Cristina Torrão's Blog, page 79
March 27, 2015
O Erro de Shakespeare
Milhares
de pessoas ladearam as ruas de Leicester, por onde passou o cortejo fúnebre
de Ricardo III, a caminho da Catedral, onde ficou sepultado. Será esta uma confirmação da excentricidade britânica, fazendo o funeral e prestando homenagem a um rei
morto há quinhentos e trinta anos? Ainda para mais, em se tratando de um rei que inspirou
Shakespeare a criar uma das suas personagens mais fascinantes pela sua crueldade,
tornando-se mesmo num símbolo de malignidade, na peça precisamente com o título
Richard III.
«My
kingdom for a horse» é a conhecida frase extraída dessa peça, a frase
pronunciada por um rei que, em plena batalha, perde o cavalo e a coroa,
acabando por perder também a vida. Shakespeare descreveu Ricardo III como
«poisonous bunch-back’d toad», um monstro, corcunda e meio paralítico de um
braço, que matou os dois sobrinhos ainda crianças, prisioneiros na Torre de
Londres.
Deparei
com uma versão bem diferente, quando li, nos anos 1990, o romance histórico The
Sunne in Splendour , de Sharon Kay Penman. E descobri que, a partir da segunda metade do século XX, os historiadores
têm vindo a pôr em causa a lenda criada pelo dramaturgo mais famoso do
mundo. Enfim, Shakespeare era um génio da literatura, mas não era historiador. E
adaptou a lenda criada pela corte dos Tudor, decidida a denegrir a imagem da
dinastia anterior. Afinal, Ricardo III pereceu na Batalha de Bosworth Field,
lutando contra Henrique Tudor, que haveria de se tornar no rei Henrique VII,
pai do famoso Henrique VIII e avô da não menos famosa Isabel I.
Hoje
em dia, os historiadores inclinam-se mais para a versão de que Ricardo III
teria sido um rei mal-entendido e ultrapassado pelas intrigas e acontecimentos
que se teciam na Inglaterra do século XV, dilacerada pela chamada Guerra das Rosas, entre as Casas de York
e Lencastre. E os ricardians, como se
apelidam a si próprios os seguidores deste monarca, mostram-se decididos a tudo
fazer para modificar a imagem de monstro criada por Shakespeare.
A
reabilitação adquiriu grande fôlego, há cerca de dois anos, quando as ossadas
do último monarca inglês a perecer em batalha foram
encontradas num parque de estacionamento de Leicester, na sequência de
aturadas pesquisas, durante mais de vinte anos, por parte de uma historiadora da
Universidade local, igualmente a lutar pela reputação do caluniado rei. Ricardo III foi enfim sepultado com todas as honras, depois
de o seu corpo nu ter sido arrastado pelo campo de uma batalha perdida em 1485 e
enterrado numa pequena igreja, sem qualquer tipo de cerimónia.
Reconstituição do rosto de Ricardo III
Enfim,
uma coisa é certa: depois da leitura do romance The Sunne in Splendour, nunca mais vi Shakespeare com os mesmos
olhos. Génios da literatura são humanos, com virtudes e fraquezas como todos os
outros. Também Camões! Devemos apreciar uma obra pelo seu valor literário, porque,
por vezes, é um grande erro levá-la à letra…
P.S.
A história da escrita do romance de Sharon Kay Penman é também interessante,
incluindo o roubo de um manuscrito de 400 páginas, que pôs a autora sem
conseguir escrever durante cinco anos. Podem lê-la aqui.
Published on March 27, 2015 04:54
March 25, 2015
Os Segredos de Jacinta - Excertos (16)
Jacinta estava profundamente agradecida à
gémea, por ela a haver salvado, mesmo contra a vontade da família. Mas dava-se
agora conta que não seria legítimo que esse agradecimento condicionasse a sua
vida, que vivesse em função dele. Se alguém, por ter salvado outrem, o
considerasse propriedade sua e o mantivesse sob o seu favor, a fim de o
condicionar e controlar os seus desejos, passos e decisões, estava mais a
pensar em si próprio do que no outro. Estava a tentar ser feliz através do
outro, roubando-lhe a sua luminosidade, quiçá por ele próprio se sentir escuro
e vazio. E, se lhe tirava o direito de escolher o seu caminho, seria porque não o
amava.
Published on March 25, 2015 04:44
March 23, 2015
A Citação da Semana (53)
«A paciência traz a paz. Quem tem paciência, possui-se a si próprio. Quem não se possui a si próprio, é pobre».
Raimundo Lúlio
Raimundo Lúlio
Published on March 23, 2015 04:24
March 21, 2015
Pela igualdade!
A campanha escolhida pela estudante Elona Kastrati para protestar contra a discriminção sexual pode ser considerada chocante, ou, no mínimo, exagerada. Mas o facto de, em 2015, ainda existirem diferenças de salário entre homens e mulheres, ou que tantas mulheres sejam molestadas sexualmente, também não é chocante?
Elona Kastrati colou os salva-slips com as suas mensagens pela cidade alemã de Karlsruhe, incluindo paragens de autocarro. Uma outra mensagem usada por ela é: «Imagina que os homens sentissem tanto nojo pela violação como pela menstruação». O seu apelo pela igualdade, porém, não se destina apenas às mulheres. Elona também não entende, por exemplo, porque homens que mostram sensibilidade e sentimentos são ainda apelidados de fracos.
É claro que a sua campanha já anda nas redes sociais, por todo o mundo. Questionada sobre o facto de usar salva-slips para transmitir as suas mensagens, a estudante disse que tinha a ver com o seu país de origem, o Kosovo, onde as mulheres têm vergonha de comprar pessoalmente pensos higiénicos e mandam as crianças fazê-lo. E porque hão de as mulheres ter de se esconder?
Fonte das informações e da foto (em alemão).
Published on March 21, 2015 08:26
March 18, 2015
Os Segredos de Jacinta - Excertos (15)
Jacinta sentiu então uma vontade indomável de
lhe mostrar que podia ser melhor do que Zaida. Trocou a pandeireta pelas
castanholas e, a fim de contrastar com os rodopios infernais da moura, começou
a bailar em movimentos lentos e voluptuosos, realçando o manejo de braços e
mãos.
O guarda tornou a incitá-la:
- Mostra-lhe, rapariga!
Zaida apoderou-se igualmente das castanholas.
Atirando com o xaile, começou com a sua dança de ventre, sabendo que a
companheira não era muito versada naquele estilo, enquanto as castanholas lhe
estalavam furiosas nas mãos.
Os homens ensandeciam.
Jacinta livrou-se igualmente do xaile e foi-se
insinuar junto do guarda que dissera ter apostado nela. Zaida fez o mesmo com o
outro. Por sobre o adarve, faziam-se mais apostas e puxava-se pelas
bailadeiras.
O mancebo admirador de Jacinta agarrou-a pela
cinta e tentou beijá-la, mas ela deu-lhe um empurrão, causando grande galhofa
na assistência. Afastou-se dele em rodopios vigorosos, que lhe levantavam as
saias e lhe faziam voar os cabelos. Zaida juntou-se-lhe. Lançando-se olhares hostis, as duas
competiam uma com a outra, em movimentos lascivos de ancas, ou, frente a
frente, quase se tocando, fazendo abanar as lantejoulas sobre o peito.
O delírio era total, alguém gritou do adarve:
- Deixai entrar essas bailadeiras!
Outras vozes se lhe juntaram, mostrando que
uma pequena multidão lá se reunira. Mas um dos guardas contrapôs, cá de baixo:
- Temos ordens para não deixar entrar
ninguém.
- O diabo do homem não se deixa amolecer!
- Quer a ruça só para ele!
- Homessa! São bailadeiras para fidalgos! Queremo-las
cá dentro!
Published on March 18, 2015 04:41
March 16, 2015
A Citação da Semana (52)
«Olha para dentro de ti! No teu interior, existe uma fonte que nunca seca, se fores bom cavador».
Marco Aurélio
Marco Aurélio
Published on March 16, 2015 04:20
March 15, 2015
Lendo os outros
Mais um formidável texto de José Rentes de Carvalho:
«Sem ser o que se chama um bicho-de-buraco, também me não
posso considerar medianamente sociável, pois fora possuir uma capacidade
limitada para o convívio, a minha paciência suporta mal a maioria das
conversas.
Francamente, não me interessa saber o que este e aquele ressentiram ao visitar
as Pirâmides, ou qual é agora o preço do capuccino nas esplanadas dos Champs-Elysées. Menos ainda que na praça
de São Pedro, com vinte e cinco mil outros, tenham recebido a benção do Santo Padre.
Que a sogra tenha sido operado a um quisto no pescoço ou que, devido à
escandalosa subida dos preços, já não valha a pena comprar casa de férias na Dordogne.
De visitas são poucas as que gosto, mas os jantares, que sempre me foram um
momento agradável do dia, nalgumas ocasiões, e com certos convivas, estão-se-me
a transformar em martírio.
Fadiga da idade, impaciência inata, o caso é que as mais das vezes, depois de
horas à mesa, não consigo evitar que o meu rosto revele o aborrecimento, que os
olhos procurem o vazio, o cérebro se me enevoe e a língua recuse participar na
conversa.
Transformo-me num macambúzio anfitrião, o que pelos jeitos não afecta esses
hóspedes. Indiferentes ao meu humor, eles continuam a contar do Papa e da Dordogne, e do quisto, e da má qualidade
da hortaliça, e do que viram ontem na televisão. Incansáveis, repetem as
Pirâmides, o preço do cappucino, recordam a pontada que uma vez lhes
deu à saída do teatro, remoem os seus pequeninos interesses. Mostram as botas
que, regateando, compraram em Lisboa por dez réis de mel coado. Desfiam com
minúcia as razões da queda do índice da Bolsa...
Duas, três, cinco, as horas arrastam-se, a minha cabeça oura, revira-se-me o estômago,
falta-me o ar. Sinto-me exausto, derreado pelo contraditório esforço de
permanecer cortês e disfarçar a misantropia».
«Sem ser o que se chama um bicho-de-buraco, também me não
posso considerar medianamente sociável, pois fora possuir uma capacidade
limitada para o convívio, a minha paciência suporta mal a maioria das
conversas.
Francamente, não me interessa saber o que este e aquele ressentiram ao visitar
as Pirâmides, ou qual é agora o preço do capuccino nas esplanadas dos Champs-Elysées. Menos ainda que na praça
de São Pedro, com vinte e cinco mil outros, tenham recebido a benção do Santo Padre.
Que a sogra tenha sido operado a um quisto no pescoço ou que, devido à
escandalosa subida dos preços, já não valha a pena comprar casa de férias na Dordogne.
De visitas são poucas as que gosto, mas os jantares, que sempre me foram um
momento agradável do dia, nalgumas ocasiões, e com certos convivas, estão-se-me
a transformar em martírio.
Fadiga da idade, impaciência inata, o caso é que as mais das vezes, depois de
horas à mesa, não consigo evitar que o meu rosto revele o aborrecimento, que os
olhos procurem o vazio, o cérebro se me enevoe e a língua recuse participar na
conversa.
Transformo-me num macambúzio anfitrião, o que pelos jeitos não afecta esses
hóspedes. Indiferentes ao meu humor, eles continuam a contar do Papa e da Dordogne, e do quisto, e da má qualidade
da hortaliça, e do que viram ontem na televisão. Incansáveis, repetem as
Pirâmides, o preço do cappucino, recordam a pontada que uma vez lhes
deu à saída do teatro, remoem os seus pequeninos interesses. Mostram as botas
que, regateando, compraram em Lisboa por dez réis de mel coado. Desfiam com
minúcia as razões da queda do índice da Bolsa...
Duas, três, cinco, as horas arrastam-se, a minha cabeça oura, revira-se-me o estômago,
falta-me o ar. Sinto-me exausto, derreado pelo contraditório esforço de
permanecer cortês e disfarçar a misantropia».
Published on March 15, 2015 04:37
March 13, 2015
Ajudas Preciosas
Hans-Jürgen Hufeisen, um flautista e compositor alemão, nascido em 1952, publicou a sua biografia em novembro passado. Enfim, pensei, mais alguém que aproveita o facto de ser mais ou menos conhecido para ganhar um dinheirinho extra.
Deparei com um artigo num jornal sobre o livro e comecei a ler, a ver se era minimamente interessante. E, de facto, surpreendeu-me, logo no início: a mãe de Hans-Jürgen Hufeisen teve-o sozinha, num quarto de hotel, e abandonou-o com dois dias de vida.
O futuro flautista cresceu num lar de órfãos e, segunda surpresa: diz ter boas recordações desses tempos! Perguntei-me se seria uma maneira de ele idealizar a sua infância, como quase todos nós o fazemos, uns mais, outros menos. Ao continuar a ler, porém, constatei que havia verdade nestas suas palavras. A educadora que se ocupou do pequeno Hans-Jürgen era professora de música e ofereceu-lhe a primeira flauta, no seu sexto aniversário. O rapaz surpreendeu-a, parecia feito para enveradar por aquele caminho, a música passou a ser a sua atividade favorita, a que intensamente se dedicava. E, quando a professora notou que ele era já melhor do que ela, enviou-o para o Conservatório.
Aqui, fiz uma pausa na leitura, a fim de refletir sobre esta passagem. «Quando a professora notou que ele já era melhor do que ela»... Comovi-me com esta maravilha! Infelizmente, observo, muitas vezes, que os pais, ou educadores, invejam as capacidades e os talentos dos seus filhos, ou das crianças a seu cargo. Não raro, tentam abafar, bagatelizar, tais talentos, não vão os rebentos ultrapassá-los e passarem a ser o centro das atenções, passarem a ser aqueles que são elogiados e admirados, em vez deles! Podem perder-se verdadeiros talentos, deste modo. Pode, acima de tudo, ser a origem de uma tragédia pessoal.
Uma professora/educadora trata de uma criança, que nem vive em casa dela, vive numa instituição, uma criança que foi abandonada pela própria mãe. Um dia, essa professora nota nela um talento maior do que o dela e acha que tal não se deve perder, que deve ser estimulado. E essa professora envia a criança para o lugar certo, continuando a apoiá-la...
Hans-Jürgen Hufeisen é o bebé abandonado que conseguiu, em adulto, atingir a fama. É um homem de grande mérito. Mas não podemos esquecer que, não fosse a prova de amor incondicional dado pela sua educadora, ele provavelmente não o teria conseguido. É o melhor presente que se pode dar a alguém! E é smplesmente maravilhoso!
Published on March 13, 2015 04:30
March 11, 2015
Lousas, 11 de Março e Verão Quente
Alma Nostra
Ainda sou do tempo em que se usavam lousas na
escola primária: um pedaço de ardósia, de forma quadrada
ou retangular, dentro de um caixilho de madeira. Escrevíamos com um
ponteiro, também de lousa, que se partia facilmente. Nada simples, para crianças
de seis ou sete anos. E,
embora fosse barato e a professora costumasse ter muitos, guardados num armário
da sala de aula, torcia o nariz e havia sempre uma repreensão, quando tal
acontecia. Se o acidente se repetisse com alguma frequência, a criança tinha um
problema.
Também as lousas se partiam facilmente. Por
vezes, ao abrir a pasta, no início da aula, dava-se com a lousa partida. E logo
nela tínhamos feito o trabalho de casa! A lousa servia para os trabalhos
de casa e para fazer exercícios, normalmente, de aritmética, por se poder
apagar com facilidade o que lá se escrevia. Normalmente, com cuspo. Só depois de estar tudo direitinho, se copiavam os exercícios para o caderno, onde se escrevia com
esferográfica, ou até com caneta de tina permanente. Assim nos ensinavam a sermos asseadas e a ter o
caderno em ordem.
Engana-se, porém, quem julgue que estou a
suspirar pelos bons velhos tempos, em que as crianças aprendiam a
fazer cálculos de cabeça e a ser asseadas. Vivíamos subjugadas, com terror de
darmos um passo em falso, com medo que nos batessem. E, quando olho para a
fotografia tirada na minha quarta classe, só vejo uma miúda tímida, submissa e assexuada.
Esta fotografia foi tirada no inverno de
1975, talvez em março, já não me lembro. O que é certo, é que o país andava em
convulsões, com o contragolpe de 11 de março e a consequente
viragem à esquerda, a radicalização que provocou nacionalizações em massa e que
culminaria no Verão Quente, com a guerra civil a espreitar a cada canto.
Eu pareço viver a leste de tudo isso. E
vivia! Eu era ainda uma menina de escola salazarista.
Published on March 11, 2015 04:03
March 9, 2015
A Citação da Semana (51)
Published on March 09, 2015 04:12


