Joel Neto's Blog, page 105

May 14, 2011

O casamento real como eu o vi


Não vale a pena disfarçar: para um homem da minha provecta idade, uma rapariga como Kate Middleton, com a idade de Kate Middleton e a silhueta de Kate Middleton e a ligeira mas indisfarçável malícia que Kate Middleton esconde sob o olhar de princesa, pode bem ser mais do que suficiente para reatear a centelha da paixão, se ainda é reateável tal coisa, após estes anos todos (como é que se dizia na minha meninice, há tantas e tantas décadas?) a ver com os olhos e a comer com a testa. Bastará, para tal, estarem um dia reunidas duas ou três importantes condições: haver apenas cinco mulheres no mundo e as outras quatro estarem ocupadas, terem sido retirados do mercado os derradeiros exemplares em DVD de Uma Canção Para Bobby Long, com Scarlett Johansson aos vinte anos, e estar a chover de tal maneira que ambos os campos da Aroeira se encontrem impraticáveis.


Quanto ao resto, lamento muito, mas Kate Middleton é dona de uma beleza bastante banal, categoria amplamente menos excitante do que a das mulheres portadoras de uma fealdade especial – e ao seu príncipe não se poderá fazer melhor elogio do que sublinhar a injustiça de se encontrar precocemente careca e de ter levado com uma prancha na cara, parecida (a prancha, isto é) com aquela com que o Coyote levou quando perseguia o Papa-Léguas sobre um chão de tábua corrida ainda mal pregado ao solo. Donde (e só por isto já valeu a pena escrever este texto: pela oportunidade de começar um período com a palavra "donde") dizer que se tratou do "casamento do século", o número meio circense a que pudemos assistir aqui há uns dias pela TV, não passa provavelmente de um daqueles chavões jornalísticos a que nenhum de nós alguma vez escapou, tipo "pedrada no charco" ou "elefante em loja de cristais" (no pun intended).


Casamento do século era se pudessem subir novamente ao altar Ted Hughes e Sylvia Plath, pelas razões óbvias. Casamento do século era caso Sartre e Simone de Beauvoir voltassem à Terra para revogar o seu statement filosófico-conjugal, por razões mais óbvias ainda. Casamento do século era em tendo casado neste século os pais de Lionel Messi, por razões sobre todas as demais óbvias. Já isto foi apenas mais um casamento igualzinho a outro que vimos há trinta anos, à partida com a mesma utilidade festivaleira do outro que vimos há trinta anos, mas por azar com dois mocinhos sérios nos principais papéis, o que na melhor das hipóteses o tornará notável no momento da apresentação dos rebentos, ao longo da cerimónia de coroação e no dia em que Kate, com quase toda a certeza já bem velhota, for ao cemitério entregar o amo ao Deus de Henrique VIII, que isto é mesmo assim, elas comem menos gorduras e duram mais e não há nada que a gente possa fazer quanto a isso.


Sobre o comportamento dos súbditos ingleses, não tenho muito a dizer, a não ser que cada povo tem a tradição tauromáquica que merece. Já que Portugal tenha paralisado para assistir a tal coisa, incluindo directos de três estações e seis canais de televisão, manchetes nos jornais todos, comentários de figuras de Estado e astrólogos, fóruns na rádio e vox pop dispersos por todo o país, pois não me ocorre outra explicação senão um entendimento um tanto largo das teses de Lorenz – vocês sabem, o da Teoria do Caos, do Efeito Borboleta, etecetra e tal –, na inusitada presunção de que as endorfinas libertadas pelo acto de pensar perpetrado (é que é mesmo essa a palavra, perpetrado) por uma reformada de Vila Velha de Ródão seja suficiente para provocar um tufão na longa tradição dos casamentos reais britânicos e este para subverter a ordem das coisas e instalar o caos.


No mais, saúde-se a circunstância, e apesar dos percalços da História, de as gerações de cronistas sociais lusos continuarem a renovar-se adequadamente. Bem vistas as coisas, a cobertura que a TV portuguesa dedicou ao casamento de William e Kate, com Júlia Pinheiro e João Adelino Faria e Manuel Luís Goucha e tantos outros, todos eles como que sonhando-se no papel da princesa, foi tão pindérica como teria sido no passado, se não mesmo mais. Por mim, tomei a decisão certa e vi na Sky. A bimbalhice disfarça muito melhor quando é em inglês – e na Sky sempre são menores os riscos de apanhar o Cláudio Ramos vestido de noiva. Isso, sim, são riscos a que um homem não deve submeter-se de ânimo leve.









CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 14 de Maio de 2011


(imagem: © www.dailymail.co.uk)

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Published on May 14, 2011 11:33

May 8, 2011

Eu celebrei a morte de um homem


Em O Discurso do Rei, mais um daqueles filminhos insípidos cuja entronização o superavit de bretões em Hollywood conseguiu fazer passar pelos intervalos da chuva, há apesar de tudo um momento interessante. Recém-coroado, George VI está assistir a um excerto de um discurso de Hitler nas notícias do cinema, quando uma das filhas o questiona sobre o que estará a dizer aquele tipo encolerizado que atira perdigotos à câmara. E ele: "O que está a dizer, não sei, mas parece-me estar a dizê-lo bastante bem."


Foi disso que, por bonomia, me lembrei logo na segunda-feira de manhã, quando, nos instantes iniciais de numa das primeiras conversas que tive sobre o abate de Osama Bin Laden, alguém se apressou a objectar ao meu triunfalismo: "Não nos esqueçamos de que era um grande líder, que inspirava as massas." Desde a notícia da morte que eu vinha ouvindo, da parte dos habituais representantes da bem-aventurança, referências à ideia de que as represálias terroristas não tardariam, como se isto não fosse uma guerra e a antecipação dessas represálias devesse ter levado as tropas norte-americanas a pensar duas vezes antes da eliminação.


Mas nem nos momentos de maior boa vontade me passara sequer pela cabeça que a retórica e a capacidade de mobilização de Bin Laden pudessem, após quinze anos de persistentes atentados, com milhares de mortes acumuladas nos cinco continentes, ser elogiadas assim, sem qualquer ressalva posterior, como um dia poderia ter feito o rei de Inglaterra em relação a Hitler, se não se desse o caso de, nesse instante, estar, mais do que a invejar um estadista capaz (ao contrário dele) de dizer duas frases seguidas, a avaliar as armas de um inimigo e a recapitular interiormente o seu próprio arsenal, à procura de antídoto.


E, no entanto, não passava de uma brincadeirinha de crianças, esse primeiro elogio ao carisma de Bin Laden. Chegado a casa, e depois de um dia demasiado comprido para conseguir manter o passo com a actualidade, liguei a televisão para conferir o vox pop e era pior: Bin Laden já não era um assassino, mas um justiceiro, quase um santo. Pensei: "Estás com alucinações, Joel, experimenta mas é a rádio" – e, porém, na rádio era pior ainda, porque quem falavam eram jornalistas e figuras públicas e, se Bin Laden não era um santo, pelo menos Obama era um demónio, o que ia dar quase ao mesmo. Pensei: "Bom, ao menos nas redes sociais não há-de ser assim…" – e, no entanto, no FaceBook era tudo definitivamente terrível: Bin Laden um anjo com asinhas, Obama a encarnação de Belzebu e eu o filho de uma grandessíssima por ter celebrado a morte de um homem sem direito a julgamento nem nada.


Diziam-no cidadãos anónimos e diziam-no, mais uma vez, figuras públicas, provenientes da TV mais tonta e até da própria Assembleia da República – e no fim voltavam a dizê-lo os jornalistas, tanto os de tribuna solitária como aqueles que se reúnem diariamente em fóruns onde vomitam o seu ódio a toda a espécie de ordem, ao mesmo tempo em que se vão lamentando pela ignorância deste povo a quem trazem cultura e filosofia sem que, pobre diabo, ele sequer perceba a importância de assimilá-las. Aparentemente, morreram 3000 pessoas a 11 de Setembro de 2011 porque os EUA tiveram, enfim, o castigo que mereciam – e, se noutros países se perderam igualmente vidas, centenas de vidas, milhares de vidas, então o mais provável é que o tenham merecido também, se, como todos sabemos, tantos e tantos comem diária e impunemente da gamela americana, alimentada pela opressão dos povos árabes.


Acho graça a esta conversa da opressão, porque no período entre duas guerras também era exercida sobre a Alemanha uma certa forma de opressão e foi precisamente daí que nasceu Adölf Hitler. Infelizmente, acabámos por cercá-lo de tal maneira em Berlim, determinados que estávamos a evitar que tivesse um julgamento justo, que, encurralado, o pobre não encontrou outra alternativa serão pôr termo à vida. Foi pena não ter-se permitido chegar aos dias de hoje, para ver o que dele escreveriam os portugueses pensantes – e os jornalistas portugueses em particular – no FaceBook. Ficaria com o coração aconchegadinho, quase de certeza. Vergonha, é o que eu às vezes sinto. A gaiola das loucas – às vezes não passa disso, a minha classe.








CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 7 de Maio de 2011


(imagem: © www.buddyhell.wordpress.com)

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Published on May 08, 2011 10:36

May 1, 2011

Para o nº 46 (1982-2005), in memorian


Um sinal de como vivemos bem na última década? A relação que passámos a cultivar com os dentes e com os dentistas. Velho ou novo, rico ou pobre, metrossexual ou esbragalado: não sei de um único português que não tenha, nos últimos anos, posto a dentadura em obras, feito um orçamento para pôr a dentadura em obras ou pelo menos desenvolvido uma paixão garrettiana pelos seus dentes, dedicando-lhes pastorais e prometendo nunca mais voltar a prestar atenção aos olhos, esses ingratos. A obsessão foi de tal ordem que muitos dentistas, na crista da onda, se davam ao luxo de recusar qualquer tipo de relação com seguros médicos ou com titulares de seguros médicos, argumentando que os dentes são coisa demasiado séria para ser tratada a correr, como aparentemente o impõe o parco rendimento de uma consulta a um segurado da Médis ou da Multicare. E, então, por aí andavam, os portugueses, cada vez mais pobres, mas cada vez com mais estilo: um terço a entregar-se à broca duas vezes por semana, outro terço de aparelho com metal e elásticos nos caninos e um último terço já com dois leds sobrepostos sobre o queixo, à Paulo Portas, solução óptima para identificar ao longe e para nos guiar no caso de faltar a luz.


Chegada a crise, já se sabe, as coisas mudaram um pouco. Na clínica que frequento, o doutor Gonçalo, sempre irritado com seguros e segurados, foi posto a andar – e, numa série de outras, a primeira medida foi ir bater à porta das seguradoras, a ver se ainda havia interesse em convénios. Os dentes continuam uma coisa absolutamente séria, muito mais séria do que o fígado ou o duodeno, mas mais sério ainda do que ambos passou a ser a sobrevivência da classe médica. Acho bem. Por outro lado, não me importava nada que, na sequência deste banho de humildade, viéssemos a aligeirar também a sacralização da dentadura e da nossa relação com ela. Primeiro, porque estou um bocado farto disto de ir almoçar com alguém e, no fim, ter de ficar a assistir ao seu longuíssimo ritual de higiene, no lavatório da zona comum da casa de banho, com as senhoras desviando o olhar e eu ali em pé, sem saber muito bem onde enfiar-me e a distribuir sorrisos amarelos, como quem diz: "Tenham paciência, minhas senhoras. O coitado está doente." Depois, porque me parece que, apesar de tudo, talvez valha a pena estarmos atentos a ameaças de outras proveniências também. É tal a nossa obsessão com os dentes que, qualquer dia, cruzamo-nos com na rua com uma pessoa a esvair-se em sangue, fazemos-lhe um rápido exame às gengivas e suspiramos aliviados: "Dos dentes não é, por isso não deve ser grave."


Aqui há umas semanas, tive uma gengivite e precisei de fazer uma destartarização, técnica ainda não há muito anos considerada pouco mais do que um capricho new age. Pois vim para casa com um saco de apetrechos e literatura adicional – e depois ainda tive de passar na farmácia, a comprar mais uma série de coisas e a ouvir mais uma data de conselhos. Por esta altura, qualquer pequena refeição que eu faça é seguida de uma autêntica odisseia. Primeiro, massajo as gengivas, pacientemente, prolongadamente. Depois, escovo os dentes, dez segundos por cada grupo de três, sempre com a preocupação de ir até à raiz de cada um. Depois ainda passo-lhes não o fio, mas uma fita dental, mais resistente. Logo a seguir, complemento com um escovilhão (sim, um escovilhão), escarafunchando para cá e para lá. Acto contínuo, gargarejo tudo com Tantum Verde, sorrindo – e, no final, ponho-me ali a olhar para os dentes através do espelho, um a um, desejando-lhes boas noites e declarando-lhes o meu amor incondicional: "Agora tenho de apagar a luz, meus queridos. Não se esqueçam das orações. Peçam por vós e pelo vosso falecido irmãozinho, que fazia anos para a semana."


Estou a pensar abandonar isto das crónicas e dedicar-me a tempo inteiro à limpeza da dentadura. O meu objectivo é, mesmo morrendo jovem, morrer com uns dentes lindíssimos. E, quando hoje alguém me diz que, como eu fiz durante tantos anos, apenas escova os dentes três vezes ao dia, duas se sair de casa para trabalhar e houver esquecido a escova, só me apetece mandar parar a banda sonora e atirar: "Pobre diabo. Tu precisas de ajuda, pá!" Agora, sim, sou um homem com uma missão.








CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 30 de Abril de 2011


(imagem: © en.wikipedia.org)

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Published on May 01, 2011 13:14

April 24, 2011

Todo o cronista devia ter um Dr. Alceu


Às vezes gostava de ter o contrato que o Bruno Nogueira tem com a TSF. Dava-me a preguiça, apetecia-me ir para a praia ou simplesmente não me saía nada de jeito e, pronto, aqui vai disto: punha uma canção pimba, abria com um pivô inicial a dizer qualquer coisa como: "Já aqui passei muita canção pimba, mas esta é a mais pimba de todas" – e ala para a Costa da Caparica. Infelizmente, nem isto é a rádio nem eu sou o Bruno Nogueira (coisa que, aliás, nos orgulhará a ambos em igual medida). Se há uma crónica para entregar, então há uma crónica para escrever. E, se há uma crónica para escrever, então o melhor é que escrevê-la custe o mais possível. Com esta cruz se debate todos os dias um tipo que nasceu protestante, tenha ou não alguma vez acreditado na Omnipotência: com a firme convicção – e mesmo que tudo em redor prove racionalmente o contrário – de que, se não dói, não presta.


Haja saúde.


Hoje não tenho crónica. Ando a correr há um mês por causa do lançamento do novo livro, advento por coincidência simultâneo com um pico de trabalho quase épico, e agora aqui estou, com uma dor de cabeça monumental, uma tosse que não se pode e uma vontade imensa de fechar os olhos, a contemplar esta página em branco como um equídeo contempla o tipo que quer montá-lo: contrariado como o diabo, mas ainda assim consciente de que deixar-se montar foi a única razão para a sobrevivência da sua raça. Na pastinha "Ideias" tenho, por esta altura, 192 ficheiros: crónicas inacabadas mas acabáveis, anotações já estruturadas em princípio, meio e fim, pistas para desenvolver mais ao estilo escrita automática. É muito raro, hoje em dia, escrever uma crónica que não tenha sido antes pensada e pelo menos vagamente discutida, em colóquio, solilóquio ou provocação ao vento. Mais raro do que isso só chegar ao final da tarde de domingo e não conseguir concretizar. Nem sobre os 192 assuntos em maturação, nem sobre outra coisa qualquer.


Desde as dez da manhã, esbocei pelo menos um parágrafo sobre as mulheres que fazem beicinho e os trolhas comprimidos nos furgões que vogam pelas auto-estradas à sexta-feira à tarde, os maridos de grávidas que até enjoos sentem e os homens que põem casacos pelos ombros, os óculos escuros, o Nuno Markl e a incapacidade de sacralizar. Às mulheres que fazem beicinho, atirei dois insultos e depois fiquei sem nada para dizer. Aos homens que engravidam tanto quanto a esposa, dei três pontapés na boca e depois tive pena. Dos trolhas, descobri que, em dias assim, também não tenho outra coisa senão pena, o que é fraco argumento para uma crónica completa – e, quanto aos homens que põem o casaco pelos ombros, pois talvez não passem de uma espécie de versão engravatada dos trolhas do furgão. Sobre os óculos escuros, que gostava um dia de declarar como a maior pinderiquice dos séculos XX e XXI, descobri-me afinal com apenas uma coisa para dizer: "Declaro que os óculos escuros são a maior pinderiquice dos séculos XX e XXI." Do Nuno Markl, sei que queria falar mal, mas já nem lembro a propósito do quê – e, agora que penso nisso, não faço ideia nenhuma do que signifique "Incapacidade de Sacralizar", ficheiro que suicidamente se limita às três palavras que traz no título.


De alguns dos grandes cronistas do passado se disse, em jeito de supremo elogio: "Era melhor ainda quando não tinha assunto." É algo que eu adoraria ouvir um dia sobre mim próprio, mas apenas para sentir-me consagrado no cânone. Na verdade, não há qualquer hipótese de eu ser melhor não tendo assunto, até porque não há qualquer hipótese de eu não ter assunto. Há quinze anos que me venho munindo de assuntos e de argumentos sobre esses assuntos e de retórica para defender esses argumentos. Por outro lado, e se de repente houver o risco de me faltar o tema, é mais forte do que eu: em cinco minutos já tenho todo um debate sistematizado, independentemente do objecto desse debate e do lado da barricada onde me houver acantonado. E, porém, um dia haverá em que simplesmente não conseguirei escrever, mesmo tendo sobre o que escrever (e, aliás, o que escrever sobre isso). E o pior é que esse dia é hoje.


Olhem: estou a pensar colar-me ao Nelson Rodrigues e fazer de Nuno Markl o meu Dr. Alceu, para dele me ocupar nos dia de desinspiração. Alguém se opõe?







CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 23 de Abril de 2011


(imagem: © www.hammer.eu)

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Published on April 24, 2011 14:31

April 17, 2011

O dia em que o Benfica me fez feliz


Já se sabe: não gosto do Benfica. Tenho com o Benfica uma espécie de tensão freudiana, ainda por cima de resultado intercalar claramente em meu desfavor – e, para além de tudo, pago a renda com recurso bastas vezes a matérias do domínio da estética, o que não poderia nunca beneficiar a relação. Para mim, o Benfica é um clube feio, boçal e desinteressante. Representa uma maioria clara, o que do ponto de vista filosófico é um tédio, e ademais está cheio de adeptos desdentados, que bebem pelo garrafão e tratam a patroa por isso mesmo: por "patroa". Todos os bullyers da minha escola, uns rufias mesquinhos que ainda hoje provavelmente só à chapada, eram do Benfica. Por outro lado, o meu pai, com quem tive a honra de partilhar algumas das mais poéticas derrotas da história do pontapé-na-bola, nunca quis nada com tal obscurantismo. Na verdade, só estas duas razões chegavam para que eu detestasse o Benfica. Ao velho doutor Segismundo, a quem não escapou quase nada, escapou ainda assim isto: o Complexo de Édipo pode ser o diabo, mas o Complexo de Mats Magnusson é bem pior.


E, no entanto, ainda no outro dia, ao cruzar-me com o resumo de um jogo entre o Benfica e o PSV Eindhoven, esse mesmo que, numa certa noite da Primavera de 1988, me deu a alegria de estragar o jantar ao Veloso, absolvendo-me metade da adolescência, dei por mim todo enternecido com os golos do Sálvio e do Saviola. Digo enternecido, mas não era bem isso: era emocionado mesmo. Em plena noite de insónia, vi o resumo do FC Porto, aqueles cinco disparos inapeláveis que praticamente mandavam o Spartak de Moscovo embora, e surpreendi-me feliz, apesar de tantas vezes torcer pelo FC Porto (em todos os jogos contra o Benfica, isto é). Depois vi o resumo do Benfica e continuei contentíssimo, ao arrepio de todo o desdém (que digo eu, de todo o ódio) exercitado durante metade da vida – e, quando finalmente assisti ao do Sp. Braga, o mesmo  clube de que há uns anos eu disse não ter adeptos, conquistando uns amigos que ainda hoje não perdem uma oportunidade de prometer-me trabalhinhos de, digamos, ortodôncia espontânea, já nem era um resumo que eu via, mas um jogo em directo mesmo, todo eu pontapés na mobília e golpes de cabeça à Villas-Boas e gritaria a pedir a expulsão do Shevchenko, esse grandessíssimo, mas quem é que ele pensa que é.


E, quando enfim acabaram os resumos, eu não suspirava mais pelo sono: suspirava por uma banda filarmónica, uma bandeira verde-rubra drapejando à janela e a mesma malta com que vi o Euro 2004 e o Mundial de 2006 ali mesmo , ao meu lado, cantando comigo: "Às armas! Às armas!" Porque, de repente, essa coisa das "equipas portuguesas" defrontando "as equipas estrangeiras" insurgia-se como algo superlativo. Porque mesmo eu, tão pouco dado a patriotismos imediatos, me sentia de súbito urgente de brio nacional, tantos e tão duros são os insultos que nos vemos obrigados a dirigir-nos a nós próprios, nestes tempos de resgates e ralhetes. E porque em mais nada (e isto independentemente do desfecho da dita ronda da Liga Europa, concluída já depois de escrito este texto) somos tão bons como no futebol, com triunfos individuais e colectivos, com brilharetes clubísticos e nacionais não apenas desproporcionados quanto à nossa dimensão, mas suficientes mesmo para proporcionar-nos um lugar entre a elite global.


Vai acabar, isto. Dizemo-lo em jeito de ameaça, mas é verdade: as crianças portuguesas já não jogam futebol na rua, os nossos vagos candidatos a futebolistas já não têm qualquer intimidade com a bola, por vontade dos treinadores já não havia um só jogador lusitano a partir do escalão de iniciados, os seleccionadores nacionais das próximas gerações já não têm outro remédio senão ir buscar suplentes ao Fátima e ao Ribeirão para poder compor uma vaga lista de convocáveis – e, em quanto mais etapas desse processo avançamos, mais o rigor táctico se vai tornando essencial para disfarçar a ausência de capacidade técnica. Pois talvez esta crise seja mesmo uma oportunidade, como parece que insinua a tal letrinha chinesa. Dizia Jorge Valdano, campeão do mundo com uma Argentina levada ao colo por um pé-descalço de Villa Fiorito: "A pobreza nunca foi boa para nada. A não ser, talvez, para o futebol." Quem sabe, então, se os miúdos não voltam agora a jogar futebol. Nem que seja apenas para me fazer a vontade. Mas alguém tem ideia do quão difícil é engendrar crónicas optimistas numa altura destas?







CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 16 de Abril de 2011


(imagem: © www.somosbenfica.blogspot.com)







 

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Published on April 17, 2011 11:11

April 10, 2011

A crise folga aos domingos


Mais velho, escrevo com cada vez maior frequência sobre as coisas que me comovem – e em quase todas elas, percebo-o agora, se conjugam factores recorrentes: uma adversidade das grandes, um homem tentando fazer-lhe face com recurso em exclusivo à vontade indómita e, no fim, uma vaga aparência de dignidade que, apesar disso (de ser vaga e de ser uma aparência), chega para oferecer ao resistente a hipótese de acreditar nela. Nada a fazer: tudo o que me importa é a memória, a sua sistemática tanto quanto a sua aquisição – e a massa de que sou feito, de que fui feito, de que serei para sempre feito apesar dos golpes de sorte e dos acidentes, tem necessariamente de vir ter a estas crónicas. Ainda há instantes, enquanto ponderava sobre o que escreveria hoje, recompus o ficheiro com notas para um texto sobre garrafas termus (sobre os homens que levam garrafas termus para o trabalho, a comida que esses homens tiram de dentro das suas garrafas termus, o sítio onde abrem as suas garrafas termus e a pose que mantêm enquanto o fazem) com o qual espero aborrecer-vos um dia – e, se há uma crónica que ainda não consegui escrever, mas nem por isso desisti de fazê-lo, é essa em que um homem pega numa esferográfica estampada com o símbolo da sua padaria, a ergue no ar e, com a mesma solenidade com que um dia Artur devolveu a Excalibur à Dama do Lago, a estende ao doutor que lá compra as carcaças de manhã: "Tome. Ofereço-lhe."


Entretanto, e logo abaixo dessas coisas que me abrem a torneira das emoções (vocês sabem: um homem com uma gravatinha de napa dando-se ares de importância, outro cujo carro avaria na ponte num domingo de Verão, outro ainda que mete dez euros de gasolina a um sábado de manhã), há um número igualmente crescente de coisas que apenas me banham de ternura – e provavelmente nenhuma delas me banhará tanto (eis, enfim, o que eu queria dizer) como uma família que, em plena tarde de domingo, entra na Decatlhon e debate em alta voz os novos modelos de corta-ventos "da Quechua" ou irrompe pela SportZone dentro e se põe a discorrer aos gritos sobre os prós e os contras de cada polar "da Berg". Há um tom na forma como se diz aquelas palavras, "da Quechua" ("da Quéchua", à estrangeira) e "da Berg", que é, na verdade, quase toda a literatura que me interessa. Porque há ali a ânsia de dignificar – melhor: de elitizar – as pobres marcas a que se consegue chegar. Mas, principalmente, porque tudo, naquelas pessoas, rescende a família. Tudo nelas rescende a convenções familiares, a cumplicidades familiares, a rotinas familiares – e ouvi-las debater os corta-ventos "da Quechua" e os polares "da Berg" é como entrar de repente na sua sala de estar à hora do jantar e perceber, impotente, que o que há ali é amor mesmo, a família inteira como uma fortaleza, minando aos bocadinhos, até enfim apropriar-se dela, a ordem sobre a qual se construiu este infeliz mundo.


Ver as pessoas tentando ser felizes – aí está, quase de certeza, o melhor do mundo. E, entretanto, sobre essa fundação se erguerão muito mais facilmente as ameias de que agora vamos precisar. Tendemos a esquecer-nos da família (nós, os auto-instituídos moderninhos, os auto-proclamados urbanos). Motivados por imperativos filosóficos que a estatística não tem feito outra coisa senão comprovar, convencemo-nos de que um certo cepticismo cínico permanece a atitude mais inteligente a ter – e, no fim, já nem nos ocorre o potencial mobilizador do afago de um patriarca, do sorriso optimista de uma mãe, do abraço cúmplice de um irmão. Lembramo-nos que os corta-ventos e os polares de marca branca se compram às vezes por não mais de cinco ou dez euros, compensando com o facto de serem quase dados a sua imensa falibilidade, mas raras vezes nos recordamos exactamente do tom em que devem dizer-se aquelas palavras, "da Quechua" e "da Berg". Nele se concentra a memória toda – e a memória, se não o foi sempre, é agora a única alternativa que temos à esquizofrenia. Neste ponto nos deixaram 37 anos de democracia, 25 de subsídios e quase 600 de globalidade: a caminho novamente da mesa de jantar da infância.







CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 9 de Abril de 2011


(imagem: © Joel Neto)







 

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Published on April 10, 2011 09:29

March 26, 2011

Carta de amor à Terra Chã


Se me pedissem para descrever racionalmente a Terra Chã, a personagem destas crónicas sobre que mais perguntas recebo, o mais provável é que eu próprio me decepcionasse com a descrição. Outrora um importante centro produtor de laranja, de que chegou a abastecer a Inglaterra vitoriana, a Terra Chã declinou a partir dos finais do século XIX, em resultado de uma das muitas pragas que assolaram os Açores (e a Terceira em particular): a mosca da fruta. Desde então, quase todos os solavancos da História contribuíram para reforçar o seu papel de subúrbio de Angra do Heroísmo, cidade que ali veio a instalar, após o violento sismo que em 1980 desalojou dezenas de milhar de pessoas, o seu maior (e, inevitavelmente, mais problemático) bairro social. Quem hoje visita a Terra Chã encanta-se com as quintas belíssimas, mas desencanta-se provavelmente com outras coisas: com a pobreza e com a atmosfera um tanto tristonha, com a falta de vistas para o mar, com a modesto brio das festas populares e com uma certa diluição da identidade – e depois ainda se chateia com o trânsito, que passa louco para cima e para baixo, na impunidade típica dos "caíns" ("caíns" de Caim, o instrumento a que Deus recorreu para matar Abel, de forma a que se cumprisse o seu plano), que é como, muito sintomaticamente, os terceirenses chamam aos seus "mitras".


Mas essa seria apenas a descrição racional. Na verdade, tudo na Terra Chã se encontra, para mim, no domínio das emoções. Na Terra Chã cresci e fiz os meus primeiros amigos. Na Terra Chã aprendi a ler e perdi a virgindade. Na Terra Chã apanhei castanhas e levei as minhas primeiras galhetas (ou "bolachas, como se diz na Terceira). Na Terra Chã me despedi dos meus avós e nela, afortunadamente, ainda vivem os meus pais. Suponho que não haja – a não ser talvez nalguns recantos da Canada da Francesa ou da Canada do Ti Bento, apenas recentemente desenvolvidas como zonas residenciais – um só pedaço da Terra Chã onde eu não tenha sido feliz. Ainda hoje, quando volto à Terra Chã, faço questão de passar por todos e cada um dos meus santuários de infância: a mercearia da Mercês, o ringue da Casa do Povo e o relvão do Departamento de Ciências Agrárias; o portão verde para que chutávamos pontapés à meia volta, a Canada do Rolo onde fazíamos corridas de bicicleta e os pastos onde apascentei vacas com José Guilherme; o salão da Sociedade Filarmónica, o miradouro do Charcão e as Guerrilhas, baptizadas em honra do papel do morgado no processo liberal, cuja constituição Mouzinho da Silveira redigiu precisamente na Terceira.


De todas as grandes tiradas da história da Filosofia, pois, aquela que eu mais deploro, hoje em dia, é essa do "cidadão do mundo", com que tanto gostamos de encher a boca até que, enfim, alguém nos reconheça globetrotters, portadores de cartão de crédito e representantes da nova burguesia do resort de quatro estrelas e da máquina fotográfica digital. Porque ser de todo o lado não pode significar outra coisa senão que não se é de lado nenhum. E porque não pode haver nada mais triste do que não ter uma terra. Dois mil e quinhentos anos depois, o mundo não é já o de Sócrates, feito de meia dúzia de cidades e dúzia e meia de aldeias piscatórias aninhadas ao sol do Mediterrâneo. Pelo contrário: dois mil e quinhentos anos depois de Sócrates, a mundividência é, antes de tudo o mais, a capacidade de cultivar raízes. De ser de algum lado, se possível até do lado de onde verdadeiramente se é. E, pelo menos enquanto um só velho da Terra Chã se lembrar de mim, eu serei da Terra Chã. Quando, enfim, tiverem todos morrido, e com eles a memória desses gloriosos tempos de bicicletas e bichos-da-seda, então talvez eu passe a ser do mundo inteiro. Mas, em todo o caso, tentarei evitá-lo.


É por isso que, com vossa licença, não há crónica para a semana. Estarei na Terra Chã, à varanda da velha casa dos avós, olhando os santuários da minha infância e esperando que, nalguma janela em volta, se mova uma cortina, agitada por um velho que se deu conta do meu regresso.







CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 27 de Março de 2011


(imagem: © Joel Neto)

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Published on March 26, 2011 16:39

March 20, 2011

Crónica que não sei de onde apareceu


Há nisto da construção da personagem solavancos, reviravoltas, correcções de trajectória. Às vezes, e tanto quanto confunde os outros, uma pessoa confunde-se a si própria com a pele que foi vestindo. Aqui parece-lhe que se afunda de novo no lodaçal de convenções e ressentimentos transportados da adolescência – e então recupera o esforço por adestrar-se, munir-se, relativizar-se. Ali alarma-se porque perdeu o rasto ao rapaz que foi e ainda devia ser – e então parte em busca das suas perplexidades, das suas indignações, da sua força. Nada disso é muito importante: crescer em público não se fez nunca de outra maneira. No fim, restam as raríssimas questões filosóficas mesmo sérias. Uma, como insistia Camus, é o suicídio. E a outra, se existe mesmo mais alguma, é o amor ao chocolate preto.


Esteja em fase mais urbana ou mais rural, a existir sem fazer nada na Terra Chã ou a correr como uma barata tonta em Lisboa, com os nervos em franja ou tão tranquilo como se houvesse caído em pequenino num caldeirão de Xanax – há uma coisa que eu não perceberei nunca, e essa coisa é o amor ao chocolate preto. Quer dizer, perceber até percebo: percebo que não existe. Na verdade, todo aquele que diz gostar de chocolate preto mente. Isso já eu tenho bem resolvido. E, no entanto, permanece a pergunta: porque mente o suposto adorador de chocolate preto, dizendo adorar chocolate preto? O que tem, afinal, o chocolate preto, a não ser o azedume intrínseco, os embrulhos sombrios e o esgar de desconsolo que uma pessoa dá por si a fazer quando, sem mais por onde escapar, lhe afinfa um canino?


Eis o que me inquieta. Se querem que vos diga, e embora em dois parágrafos apenas eu tenha já esgotado a quota de laracha que a direcção desta revista me atribuíra para 2011, é bem possível que as pessoas possam mesmo dividir-se em dois grupos apenas: as que dizem gostar de chocolate preto e as que assumem, sem complexos, que o chocolate, para ser chocolate, é de leite, igualzinho ao da infância, igualzinho àqueles que provávamos em dias de tourada, igualzinho àquele que nos traziam tios emigrados em paragens distantes, igualzinho àqueles que comíamos quando éramos apenas felizes e não estávamos a seduzir ninguém e muito menos reduzíramos à aceitação numa espécie de irmandade do auto-domínio, da penitência e do mau gosto em geral tudo aquilo que um dia pretendêramos da vida.


Às vezes ouço falar de uma nova loja de chocolates, coisa de marca, vinda de Barcelona ou de Nova Iorque. Fico excitadíssimo, cedo arranjo uma desculpa para me infiltrar no shopping em causa, que preciso de ir comprar brocas para o berbequim ou que saiu um novo plasma da Sony ou até que estou ansiosíssimo para começar a ler a última tradução do Musil – e quando vou a ver, afinal, é tudo chocolate preto. E, se é aromatizado, é pior: é chocolate preto a saber a rosas, a pimenta da Jamaica, a endívias (juro: a endívias). Então, aproximo-me do pratinho de plástico com pequenos amuse-bouches para a prova e fico ali a olhar descorçoado, como uma criança a quem rebentaram o balão. Depois chega um tipo todo betinho, atrelado a uma namorada que já o arrastou pelas Zaras todas e agora ainda o arrastou para ali – e eu quase posso jurar que tanto me olha suplicante o rapaz, quando ela lhe enfia pela goela abaixo três bombons, como me olha suplicante ela própria, enquanto se dirige para a prateleira e cumpre o seu dever de mulher comprando duas barras de chocolate preto.


O meu lado rural e grunho vê uma barra de chocolate preto e logo dá por si urgente de chamar-lhe "uma tremenda paneleirice". Depois vem o meu lado urbano e polido e fica ali a olhar para o lado grunho, decepcionado: "Paneleirice nenhuma. Andamos é todos obcecados com a ideia da profilaxia – e a origem dessa angústia é um mistério importante." E, contudo, é tão mais simples do que isso. As pessoas que a si própria se persuadem a gostar de chocolate preto simplesmente não tiveram infância. E, em dias como estes, feitos de terramotos e de tsunamis e de acidentes nucleares e de moções de censura, isso não chega sequer a configurar uma tragédia. É só triste







CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 19 de Março de 2011


(imagem: © www.feedsee.com)

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Published on March 20, 2011 11:00

March 12, 2011

Elogio dos recibos verdes

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O que não falta por aí, nesta altura, são políticos a tentar capitalizar a insatisfação da juventude. Grassa em vários partidos portugueses a convicção de que não fazem parte da chamada classe política,  depositária de grande parte do ódio – e, se em algum momento as evidências o negam, há sempre os votos para argumentá-lo. Facto: o PCP ganha eleitoralmente com estas manifestações, o CDS ganha eleitoralmente com estas manifestações (embora menos) e o Bloco de Esquerda ganha eleitoralmente com estas manifestações (e ganha imenso). "Classe política", em Portugal, são o PS e o PSD. Tudo o resto, já se sabe, é paisagem. A partir do momento em que uma cantiga dos Deolinda é mote suficiente para uma moção de censura (e uma moção de censura que tem como único resultado reforçar a posição de um Governo moribundo), então não se pode pedir que as coisas sejam mais honestas do que isto.


Adiante. Hoje quero centrar-me apenas nas ditas manifestações, na ausência de horizontes profissionais dos jovens, na precaridade laboral (eu sei que está mais na moda dizer "precariedade", com "e", mas eu não sou um latinista) e nos recibos verdes. Galvanizados pelo sucesso de Parva Que Eu Sou ou apenas pela deposição de Mubarak, dois grupos de recém-licenciados portugueses decidiram dizer basta. Os protestos têm razão de ser: se a minha geração já foi especialmente massacrada – e, aliás, ainda o é, tantos e tantos são os mil-euristas de 40 anos com licenciaturas e pós-graduações e até mestrados –, esta é-o mais ainda. Mas há, neste turbilhão de protestos avulsos e aproveitamentos políticos, de reclamações concertadas e novos aproveitamentos políticos, algumas confusões etimológicas que convém desfazer.


A segunda, e mais óbvia, tem a ver com esse equívoco segundo o qual uma pessoa que passou vinte anos a estudar tem mais direito ao trabalho (e mais direito a melhor trabalho) do que outra que passou metade desses vinte anos a partir pedra, a reparar bielas ou a servir abatanados. E a primeira, e mais importante, tem a ver com o uso abusivo e facilitista da palavra precaridade, que fica além de metade dos problemas em causa (e aquém de todos os restantes). Porque, se estamos a falar de falta de horizontes, então precaridade é palavra fraquinha: quem dera a quem não tem horizontes nenhuns ter ao menos um trabalho, mesmo que precário. E, se estamos a falar da ausência de vínculo laboral, então precaridade é palavra em demasia – e, já agora, encerra o maior de todos os perigos, que é o do imobilismo.


Entendamo-nos: a última coisa de que um jovem acabado de sair da faculdade precisa é de "segurança". Há um tempo de semear e um tempo de colher. Aos 22, 25, 27, mesmo 30 anos, o trabalho não pode ser um meio: deve ser um fim em si próprio. Para ser um fim em si próprio, tem de ser perseguido. Tem de ser conquistado. Tem de ser saboreado (sim, tem de ser saboreado). E, para ser perseguido, conquistado e saboreado, não há nada pior do que exercer-se em meio dessa visão manga-de-alpaca do mundo, segundo a qual tudo o que é trabalho deve ser segurança, perenidade, regalias, sistema de saúde e diuturnidades.


Que "estes" recibos verdes são maus, ah, isso são. "Estes" recibos verdes têm impostos brutais. "Estes" recibos verdes colocam o ónus fiscal na parte mais frágil da equação. "Estes" recibos verdes abrem até a possibilidade de uma pessoa pagar mais de Segurança Social do que aquilo que ganha de honorários. Mas os recibos verdes nem sempre foram "estes" recibos verdes. E os recibos verdes, apesar de Sócrates, são, em termos absolutos, uma boa solução burocrática para a grande aventura que é o trabalho – e que, aliás, deve continuar a ser até que os compromissos e a degradação do corpo o obriguem a deixar de ser uma aventura (ou um fim em si próprio) para passar a ser um recurso de subsistência (ou um simples meio).


A situação desta geração dita "à rasca" é exasperante. Mas para dizê-lo já por aí andam, nos jornais e na rádio e na TV, centenas de mais-velhos. O que eu não ouço ninguém dizer aos jovens de hoje é que o trabalho pode ser a mais bela das aventuras. Pois di-lo aqui alguém que se aproxima dos 40, ainda passa recibos verdes e não quer que lhe chamem precário.







CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 5 de Março de 2011


(imagem: © www.joaorbranco.blog.com)







 

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Published on March 12, 2011 13:21

March 5, 2011

Esta crise tem os dias contados


Cultivo com o dinheiro, nunca o escondi, uma relação complicada. Nasci para ser rico, e isso talvez explique muito. Por outro lado, tenho feito um esforço. Às vezes, quase compreendo o funcionamento da economia. Entretanto, e para cobrir as pontas soltas, integrei a máxima que um homem deve integrar aos trinta e cinco: "Reduz as necessidades/ se queres passar bem." Nada de que não vos tenha já falado aqui. A não ser talvez quanto à citação de Jorge Palma, por esta altura bastante uncool. Mas eu ando assim. Qualquer dia mato esta personagem e construo outra, amiguinha dos animais, elogiosa para com a condução das senhoras, militante da bem-aventurança e opositora feroz de tudo o que faça colesterol. Apetece-me ser mais bonzinho.


De qualquer maneira, ainda não começo hoje. Hoje venho à vossa presença prestar o meu contributo, ainda que modesto, à nossa missão comum de combate à crise.


De há uns meses a esta parte, quase todas as minhas contas domésticas vêm erradas. É mais ou menos o mesmo que me acontece com o extracto bancário, à excepção de que é tudo ao contrário: no banco tenho sempre menos dinheiro do que penso (e o mais provável é que as contas estejam bem feitas), no resto devo sempre mais do que julgo (e a surpresa é se as contas não estiverem erradas). Se gasto dois quilowatts de luz, cobram-me três. Se consumo três metros cúbicos de água, cobram-me quatro. Há umas semanas, telefonei duas vezes para Madrid – cobram-me dois telefonemas para Sidnei. Uns meses antes, aluguei no videoclube quatro filmes malandros, para desenjoar –  no fim do mês a factura dizia que eu tinha alugado oito filmes do Al Pacino.


Foi precisamente aqui que comecei a desconfiar, porque desde o Padrinho III que desisti de ver filmes do Al Pacino. Acontece que, assim que puxei o fio, veio a meada toda atrás. E o que venho agora propor-vos é que, se estiverem em iguais preparos, se juntem a mim: paguem tudo a toda a gente e calem a boquinha. Dá um jeito enorme à economia, que precisa de circulação de dinheiro. E dá-vos um jeito ainda maior a vós, que precisam de circulação de sangue.


É que, ou um homem paga tudo aquilo que lhe cobram a mais nas suas facturas mensais e depois cala-se bem caladinho, a ver se não lhe cobram mais ainda no mês seguinte, ou tem de integrar na rotina mensal dois dias absolutamente suicidas, o primeiro passado ao telefone e o segundo na Loja do Cidadão. Ao telefone, será o suplício do costume. Digitado o número, o computador deixá-lo-á onze minutos e trinta e nove segundos a ouvir Vivaldi. Atendido o telefonema, a mocinha levará quarenta e três segundos só para se apresentar e dar-lhe as boas-vindas. Feita a pergunta, o computador deixá-lo-á novamente sete minutos e vinte e quatro segundos a ouvir Vivaldi. E, respondida enfim a sua pergunta – "Mas como é que os senhores arranjam sempre maneira de me cobrar mais dez ou quinze ou vinte por cento do que devem, caramba?" –, você terá, em todo o caso, de ir à Loja do Cidadão no dia seguinte, ainda por cima com a Primavera a latejar na cabeça.


Nesta, já se sabe, é pior ainda. Primeiro, você tira uma senha e vai-se sentar ao lado de um tipo que cheira mal. Depois, o número da sua senha aparece no visor precisamente quando, em aflição, você deu um salto à casa de banho, para refrescar-se um bocadinho da mal-cheirosa companhia. Finalmente, e duas horas depois, terá conseguido falar com o atendimento, a nova mocinha terá corrigido o problema com um belíssimo sorriso nos lábios e você terá ficado, enfim, a saber a razão do engano: "Foi emitida uma factura de valor superior." Note-se que ninguém a emitiu: nem a menina, nem o chefe da menina, nem o patrão da menina que há dois anos lhe anda a ir ao bolso à razão de cinco, dez, quinze euros por mês de pequenos enganos. A factura "foi emitida". Emitiu-se. E, se não foi ela que se emitiu a si própria, então, pronto: foi "o sistema".


Mas você quer mesmo mais este full time job? Pois então faça como eu: pague e cale-se, que para o mês que vem talvez não seja pior. FMI para quê? BCE para que diabo? Esta crise tem os dias contados – e vai resolver-se, como de costume, com dinheiro em movimento.







CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 5 de Março de 2011


(imagem: © www.strategicdc.com)







 

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Published on March 05, 2011 11:58