sei falar sobre carros. E, bem vistas as coisas, as multas são um preço bastante módico a pagar por esse privilégio.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")
NS', 14 de Maio de 2011
(imagem: © www.zazzle.com)


