Cristina Torrão's Blog, page 94
July 5, 2014
Excertos # 11
Por aquela altura, soube-se que el-rei D.
Afonso aguardaria o fim da Quaresma para casar no Domingo de Páscoa. O alcaide
de Gaia, o bispo do Porto e todos os nobres passaram a andar numa roda-viva,
preparando a viagem, pois ninguém queria perder tão grande acontecimento.
Fidalgos, clérigos e povo deslocar-se-iam em massa para Coimbra, onde se previa
festa rija. El-rei encarregar-se-ia de que mesmo os mais pobres dos seus
súbditos tivessem o seu pedaço de carne e a sua caneca de vinho.
Published on July 05, 2014 06:40
July 3, 2014
A Noite das Mulheres Cantoras
Lídia Jorge dedica-se, neste romance, ao tema do passado, mais propriamente, ao embelezar do passado. O ser humano tem uma enorme capacidade de apagar as partes dolorosas, realçando o agradável. Enganamo-nos a nós mesmos, passamos a vida a idealizar. Idealizamos a nossa infância, a nossa juventude e tudo o resto que já passou. Falamos dos «bons velhos tempos», esquecendo que, se fôssemos mais honestos connosco próprios, admitiríamos que não foram tão bons assim. Em muitos casos, pouco tiveram de bom.
Num espetáculo de verão, reunem-se quatro mulheres que haviam pertencido a uma banda de cinco. Cantavam e dançavam, 21 anos antes, gravando um disco e obtendo um sucesso retumbante. Gisela Batista, a líder do grupo, apelidade de maestrina, recorda, frente às câmaras, aqueles tempos gloriosos, de cinco jovens unidas no amor à música e à dança. Solange Matos, a narradora, não a desmente, para não lhe estragar a noite, mas sabe que a relidade não foi bem assim. E vai desfiando a história, contada em flashback, numa espécie de confissão.
Nada se consegue sem disciplina nem trabalho duro. E Gisela Batista, a maestrina, impõe um regime ditatorial ao resto do grupo, que inclui pesagens diárias para controlar o peso e proibição de namoros. As infrações são castigadas com chantagens emocionais e a consequente criação de profundos sentimentos de culpa. Quem mais sofre é Madalena Micaia, uma africana, com uma voz de exceção, mas mais volumosa do que a maestrina permite. Por uma qualquer razão (que se revela mais tarde), ela não consegue emagrecer. E, depois do disco gravado, já não faz parte do grupo, nem participa nas tournées. O seu desaparecimento nunca foi explicado publicamente e Gisela Batista diz, no espetáculo que as reúne 21 anos depois, que Madalena Micaia não resisitiu ao chamamento da terra-natal e abalou para África. Solange de Matos sabe que isso não corresponde à verdade. O sumiço da africana implica um segredo terrível que lhe ensombra a vida.
Lídia Jorge escreve do alto do seu talento e da sua experiência, revelados am cada cena, cada parágrafo, cada frase, cada palavra. O valor literário do romance é indiscutível. A meu ver, só terá um defeito: dificilmente interessará ao público masculino. É daqueles romances que só podia ter sido escrito por uma mulher, (quase) só para mulheres. Empolgou-me particularmente, pois houve uma altura da minha vida em que também andava envolvida em ensaios de canto e dança. Claro que os grupos a que pertenci nunca atingiram sucesso, mas revi-me em muitos momentos dos ensaios do grupo da maestrina. Para quem não teve essa experiência, mesmo sendo mulher, poderá ser difícil de "agarrar".
Uma nota desfavorável para a textura aveludada da capa, a imitar as cortinas do teatro, mas, na minha opinião, desagradável ao toque.
Published on July 03, 2014 02:29
July 1, 2014
Excertos # 10
- Não se diz que estamos todos nas mãos de
Deus? Não podemos cair mais fundo do que isso!
Jacinta quedou-se perplexa, depois retorquiu:
- Há quem caia no inferno…
Zaida tornou a fixar nela os seus olhos
negros, muito brilhantes:
- Não creio no inferno. Só em Deus!
Jacinta tentava captar o sentido daquela
afirmação. Recordou as aulas do convento, da leitura da Bíblia. Havia o Deus
cruel, vingativo e castigador do Antigo Testamento. Mas também havia o Deus
misericordioso, que perdoava e que agarrava precisamente aqueles que caíam mais
fundo. E era esse o Deus de Jesus Cristo, o Messias.
Mas como sabia Zaida, uma moura, tais cousas?
- Vós não rezais a um tal de Alá?
- Deus é Deus, dê-se-lhe o nome que se lhe
der.
Published on July 01, 2014 03:55
June 30, 2014
A Citação da Semana (15)
No silêncio, a alma encontra o seu caminho de luz e todos os enganos e mentiras se diluem em claridade cristalina. A alma precisa de paz, a fim de alcançar a sua grandeza.
Mahatma Gandhi
Mahatma Gandhi
Published on June 30, 2014 02:59
June 28, 2014
Excertos # 9
O povo ali aguardou que terminasse a missa,
nem quando começou a chover arredou pé, pois não se queria perder a
oportunidade de, mais uma vez, pousar os olhos na noiva d’el-rei.
À saída, porém, a cena repetiu-se, a donzela
saboiana permaneceu abrigada no seu manto, até porque a chuva miudinha
persistia. Havia agora ainda mais gente do que antes da cerimónia religiosa e o
grupo de Jacinta foi empurrado para um local tão perto do cortejo nobre, que
ela se viu obrigada a desviar-se para não ser atropelada pelo cavalo de um dos
acompanhantes de D. Mafalda. Por um momento, almejou vislumbrar a face que o
capucho escondia e sentiu como se aquele pedaço de pele pálida lhe houvesse
revelado os sentimentos da sua dona. Não parecia ser muito mais feliz do que
ela própria, limitada a criada de soldadeiras. D. Mafalda, noiva de um rei, a
donzela mais nobre que alguma vez vira, não tinha, tal como ela, direito a
escolher o próprio destino. Quem sabe de que sonhos e paixões ela se vira
obrigada a desistir...
Published on June 28, 2014 05:52
June 24, 2014
Regresso
As férias em Portugal estão a chegar ao fim, na quinta-feira iniciamos a viagem de regresso à Alemanha. Mas nem sei bem se foram férias, houve tanto movimento! Bem, se considerar que "corri por gosto", posso chamar-lhes férias, pois desdobrei-me em apresentações do meu novo livro - experiência nova, não tinha havido lançamentos nem apresentações dos anteriores. Além disso, comprámos um apartamento em Macedo de Cavaleiros, local em que são mais baratinhos (e onde moram os meus pais). Planeamos passar mais tempo em Portugal. Para isso, o meu marido reduziu o tempo de trabalho, reduzindo igualmente o ordenado, voluntariamente, o que é bem diferente da situação em Portugal. De qualquer maneira, não deixa de ser uma decisão corajosa e ainda estamos para ver se foi boa...
Espero poder aumentar a atividade aqui no blogue, depois do regresso. Há muito tempo que não publico uma opinião literária e há um livro que está à espera há semanas: A Noite das Mulheres Cantoras, de Lídia Jorge. Entretanto, estou a ler, pela primeira vez, A Ilustre Casa de Ramires, que se tem revelado uma surpresa. A seu tempo explicarei porquê.
Enfim, espero que o Andanças torne a ser, na próxima semana, um blogue mais pessoal, pois tem vivido de posts programados, com muitos excertos de "Os Segredos de Jacinta". O que aliás também convém, nesta altura...
Espero poder aumentar a atividade aqui no blogue, depois do regresso. Há muito tempo que não publico uma opinião literária e há um livro que está à espera há semanas: A Noite das Mulheres Cantoras, de Lídia Jorge. Entretanto, estou a ler, pela primeira vez, A Ilustre Casa de Ramires, que se tem revelado uma surpresa. A seu tempo explicarei porquê.
Enfim, espero que o Andanças torne a ser, na próxima semana, um blogue mais pessoal, pois tem vivido de posts programados, com muitos excertos de "Os Segredos de Jacinta". O que aliás também convém, nesta altura...
Published on June 24, 2014 08:38
Excertos # 8
Desfeita a porta, três homens entraram no
abrigo. Um deles segurava um archote e, depois de olharem em volta, soltaram
dois sabujos que não tiveram dificuldade em dar com o esconderijo dela. Com o
manto pela cabeça, Jacinta protegia-se o melhor que podia dos animais
acirrados. Um fixou-se no seu antebraço, o outro na canela. Sentiu-lhes as
dentuças na carne.
Julgou que a deixariam morrer, desfeita pelos
cães, quando dois dos homens vieram, enfim, segurar os animais. O terceiro
acercou-se dela e, por mais que Jacinta tentasse resistir-lhe, ele conseguiu
descobrir-lhe a cabeça. Agarrou-a pelos cabelos e vociferou:
- Some-te, rameira, que andas a ensombrar a
vida da minha filha!
Por entre as lágrimas de dor, raiva e
vergonha, Jacinta viu os olhos furiosos de D. Martim de Gração. Balbuciou:
- Irei… Mal o sol nasça… Juro-vos…
- Vais-te pôr a andar mas é já, zoupeira! Os
lobos que te comam!
Published on June 24, 2014 03:44
June 23, 2014
Apresentação em Lisboa
Published on June 23, 2014 06:58
A Citação da Semana (14)
Deus não diz à pessoa: tens primeiro de te modificar, só depois de aceito.
É antes porque Ele a aceita, que a pessoa se modifica.
Klaus Hemmerle
É antes porque Ele a aceita, que a pessoa se modifica.
Klaus Hemmerle
Published on June 23, 2014 02:54
June 21, 2014
Excertos # 7
Embrenhou-se na serra, correndo sem parar,
com a trouxa na mão. Não fugia apenas do mosteiro. Fugia também do turbilhão de
sentimentos que devastava o seu peito com a força de um tufão. Fugia, como se o
virar das costas aos destroços negasse a sua existência. Mesmo quando já sentia
falta de ar e as pernas lhe doíam, continuou a galgar os caminhos íngremes da
serra.
Chegada ao moinho, deixou-se cair no chão, a
respirar às golfadas.
Não deu conta de se acalmar. A certa altura,
tomou consciência do frio, dos pés gelados, sem saber há quanto tempo ali
jazia. Rastejou até ao canto das mantas, onde se quedou tolhida, sem expressar
qualquer reação. Ignorava fome e sede, ignorava tudo o que significasse vida,
esse albergue de sensações e pensamentos que a aterrorizavam.
Published on June 21, 2014 06:39


