Elogio dos recibos verdes

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O que não falta por aí, nesta altura, são políticos a tentar capitalizar a insatisfação da juventude. Grassa em vários partidos portugueses a convicção de que não fazem parte da chamada classe política,  depositária de grande parte do ódio – e, se em algum momento as evidências o negam, há sempre os votos para argumentá-lo. Facto: o PCP ganha eleitoralmente com estas manifestações, o CDS ganha eleitoralmente com estas manifestações (embora menos) e o Bloco de Esquerda ganha eleitoralmente com estas manifestações (e ganha imenso). "Classe política", em Portugal, são o PS e o PSD. Tudo o resto, já se sabe, é paisagem. A partir do momento em que uma cantiga dos Deolinda é mote suficiente para uma moção de censura (e uma moção de censura que tem como único resultado reforçar a posição de um Governo moribundo), então não se pode pedir que as coisas sejam mais honestas do que isto.


Adiante. Hoje quero centrar-me apenas nas ditas manifestações, na ausência de horizontes profissionais dos jovens, na precaridade laboral (eu sei que está mais na moda dizer "precariedade", com "e", mas eu não sou um latinista) e nos recibos verdes. Galvanizados pelo sucesso de Parva Que Eu Sou ou apenas pela deposição de Mubarak, dois grupos de recém-licenciados portugueses decidiram dizer basta. Os protestos têm razão de ser: se a minha geração já foi especialmente massacrada – e, aliás, ainda o é, tantos e tantos são os mil-euristas de 40 anos com licenciaturas e pós-graduações e até mestrados –, esta é-o mais ainda. Mas há, neste turbilhão de protestos avulsos e aproveitamentos políticos, de reclamações concertadas e novos aproveitamentos políticos, algumas confusões etimológicas que convém desfazer.


A segunda, e mais óbvia, tem a ver com esse equívoco segundo o qual uma pessoa que passou vinte anos a estudar tem mais direito ao trabalho (e mais direito a melhor trabalho) do que outra que passou metade desses vinte anos a partir pedra, a reparar bielas ou a servir abatanados. E a primeira, e mais importante, tem a ver com o uso abusivo e facilitista da palavra precaridade, que fica além de metade dos problemas em causa (e aquém de todos os restantes). Porque, se estamos a falar de falta de horizontes, então precaridade é palavra fraquinha: quem dera a quem não tem horizontes nenhuns ter ao menos um trabalho, mesmo que precário. E, se estamos a falar da ausência de vínculo laboral, então precaridade é palavra em demasia – e, já agora, encerra o maior de todos os perigos, que é o do imobilismo.


Entendamo-nos: a última coisa de que um jovem acabado de sair da faculdade precisa é de "segurança". Há um tempo de semear e um tempo de colher. Aos 22, 25, 27, mesmo 30 anos, o trabalho não pode ser um meio: deve ser um fim em si próprio. Para ser um fim em si próprio, tem de ser perseguido. Tem de ser conquistado. Tem de ser saboreado (sim, tem de ser saboreado). E, para ser perseguido, conquistado e saboreado, não há nada pior do que exercer-se em meio dessa visão manga-de-alpaca do mundo, segundo a qual tudo o que é trabalho deve ser segurança, perenidade, regalias, sistema de saúde e diuturnidades.


Que "estes" recibos verdes são maus, ah, isso são. "Estes" recibos verdes têm impostos brutais. "Estes" recibos verdes colocam o ónus fiscal na parte mais frágil da equação. "Estes" recibos verdes abrem até a possibilidade de uma pessoa pagar mais de Segurança Social do que aquilo que ganha de honorários. Mas os recibos verdes nem sempre foram "estes" recibos verdes. E os recibos verdes, apesar de Sócrates, são, em termos absolutos, uma boa solução burocrática para a grande aventura que é o trabalho – e que, aliás, deve continuar a ser até que os compromissos e a degradação do corpo o obriguem a deixar de ser uma aventura (ou um fim em si próprio) para passar a ser um recurso de subsistência (ou um simples meio).


A situação desta geração dita "à rasca" é exasperante. Mas para dizê-lo já por aí andam, nos jornais e na rádio e na TV, centenas de mais-velhos. O que eu não ouço ninguém dizer aos jovens de hoje é que o trabalho pode ser a mais bela das aventuras. Pois di-lo aqui alguém que se aproxima dos 40, ainda passa recibos verdes e não quer que lhe chamem precário.







CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 5 de Março de 2011


(imagem: © www.joaorbranco.blog.com)







 

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Published on March 12, 2011 13:21
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