Joel Neto's Blog, page 107
December 18, 2010
A campanha do terror

Houve uma altura em que talvez se lhe pudesse chamar "um roubo". Agora, é outra coisa. A situação dos moradores dos bairros históricos de Lisboa, essa cidade encantadora, cheia de sol e de colinas, é neste momento insustentável. Em causa está, mais uma vez, o estacionamento dos automóveis.
No momento em que escrevo, acabamos de pagar, eu e mais uma série de vizinhos mal estacionados, noventa euros de multa cada um. Discutimos um bocado, mas apenas para desabafar: já sabíamos que, mesmo contactado pelos próprios funcionários, o supervisor voltaria a recusar-se a visitar-nos. Cinco minutos depois, puxámos das carteiras e organizámo-nos em fila. Pagámos as coimas, desbloqueámos os carros e fomos à procura de outro lugar ilegítimo qualquer, na esperança de que entretanto os tipos da Emel fossem almoçar, com ordens para visitar um bairro diferente durante a tarde.
De qualquer forma, estamos avisados: esta é a nossa semana. Virão cá todos os dias. Ordens superiores. De maneira que já tratámos todos de requisitar mais cheques: até sexta-feira (escrevo na segunda), vamos precisar de pelo menos mais quatro. No total, e na mais benigna das hipóteses, teremos pago quatrocentos e cinquenta euros cada um. Para alguns, noventa já eram suficientes para dar cabo do Natal.
Um de nós arriscou: "Portanto, a Câmara precisa de dinheiro para pagar os subsídios de Natal, não é?" E o pobre-diabo a quem cabe vir detonar diariamente a bomba (e que antes era forçado ao arrastão): "Não. Os subsídios de Natal foram pagos no mês passado." A frase seguinte, só a disse com os olhos: "Deve ser para outra coisa qualquer."
Já aqui escrevi sobre isto. Depois de uma centena de multas por estacionar o carro em lugares ilegítimos, estacionara-o, em desespero de causa, num lugar que, para além de ilegítimo, dificultava a passagem do carro do lixo. Resultado: os senhores da recolha espetaram-lhe uma sovela em cada um dos quatro pneus, certificando-se de que eu não voltava a fazê-lo. E eu não o fiz mais.
Mas contei aqui a história. António Costa, sob cujas ordens superiores actuam tanto a Polícia Municipal como a EMEL, escreveu-me um e-mail: tinha acabado de mandar abrir um inquérito interno, para apurar a veracidade do crime que eu denunciava, e ao mesmo tempo instaurara-me um processo a mim, para despistar a possibilidade de denúncia mal intencionada. Passaram-se dois anos – nenhuma notícia, nem do inquérito, nem do processo.
Entretanto, a situação piorou. Cada bairro de Lisboa tem os seus problemas (crescentes, todos eles). No meu, o Bairro Alto, continua a haver cento e cinquenta lugares de estacionamento para quatrocentos e cinquenta moradores com carro. Ao contrário do que acontece noutros bairros, a nossa zona ("Zona 11", tive de aprendê-lo) tem um raio de quatro ou cinco ruas apenas, pelo que estacionar cem metros ao lado dá multa também.
Agora, porém, não só os lugares legítimos escasseiam, como os lugares ilegítimos escasseiam também. Apesar da crise, o bairro está todo em obras, com andaimes e contentores e camiões de recolha de cascalho bloqueando ruas, passeios e recantos. Quem encontra um lugar para deixar o carro não volta a tirá-lo de lá durante três semanas. Se tira, o simples gesto de ir dormir a casa torna-se um sufoco. No dia seguinte, os contabilistas do senhor Costa estarão de volta.
Os meus amigos (bom, os meus "colegas) riem-se do meu desespero: "Morar num bairro fino dá nisso." Eu gostava de saber o que há de fino num bairro com as ruas esburacadas, cheias de merda de cão, cobertas por uma cama de garrafas de cerveja e em cujas esquinas há gente a urinar a noite inteira. Mas, sobretudo, gostava de saber o que há de fino num verdadeiro campo de batalha, onde pobres-diabos são enviados todos os dias, a troco de um ordenado de seiscentos euros por mês, para detonar bombas no quintal de gente desesperada.
Em Lisboa, não há limites para a prepotência. E se a vós, leitores do Porto e de Coimbra e de Castelo Branco e dos Açores, isto parece não dizer nada, sugiro que vos prepareis. Quem é que acham que o partido anda a preparar para meter em São Bento?
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")
NS', 18 de Dezembro de 2010
(imagem: © www.carmoeatrindade.blogspot.com)
December 13, 2010
Vida de artista

Não é preciso consultar os sociólogos, basta ir ao Eurostat: os portugueses não gostam de trabalhar. Trabalham que nem condenados quando emigram, mas porque se imbuem a si próprios de um certo espírito de missão. Assim que regressam a casa, não demoram a deixar-se contaminar pela indolência. Não sou eu que o digo: são os índices oficiais de produtividade. Regra geral, trabalhamos pouco e mal. Mas nem por isso deixamos de compreender a ética do trabalho – e é então que nos tornamos verdadeiramente divertidos.
Num dia típico, a primeira coisa que um trabalhador português faz é chegar atrasado ao trabalho. Se a hora de entrada é às oito, chega às oito e meia. Se é às nove, chega por volta de um quarto para as dez. Só o fazem aqueles que podem, mas por outro lado esses são os melhores: os que não podem hão-de arrastar-se o dia inteiro, ressentidíssimos por não poderem. Entretanto, a meio da manhã, há a pausa para o café. Os que não fumam têm azar: tiram só um quarto de hora. Os fumadores tiram meia hora inteira: quinze minutos para o café e quinze para o cigarro. Por esta altura, está quase a chegar a hora de almoço – e, como está quase a chegar, mais vale começá-la já. Em vez da uma da tarde, começa-se ao meio dia e vinte. Em vez do regresso às duas, regressa-se às duas e quarenta. E é se não for época de Natal, de Páscoa ou de Carnaval, dia da Mãe, do Pai, da Criança, de São João, de São Pedro, de Santo António ou de Pão Por Deus. Nesse casos, chega-se às três e quinze – e o café da tarde, aliás, também demora um pouco mais. Depois, e se for dia de levar os miúdos ao dentista, sai-se mais cedo. Em jogando o Benfica, nem vale a pena regressar do café.
Se pensam que caricaturo, têm razão: caricaturo. Se pensam que descrevo um cenário datado, não têm razão nenhuma: este Portugal continua a existir. Escapam os profissionais liberais, os recém-licenciados (ou seja, todos os licenciados até aos 40 anos, tanta deles a trabalhar em call centres ou a servir de escravos a analfabetos) e alguns ditos operários não qualificados. Mas nem estes escapam todos. Uns quantos têm a sorte de trabalhar para a administração pública. Esses trabalham menos ainda – e, se puderem, não deixam nunca de meter baixa (normalmente, por depressão), de meter "um artigo" ou, na primeira oportunidade, de se desenfiar, palavra sobre todas as outras portuguesa (mais do que saudade, podem ter a certezinha).
E, no entanto, não é isso que me diverte. O que me diverte é aquele momento em que o trabalhador português efectivamente trabalha. Porque é nele que, de repente, toda a sua ética de trabalho vem ao de cima. O momento em que um trabalhador português efectivamente trabalha é especial – e, quando esse momento milagroso ocorre, não deixa nunca de haver no semblante do trabalhador aquele ar compenetrado de quem está a fazer a coisa mais séria do mundo, mas entrecortado com disfarçadas bispadelas à volta, em tom de: "Olhem para mim a trabalhar. Não gostam de me ver trabalhar?" E os outros trabalhadores portugueses olham mesmo. Primeiro, porque percebem que se está ali, de alguma forma, a fazer história. Depois porque, quando for a sua vez de trabalhar, também quererão testemunhas. Uns aos outros, chamam-se "artistas". Um é um artista na canalização. O outro, mecânico, é um artista também. Em bielas e pistões, não há pai para ele.
Um normal dia de Lisboa, por esta altura, é feito de sete tipos à volta de um buraco, a ver trabalhar o artista a quem coube descer para reparar o ralo entupido. Dois têm ferramentas na mão, mas para se apoiarem. Um terceiro está atento – é o engenheiro. O quarto foi buscar as minis. Os restantes três são sobretudo testemunhas. Entretanto, chega mais um, este ao volante de um furgão de distribuição. Apita como um louco: "Mas interromperam a rua?! Não há direito. Eu estou a trabalhar, pá!" Até que uma das testemunhas lhe revira os olhos: "Nós também estamos a trabalhar!" Então, o distribuidor apeia-se, fecha o automóvel à chave, grita lá para trás, para a fila que se acumula: "Nada a fazer, os homens estão a trabalhar…" – e vai, enfim, beber uma mini com eles.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")
NS', 11 de Dezembro de 2010
(imagem: © www.sidemission.com)
December 4, 2010
Uma vida de brincadeirinha

Há pessoas que acreditam em Deus. Algumas, desprovidas de fé, acreditam noutras pessoas – e umas quantas até preferem acreditar em si próprias, o que é talvez o mais deprimente de tudo. Eu acredito no jogo. Sempre acreditei. Na infância, e quando descia sobre nós o nevoeiro, ensombrando o carácter dos homens e amalgamando o mundo todo numa só massa informe, pardacenta e desesperançada, confortava-me a ideia de que no dia seguinte, chovesse, fizesse sol ou permanecesse nevoeiro, tinha treino de futebol. E, entretanto, toda a minha vida tem vivida sob esse signo.
Ao longo dos anos, experimentei de tudo. Joguei ténis, fiz corridas, aprendi o snooker inglês, mudei para o bilhar às três tabelas, apaixonei-me pelo golfe. Nunca acreditei no jogo de casino, porque não há como acreditar nele: no fim, a casa ganha sempre mesmo. De resto, um casino tem poucas potencialidades nos domínios da superação. Aquilo em que eu acredito, na verdade, é na dimensão metafórica do jogo. Na brincadeira, sim (porque não?) – mas sobretudo na superação. Mesmos nos anos mais sombrios, em que a minha actividade desportiva se reduziu a pedalar numa bicicleta entre as quatro paredes de um ginásio, não deixei nunca de tentar pedalar mais do que o ciclista do lado. E o objectivo nunca foi propriamente pedalar mais do que ele: foi levar-me a mim próprio a pedalar mais do que ele – foi levar-me a mim próprio a superar-me mais do que qualquer outro conseguisse superar-se.
E, porém, mesmo a mim, jogador inveterado, esta crescente infantilização da vida adulta incomoda. Até porque ela não se limita ao exercício do jogo, de que vem tantas vezes disfarçada: alargou-se a verdadeiramente a todos os domínios do nosso quotidiano. Liga-se a televisão para ver um jogo de futebol (cá está o jogo) e, no intervalo, é-se metralhado com quinze minutos de publicidade a joguinhos de computador, a filmes do Harry Potter e a discos do Tony Carreira. Vai-se ao cinema e, para além do Harry Potter, o cartaz resume-se a filmes de animação, a histórias fantásticas com elfos e dragões e a filmes de acção em que os protagonistas fazem corridas com carrinhos cheios de ailerons e de kits. Liga-se a rádio e as estações estão divididas em duas categorias apenas: aquelas que passam Tony Carreira e aquelas que passam "música dos anos 80", toda ela muito divertida. Sai-se à rua e as raparigas estão todas vestidas com roupa brincalhona, com bolinhas e lacinhos e sapatinhos e sei lá mais o quê.
Resultado: brincadeira com fartura, superação nenhuma. Ainda no outro dia, e ao parar circunstancialmente num café ao lado de um jornal, surpreendi duas jovens jornalistas falando de Tony Carreira. Conhecia uma delas, mas muito vagamente, pelo que nem sequer as fui cumprimentar. E, no entanto, ali estavam elas: falando de Tony Carreira – e no seu tom nem sequer havia a velha sabedoria de redacção, do tipo: "Vá, vamos lá enganar o povo com mais uma peça ou duas sobre o Tony, que de alguma forma temos de vender as notícias verdadeiramente importantes." Não: elas efectivamente gostavam de Tony Carreira. Achavam-lhe piada, pelo menos. Divertiam-se com a sua música. Da mesma forma que, nos tempos de faculdade, se divertiam com Quim Barreiros, talvez: rindo-se dele – mas, em todo o caso, rindo-se cada vez menos.
E eu acho que um jornalista não pode ouvir Tony Carreira. Dir-me-ão (dizem-me sempre coisas deste tipo): "Gostos não se discutem." Era o que faltava. Gostos discutem-se, sim senhor. Não vejo mesmo, aliás, nada de mais discutível do que o gosto. E um jornalista não pode gostar de Tony Carreira. Um adulto não pode gostar de Harry Potter. Um homem não pode passar as noites de sábado a jogar ao PES com os amigos ou os domingos à tarde a fazer corridas com outros homens na Ponte Vasco da Gama, fugindo à polícia. E, se pode, então está explicado porque é que este mundo virou uma espécie de grande coutada para tunas e claques de futebol, juventudes partidárias e associações académicas. Infantilizámo-nos de vez – e, naturalmente, jogando no campo deles, perdemos por K.O..
Há anos que vimos apregoando todos, os supostos inteligentes: um homem não se pode levar muito a sério. Pois talvez devesse. Já era altura de pararmos com essa coisa do "explorar a criança que há em nós", não?
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")
NS', 4 de Dezembro de 2010
(imagem: © www.sidemission.com)
November 28, 2010
Conversa de escritor

Aqui há uns tempos, entrevistei um jovem escritor português. Desiludido, há muito que não entrevistava um escritor – e, não fosse anunciar-se desta vez "uma história", nem me teria ocorrido tal afazer. Acontece que o rapaz foi jantar lá a casa e disse coisas mais interessantes do que eu alguma vez o vira dizer aos jornais, denunciando inclusive as mais caricatas regras de engajamento do establishment que o consagrara. Não resisti. Perguntei-lhe: "Mas porque é que nunca dizes essas coisas nas entrevistas?" E ele: "Porque não mas perguntam." "E, se eu tas perguntasse, dizia-las?", tornei. "Claro que dizia", garantiu-me, todo corajoso (e não foi do vinho, porque ainda o jantar ia a meio e já a entrevista estava aprazada).
Foi uma decepção, claro. Quando propus o trabalho ao jornal em causa, não ouvi do outro lado senão aquilo que já esperava: "O quê? Esse gajo outra vez? Está tudo farto dele – e, além disso, não tem nada para dizer..." Contrapus: "Confiem em mim. Já sabem que não os deixo ficar mal. Isto vai marcar a actualidade literária." Pois não marcou. É óbvio que não marcou. Enviadas as perguntas por email, para o moço ter tempo de elaborar e tudo, andei a telefonar-lhe como um louco até ao último dia do dealine, lembrando-o da urgência. Na noite em causa, lá chegaram, enfim, as respostas. Eram as mesmas que ele dava em todas as entrevistas, independentemente das perguntas. No corpo do email, uma nota: "Desculpa, mas, pensando bem, é isto que eu acho sobre as coisas."
Na semana passada, ouvi a escritora francesa Catherine Clément no programa de Carlos Vaz Marques, na TSF – e, ao longo daqueles 50 minutos, não me lembrei de outra coisa senão do meu infeliz comensal. Vaz Marques, que actua no domínio das artes em geral, é o melhor entrevistador português. Sabe que a informação dos nichos se faz assim, doce e coadjuvante – mas, apesar da doçura, tira mais dos entrevistados do que metade dos seus colegas juntos. E, porém, nem ele poderia objectar a tal formatação. Do ponto de vista do espectáculo radiofónico, foi um sucesso: as respostas saíam todas disparadas, como se estivessem na ponta da língua. A tragédia é que estavam mesmo. Clément já as dera noutras entrevistas, com aquelas ou com outras perguntas. Todos os escritores as deram. Todos continuam a dá-las.
Às vezes, e sabendo que acamarado com futebolistas, alguém me diz: "Coitado de ti. Nem sequer sabem falar…" Parvoíce. Quem acha que um futebolista não sabe falar, qualquer que ele seja, é porque não está minimamente atento à forma como se expressam os portugueses em geral (os empregados de café e os funcionários públicos, os advogados e até os ministros) – e menos ainda está atento às entrevistas dos escritores, portugueses ou não. Às entrevistas e, aliás, aos debates, às conferências, aos seminários e ao que mais proporcione o dito establishment para permitir a existência de um escritor para além dos seus livros (até apesar dos seus livros).
Dizem os futebolistas: "Vamos levantar a cabeça e pensar no próximo jogo", "Perdemos, mas não nos deixamos abater", "O que eu quero é continuar a trabalhar para convencer o mister". E dizem escritores: "Quando estava a escrever, perdi a noção do espaço e do tempo", "Este livro escreveu-se sozinho, eu fui apenas um veículo", "Não quis dizer nada em particular, o livro dispõe de existência própria e eu não tenho o direito de condicionar a forma como o leitor o lê". No fundo, vai dar ao mesmo. À mesma falta de subversão. À mesma falta de liberdade de espírito. Ao mesmo medo. Com a diferença fundamental de que os futebolistas querem sobretudo marcar golos, casar com uma loira e ter um descapotável, enquanto os escritores não dispensam ser mensageiros de algo superior, o que é o mais aborrecido de tudo.
Para mim, que gosto de livros, o pior de tudo são quase sempre os escritores. O marketing não é o único valor deste mundo – e, bem vistas as coisas, ainda não conheci um só de cuja obra verdadeiramente gostasse e a quem, ao fim de algum tempo, continuasse a reconhecer o direito de se deixar ver vivo.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")
NS', 27 de Novembro de 2010
(imagem: © www.thingsinmovies.com.com)
November 21, 2010
À noite na cidade

A primeira coisa que sentiu foi frio. Acordou com os pés da cama batendo nas portas que delimitavam os corredores, dois estrondos enormes, em catadupa, separados apenas alguns segundos dos dois estrondos seguintes – e, por cima do seu, julgou identificar o rosto fechado de um homem de bigode, empurrando a cama. Tentou dizer: "Tenho frio", mas nada. Tentou de novo: "Estou a morrer de frio. Por favor, estou a morrer de frio" – e, ainda assim, as palavras não lhe saíam da boca.
Imagens misturavam-se agora à sua frente: noite escura, luzes, rapazes e raparigas, gente dançando, o Pedro. Tentou uma última vez dizer: "Tenho frio. Pelo amor de Deus, tenho frio" – e, no entanto, já apenas o Pedro, no meio das luzes, copo ao alto: "Só mais este, miúdo! Ainda te aguentas?" O Pedro e o Francisco. E a Cátia, sim – a Cátia também, ou então a Andreia, ou as duas, ambas aos gritos entre a gritaria. "Não sejas menino. Aguenta-te!" Era o Pedro ou o Francisco, afinal?
Depois, as têmporas novamente a latejar. Nenhuma luz agora, como se adormecesse.
Tornou a acordar mais tarde, a cabeça muito pesada ainda – e ao fundo tinha, desta vez, uma mulher. Nem sinais do homem de bigode. Era um homem de bigode, há bocado, não era? E antipático, contrariado – não era? De qualquer forma, nenhum sinal dele. E, todavia, antipática a mulher também, a gritar para um telefone. Lá em cima, uma garrafa de plástico, pingando devagar. Tentou mexer a mão direita – doeu-lhe, como se nela tivessem espetado uma agulha. E tinham.
"Como assim, só de manhã?!", continuava a gritar a mulher. "A senhora não está a perceber. O seu filho bebeu de mais, mas já só tem de dormir. E eu preciso da cama. Faça o favor de vir buscá-lo depressa!" Pausa. "Minha senhora, eu não tenho nada com isso. Tenho a Urgência cheia de gente e preciso das camas! Portanto, ou vem buscar já o seu filho, ou ponho-o a dormir na sala de espera!" E atirou com o telefone.
Ficou quieto. Mais clara, agora, a cronologia. Noite de copos combinada há dias. Sessão de PlayStation lá em casa. Duas da manhã, a hora dos veteranos – e, enfim, eles rodeados de música. Copos. Shots. Mais copos. Mais shots ainda. E o WC – várias vezes o WC. Primeiro o corredor escuro, o Pedro aos melos a um canto. Com a Cátia. Era a Cátia ou a Andreia? Aos melos ou a foder mesmo? Risos, em todo o caso: risos altíssimos, gargalhadas, Pedro gritando agora na sua direcção: "Estás todo escafiado, bebé. Vais ao greg? Tu não me digas que vais ao greg, pá. Menino!"
De novo as têmporas a latejar. Nenhuma luz já, como se adormecesse. E, porém, a mulher sacudindo-lhe agora o braço. "Não, não, não. Nem pensar em dormir na caminha quentinha. Toca a levantar, que vai para a sala de espera como gente grande!" Tentou responder-lhe: "Tenho frio – e desta vez conseguiu-o mesmo: "Tenho frio." Então, ela estacou. Respirou fundo. Era bonita. Morena, jovem ainda, cabelos aos caracóis. Respirou fundo de novo. Cabelos longos, sim: longuíssimos, encaracoladíssimos.
"Desculpe. Bebi de mais." Tentou sorrir, mas a sua boca não sorria. "Pois bebeu – e agora estou eu aqui, à espera que os paizinhos venham buscar o querido, enquanto os velhos e os doentes e os estropiados ficam no corredor, a ver se o querido cura a bebedeira e vaga a cama." Nova pausa. "Mas como é que eu vim aqui parar? Os meus amigos? O Pedro?" Silêncio de novo. E os olhos dela. "Veio de ambulância, claro – e os seus amiguinhos, como fazem os amiguinhos, puseram-lhe um papel no bolso, com o telefone lá de casa."
Até que se abriu a porta à esquerda, uma voz de homem irrompendo: "Doutora, doutora, a velhota do AVC está em assistolia!" Deixou-se ficar ali um instante, no meio de rebuliço, a cabeça pesada, doendo ainda, os enfermeiros correndo num frenesim. Esticou a mão para o telefone, marcou 1 e tecla verde, viu o nome de Pedro aparecer no visor – e do outro lado: "O número que marcou não está disponível." Depois, as têmporas de novo a latejar. E, enfim, nenhuma luz, como se adormecesse ainda.
"Amigo não empata amigo" – quem disse que o século XXI não ia ser capaz de criar uma doutrina?
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")
NS', 20 de Novembro de 2010
(imagem: © www.taeseah.blogspot.com)
November 14, 2010
Retalhos da vida de um voyeur
Encontram-se na rua, à esquina de um passeio movimentado – e a primeira impressão que deixam é a de que se esforçam ambos por não cruzar o olhar. Ela vem com um fato cinzento, calças a pouco mais de meia canela (eu ia dizer "à pirata", mas talvez não se aplique), e ele também, mas de perneira comprida. As camisas, brancas, parecem iguais, embora de tamanhos diferentes. Há entre eles uma espécie de intimidade antiga – uma história remota, talvez amor, provavelmente ódio (ou então apenas raiva, demoro a apurá-lo).
Não chego a perceber o que fazem exactamente, mas depressa descubro que ambos mandam em gente. Dois minutos apenas, aliás, e já sei mais ainda: são ambos casados, ambos pais, ambos automobilistas, ambos desinteressados da coisa pública, ambos viajantes. Primeiro fico impressionado com a quantidade de novidades que conseguem debitar em tão pouco tempo, depois frustrado quando a informação começa a andar em círculos. Ainda não passaram cinco minutos e já torço por que toque um telemóvel. E, no entanto, aí vão eles, impotentes, como que levados ao colo pelo acaso que os cruzou.
Ela: "Claro, claro. Claro, claro." Parece querer calá-lo depressa – e, porém, não consegue. Ele fala agora de "chatices" (sic): viagens que tem de fazer, jantares onde tem de estar, lugares a que não pode deixar de ir, pessoas que não pode evitar. O trabalho, o trabalho, o trabalho. E ela: "Claro, claro. Claro, claro." O seu rosto é como que o de uma mulher em vias de afogamento, tipo tortura japonesa dos tempos da perseguição aos cristãos: a maré subindo devagar, inundando-lhe o peito, vencendo-lhe o colarinho.
Está imparável, ele – ela como que com o coração aos pulos. Os miúdos, o director europeu e o mestrado. "Claro, claro. Claro, claro." A viagem ao Vietname, o iPad e a reunião em Turim. "Claro, claro, claro. Claro, claro." A revisão do Mercedes e o apartamento na Expo, a tese em vias de publicação e a sabática – a artilharia pesada toda de uma vez, e ainda assim ela naquilo: "Claro, claro. Claro, claro." Até que, inevitavelmente, ele se cansa. Hesita. Então, ela respira fundo – não há tempo a perder, ou agarra esta oportunidade ou está feita.
Não esteve no Vietnam, mas esteve em Bali, o que é muito parecido. As reuniões que tem são em Frankfurt, talvez menos exótico, mas ainda assim central – e de mestrados sabe tanto quanto é possível saber-se, até porque está agora a acabar o segundo. Os miúdos ficam com os avós – por isso mesmo continua a viver em Queijas, mais perto destes, em vez de na Expo. Sempre preferiu o Kindle, o que em todo o caso vai dar ao mesmo. Passa os fins-de-semana em pousadas. E yoga (diz-se "iôga", atenção): ele faz yoga? Faz algum desporto que seja?
Agora está ela a perguntar-lho mesmo, à espera de uma resposta: afinal, ele faz yoga ou não? Já descobriu a verdadeira qualidade de vida ou não? É apenas mais um sedentário que vai passar por este mundo sem história ou, pelo contrário, um ser comprometido que libertará as suas energias e deixará uma marca no planeta? E, no entanto, ele ali continua: "Pois, pois. Pois, pois." "Pois, pois. Pois, pois." "Pois, pois. Pois, pois." Tem os olhos no telefone – e o seu olhar está como que distante, lá no fundo do aparelho.
Não têm história remota nenhuma, afinal, aqueles dois: foram apenas colegas de faculdade, porque a certa altura ela lhe pergunta se continua "a ver o Pedro Góis, aquele loiro" e ele lhe responde, sem mágoa: "O Pedro Góis sou eu. Deves estar a falar do André."
Tenho pena deles, mas passa-me depressa: ao longo desse mesmo dia hei-de surpreender uma série de conversas iguaizinhas – entre operários ao almoço, entre uma manicure e uma cliente, entre dois gravatas que se cruzam no quiosque, entre várias miúdas de esquerda que bebem copos no Agito. Ninguém se ouve – e talvez a explicação até esteja na escola, que ensinou a participação (mesmo a alarve), quando a inteligência, mais provavelmente, se encontra no silêncio. Em todo o caso, não se pode entender este mundo sem considerar a solidão. E essa é que é a tragédia.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")
NS', 13 de Novembro de 2010
(imagem: © www.sweetspotmktg.blogspot.com)
Retalhos da vida de um vouyeur
Encontram-se na rua, à esquina de um passeio movimentado – e a primeira impressão que deixam é a de que se esforçam ambos por não cruzar o olhar. Ela vem com um fato cinzento, calças a pouco mais de meia canela (eu ia dizer "à pirata", mas talvez não se aplique), e ele também, mas de perneira comprida. As camisas, brancas, parecem iguais, embora de tamanhos diferentes. Há entre eles uma espécie de intimidade antiga – uma história remota, talvez amor, provavelmente ódio (ou então apenas raiva, demoro a apurá-lo).
Não chego a perceber o que fazem exactamente, mas depressa descubro que ambos mandam em gente. Dois minutos apenas, aliás, e já sei mais ainda: são ambos casados, ambos pais, ambos automobilistas, ambos desinteressados da coisa pública, ambos viajantes. Primeiro fico impressionado com a quantidade de novidades que conseguem debitar em tão pouco tempo, depois frustrado quando a informação começa a andar em círculos. Ainda não passaram cinco minutos e já torço por que toque um telemóvel. E, no entanto, aí vão eles, impotentes, como que levados ao colo pelo acaso que os cruzou.
Ela: "Claro, claro. Claro, claro." Parece querer calá-lo depressa – e, porém, não consegue. Ele fala agora de "chatices" (sic): viagens que tem de fazer, jantares onde tem de estar, lugares a que não pode deixar de ir, pessoas que não pode evitar. O trabalho, o trabalho, o trabalho. E ela: "Claro, claro. Claro, claro." O seu rosto é como que o de uma mulher em vias de afogamento, tipo tortura japonesa dos tempos da perseguição aos cristãos: a maré subindo devagar, inundando-lhe o peito, vencendo-lhe o colarinho.
Está imparável, ele – ela como que com o coração aos pulos. Os miúdos, o director europeu e o mestrado. "Claro, claro. Claro, claro." A viagem ao Vietname, o iPad e a reunião em Turim. "Claro, claro, claro. Claro, claro." A revisão do Mercedes e o apartamento na Expo, a tese em vias de publicação e a sabática – a artilharia pesada toda de uma vez, e ainda assim ela naquilo: "Claro, claro. Claro, claro." Até que, inevitavelmente, ele se cansa. Hesita. Então, ela respira fundo – não há tempo a perder, ou agarra esta oportunidade ou está feita.
Não esteve no Vietnam, mas esteve em Bali, o que é muito parecido. As reuniões que tem são em Frankfurt, talvez menos exótico, mas ainda assim central – e de mestrados sabe tanto quanto é possível saber-se, até porque está agora a acabar o segundo. Os miúdos ficam com os avós – por isso mesmo continua a viver em Queijas, mais perto destes, em vez de na Expo. Sempre preferiu o Kindle, o que em todo o caso vai dar ao mesmo. Passa os fins-de-semana em pousadas. E yoga (diz-se "iôga", atenção): ele faz yoga? Faz algum desporto que seja?
Agora está ela a perguntar-lho mesmo, à espera de uma resposta: afinal, ele faz yoga ou não? Já descobriu a verdadeira qualidade de vida ou não? É apenas mais um sedentário que vai passar por este mundo sem história ou, pelo contrário, um ser comprometido que libertará as suas energias e deixará uma marca no planeta? E, no entanto, ele ali continua: "Pois, pois. Pois, pois." "Pois, pois. Pois, pois." "Pois, pois. Pois, pois." Tem os olhos no telefone – e o seu olhar está como que distante, lá no fundo do aparelho.
Não têm história remota nenhuma, afinal, aqueles dois: foram apenas colegas de faculdade, porque a certa altura ela lhe pergunta se continua "a ver o Pedro Góis, aquele loiro" e ele lhe responde, sem mágoa: "O Pedro Góis sou eu. Deves estar a falar do André."
Tenho pena deles, mas passa-me depressa: ao longo desse mesmo dia hei-de surpreender uma série de conversas iguaizinhas – entre operários ao almoço, entre uma manicure e uma cliente, entre dois gravatas que se cruzam no quiosque, entre várias miúdas de esquerda que bebem copos no Agito. Ninguém se ouve – e talvez a explicação até esteja na escola, que ensinou a participação (mesmo a alarve), quando a inteligência, mais provavelmente, se encontra no silêncio. Em todo o caso, não se pode entender este mundo sem considerar a solidão. E essa é que é a tragédia.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")
NS', 13 de Novembro de 2010
(imagem: © www.sweetspotmktg.blogspot.com)
November 6, 2010
As famílias as famílias as famílias

Não sei se é depressão, se é ternura, o que me provocam os anúncios de apartamentos para arrendar e vender dispersos pelos portais de Internet. São "magníficos" T1 em zonas nobres de Lisboa, com muita luz, soalho em tábua corrida e respeito pela traça antiga; são os T2 e T3 dos Anjos e do Lumiar, muito práticos, cheios de acessos e janelas em alumínio; é o loft na Expo, já velho na sua modernice – são casas de vários géneros, todas fantásticas, imperdíveis, pedaços de biografias, projectos de vida.
Deprimem-me, é verdade, os "mobilados e prontos a habitar", porque tanto há uma generosidade tirânica em quem impõe a sua mobília – uma intimidade forçada, se quiserem ir por aí, mas talvez mais do que isso – como, inevitavelmente, um quê de desespero em quem chega sem nada. Que diabo, quem é esta que agora se põe a conferir a oferta: gente que não tem nada ou que deixou para trás o que tinha? E porquê? Que abismo os apanhou desprevenidos, a que precipício voluntariamente se lançaram, que vazio se afigurava ainda pior do que este?
Por outro lado, enternecem-me os bibelôs de estilo pecando por excesso. Esse excesso de pequenas coisas de quem não tem dinheiro para comprar as grandes. De quem não tem dinheiro para ser um verdadeiro barroco ou um assumido minimalista. De quem, na ausência de um estilo, se diz portador de um estilo próprio. O seu estilo. Eu sou assim. Eu sou isto. Ama-me ou odeia-me, é contigo: eu sou assim. Mas ama-me, em todo o caso. Por favor. Por favor. Por favor.
Sim, sobretudo enternece-me isso. As casinhas onde não sobra um canto de parede. Onde se ponderaram todas as cores e texturas. Onde se passaram horas de lazer em bricolage urbana – feitos de uma classe média a trabalhar para aquele empréstimo, para aquela decoração, para aquela maquilhagem de estilo e de bom gosto (e que, afinal, vai ter de pôr à venda, vai ter de alugar, vai ter de legar depressa aos filhos ou aos netos ou aos sobrinhos, porque nem para a contribuição autárquica entretanto sobra).
Num resto de orgulho, não apaga o passado, essa gente. Não fotografa a casa vazia, não: o sonho vai à montra por inteiro, com todos os seus pormenores, as suas pequenas impotências, os seus castigos em forma de papel de parede, candelabros do IKEA e, suprema tortura, uma peça isolada de outra marca, mais rica, mais inacessível, a que se chegou em bicos de pés – ou mesmo mais pobre, mais comprometida e deslocada, tragicamente aceite para compor o ramalhete que não se conseguiu completo.
Enternece-me, mais do que o belo em si, o que as pessoas têm por belo. O seu belo. As suas coisinhas. As que encaixam com demasiada perfeição na decoração geral, tudo combinadinho, equilibrado, concluído – e mais ainda as que não encaixam, em que ela insiste apesar dos protestos do marido e das visitas, em que ele faz finca-pé e que a mulher respeita silenciosamente, de que nenhum dos dois gosta verdadeiramente mas também não tem coragem para livrar-se, que as crianças recordarão com um esgar de riso e isso tudo e isso tudo e isso tudo.
São o retrato de um tempo, os portais imobiliários. E, nos ângulos estrambólicos das fotografias, a apontar para os cantos do chão, para o enfiamento do corredor, para a orquídea no fundo lilás da parede, tentando in extremis ampliar os quinze metros quadrados da sala de estar, há qualquer coisa dentro de nós que estala. Uma espécie de ilusão de óptica não cumprida. Uma espécie de mão lançada subitamente ao bolso de trás: "Roubaram-me a carteira, caramba, roubaram-me a carteira." E, nas entrelinhas, sempre essa libertadora e final palavra: "Cabrões!"
Virou uma enorme feira da ladra, este tempo. Há já a funcionar no mercado, ao que parece, empresas dispostas a comprar tudo o que for casa de cento e cinquenta mil euros, tudo o que for T1 e T2, tudo o que for na Estefânia e em Telheiras, tudo o que for de classe média, tudo o que estiver desesperado, tudo o que houver ao preço da chuva. E, como o hipocondríaco que finalmente atinge a paz ao descobrir uma doença, damos agora por nós próprios como que felizes. O que, não sendo a melhor das felicidades, é apesar de tudo uma felicidade.
O mundo é uma valsa, com o seu compasso ternário – e esta crise faz-me de esquerda novamente. Alguma coisa teria de ser. Estou oficialmente velho – tão velho como o velho que volta a ser criança. Venha a mim o Orçamento, que de bom grado o pago: devo-lhe agora quase tudo. Já não tenho medo da crise.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")
NS', 6 de Novembro de 2010
(imagem: © www.dphotojournal.com)
October 17, 2010
À atenção dos senhores do FMI

Derivado à minha vil condição de morador do centro de Lisboa (porque é que haveria de ser só Lobo Antunes a poder usar a expressão "derivado a"?), sou forçado a apanhar táxis para não perder o milagroso lugar de estacionamento – e, então, o troco é um problema. Em virtude da minha igualmente deplorável situação de fumador (agora encaixe lá esta, António, preparo-me para usar a palavra "destrocar", duas ultra-oralidades no mesmo texto, isto nem vossa mercê), sou obrigado a ir destrocar notas para comprar cigarros nas máquinas de vending – e, então, as moedas são um problema maior ainda.
É uma trapalhada que tenho dificuldade em perceber: que um comerciante possa, em qualquer momento, ir buscar moedas ao banco mais próximo, mas depois nunca tenha troco para nada. Tanto quanto me parece, é preguiça. E, no entanto, eu ainda percebo a preguiça: vida de comerciante é difícil – e, quando um homem se imagina na fila, atrás de uma daquelas almas que lá vão fazer vinte e sete operações e, no fim, ainda têm quarenta e nove perguntas sobre o plano de aplicações ideal para os quatro mil euros que juntaram, a simples ideia de ir ao banco deve ser aterradora.
O que eu não percebo é que tantos e tantos pequenos negócios deixem de fazer-se apenas por causa dessa preguiça, sobretudo num cenário de abrandamento do consumo. E menos ainda percebo que esta praxis de não ter trocos, precisar de interromper o serviço para ir ao quiosque buscar moedas ou – pior ainda – mandar o cliente passear, que era o que faltava vir agora ele para aqui com uma nota de vinte, tenha conseguido instituir-se com tanta facilidade, vigorando não só durante os tempos do euro como (pasme-se) desde os tempos do escudo.
A maior parte das minhas corridas de táxi andam pelos três euros e meio. Pois nunca escapo àquele esgar, com cara de passarinho obstipado, assim que puxo de uma nota de cinco: "Não tem mais pequeno?" No café, a minha conta é certinha: seis euros e vinte. Pois nunca deixo de ouvir duas frases, assim que estico uma de dez: "Não tem vinte cêntimos?" e "Epa, que diabo, você leva-me as moedas todas, meu Deus…" Se preciso de trocar dinheiro para comprar tabaco (sim, eu sei que já devia ter deixado de fumar, mas adiante), preocupo-me sempre em que se trate de cinco euros apenas. Pois nunca deixo de ter por resposta o velho e seco: "Não tenho."
No fim, nunca registo mais do que três coisas. A primeira é que, postas perante o mais desesperado dos desesperos, as pessoas são capazes até de convocar Deus e o diabo numa mesma frase. A segunda é que nunca um português perderá a oportunidade de dizer que não ao próximo, principalmente se esse "não" puder vir alcandorado de uma certa liçãozinha (nem que seja apenas a de sugerir: "Aprende mas é a andar com moedas no bolso, que não és melhor do que os outros."). E a terceira é que nem assim nós, consumidores, damos um murro na mesa perante tão absurdos hábitos, que em qualquer outro país ocidental, e em meia dúzia de dias apenas, condenariam os negócios em causa ao fracasso.
Ou, pelo menos, vocês, consumidores, não dão murro na mesa nenhum, caso contrário os ditos passarinhos obstipados não reagiriam como reagem quando eu lhes digo o que verdadeiramente penso do facto de não terem troco, de me dificultarem desnecessariamente a vida e de não haverem nunca aprendido a mais básica regra segundo a qual o cliente tem sempre razão (sobretudo quando a tem). Um arrogante, é o que eu sou. Um arrogante por não contentar-me com a resposta "Não tenho", quando bastava encaixar na rotina diária um desvio ao banco para efectivamente ter – eis a ironia.
Um extra-terrestre que aterrasse em Portugal, pedisse uma cerveja e tivesse apenas uma nota no bolso ainda haveria de pensar que este é um país rico, em que toda a gente paga cervejas com notas de vinte, de cinquenta e de cem – e que, portanto, não há forma de os comerciantes conseguirem conservar moedas para providenciar-lhes troco. Mas é apenas mais uma das idiossincrasias da nossa economia. Tenho a certeza de que qualquer extra-terrestre a compreenderia. Seguramente compreendê-la-ia melhor do que uma pessoa.
* Esta coluna interrompe-se nas próximas duas semanas, para férias, regressando a 6 de Novembro
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")
NS', 9 de Outubro de 2010
(imagem: © www.dn.pt)
October 9, 2010
O jogo que me enlouqueceu
No momento em que vos escrevo, estou fartinho de golfe. É sábado à noite. Cheguei há instantes da SportTV, onde faço comentários de golfe e tive esta tarde um directo de três horas. Entretanto, já negociei o espaço para amanhã n'O Jogo, no qual, entre outras coisas, sou aquilo a que na gíria se chama um golf writer. Agora estou a escrever esta crónica (sobre golfe, por sinal), mas daqui pouco tenho uma página sobre a Ryder Cup para articular – e amanhã será parecido, incluindo mais uma página sobre a dita Ryder Cup, os últimos quatro planos do Especial que se encerra com este texto e, por volta da uma da manhã (e durante mais duas horas em directo), um comentário sobre o Viking Classic, torneio realizado no Mississippi com jogadores de terceira linha. Basicamente, já não posso ver uma bola e um buraquinho, que me apetece vomitar.
E, no entanto, é fatal: amanhã, quando às cinco da manhã estiver a revolver-me na cama depois de mais um fim-de-semana a correr como uma barata tonta, não serão carneirinhos que contarei. Nem será um livro que abrirei. Nem será uma série de televisão tonta que verei. Com a cabeça sobre a almofada, na expectativa de que enfim se me desacelere o coração, imaginar-me-ei no tee do buraco 1, batendo "um glorioso, navegante, entrelaçado drive" (para usar as palavras de John Betjeman). E então irei por aí fora, birdie no 1, par no 2, par no 3, birdie no 4 – uma sucessão de pars e de birdies (incluindo um eagle, este no 15), até que, enfim, se conclua a ronda de golfe perfeita. Ainda há dois dias, fartinho de golfe, cheio de shanks no jogo longo e de yips no putting, voltei a decidir parar uns meses, a ver se recupero o gosto de jogar este esquizofrénico jogo. E, todavia, sei-o bem: segunda-feira de manhã, já não desejarei outra coisa senão voltar a pisar o verde.
Louco, eu? Estou, sim. Por outro lado, não conheço uma só alma que um dia tenha empunhado um ferro 7, sentido no corpo um swing que de repente lhe pareceu um poema de harmonia e apanhado a bola pelo coração, fazendo-a pingar verdadeiramente ao lado da bandeira, a 140 metros de distância, que não tenha enlouquecido também. Porque não há outra modalidade desportiva – que digo eu: não há outro jogo, com tudo o que de mágico e abissal essa palavra comporta – assim, tão repleta de desafio e de carisma, de camaradagem e de comunhão com a natureza, de exigência técnica e de pathos psicológico. Dizem que é "um jogo de ricos, velhos e gordos". Não lhes liguem. Para usar uma metáfora à mão, jogar 18 buracos de golfe é como fazer um desempate por penáltis na final da Liga dos Campeões, com a ressalva de que temos de marcá-los durante quatro longas horas: 72 penáltis (ou 80, ou 90, ou 100), batidos cada um deles com a adrenalina e o assombro de quem, se falhar, cairá num poço sem fundo – e, acertando-o, não conseguirá mais do que o direito a chutar a bola seguinte.
Se hoje me perguntam o que sinto pelo golfe, não tenho dúvidas: amo-o e odeio-o em iguais proporções. Amo-o quando ele me deixa manter a cabeça à tona de água – e, naturalmente, odeio-o quando ele ma mantém lá em baixo, impotente, com o ego destruído e a vontade imensa de dedicar-me à literatura. Mas não posso nunca esquecer-me de que, no dia em que o encontrei, passava por uma fase difícil, a meio do mais intenso tropel de emoções por que tive o azar e a sorte de experimentar – e que, desde então, não tem sido outra coisa senão ele a manter este coração batendo, enquanto o excesso de trabalho e de compromissos e de expectativas e de ambições e de post'its em geral me deixam receoso de vir a ser obrigado a fazer check out a meio da esperança média de vida para um português sem ligações ao narcotráfico. Para além de tudo, o golfe é o exercício perfeito – e hoje, quando me dá para a hipocondria, já nunca é numa doença podre que penso, mas apenas numa dor nas costas que me deixe incapaz de fazer uma rotação completa, um release preciso, um finish seguro.
O meu sonho de vida, para reduzi-los a um só, é agora poder um dia dizer como disse Ted Ray, décadas depois de vencer British Open: "O golfe é um jogo fascinante. Demorei cerca de quarenta anos a perceber que não consigo jogá-lo." Tudo o resto virá por acréscimo.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")
NS', 9 de Outubro de 2010
(imagem: © www.dn.pt)


