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Ainda que tivesse diante de si uma mocidade de centenas e centenas de anos, como os deuses, isso também teria sido pouca coisa. E, em vez disso, ele dispunha de uma vida simples e normal, uma pequena juventude humana, avaro dom, que os dedos das mãos eram suficientes para contar e que se dissolveria antes de se dar a conhecer.

Ontem e anteontem eram iguais, ele não mais sabia distingui-los; um acontecimento de três dias antes ou de vinte acabava por parecer-lhe igualmente distante. Assim se dava, à sua revelia, a fuga do tempo.

todas essas coisas já haviam se tornado suas, e abandoná-las seria doloroso.

mas já havia nele o torpor dos hábitos, a vaidade militar, o amor doméstico pelos muros cotidianos.

Parecia ontem, entretanto o tempo se consumira com seu ritmo imóvel, idêntico para todos os homens, nem mais lento para quem é feliz nem mais veloz para os desaventurados.

Angustina era pálido e estava sentado com seu perene ar de distanciamento, como se não se interessasse absolutamente por eles, como se estivesse ali por mero acaso.

Do deserto do norte devia chegar a sorte, a aventura, a hora milagrosa, que, pelo menos uma vez, cabe a cada um. Para essa vaga eventualidade, que parecia tornar-se cada vez mais incerta com o tempo, os homens consumiam ali a melhor parte de suas vidas.

o que era bom ficou para trás, muito para trás, e ele passou adiante, sem dar por isso.

compreende-se que o tempo passa e que a estrada, um dia, deverá inevitavelmente acabar.

Falta muito? Não, basta atravessar aquele rio lá longe, ultrapassar aquelas verdes colinas. Ou já não se chegou, por acaso? Não são talvez estas árvores, estes prados, esta casa branca o que procurávamos? Por alguns instantes tem-se a impressão que sim, e quer-se parar ali. Depois ouve-se dizer que o melhor está mais adiante, e retoma-se despreocupadamente a estrada.

justamente aquela noite iria começar para ele a irreparável fuga do tempo.

Ah, fazê-la entender a esqualidez daqueles muros, aquele vago ar de punição e exílio, aqueles homens desconhecidos e absurdos...

Tudo ali dentro era uma renúncia, mas para quem, para que misterioso bem?

Buzzati aborda, antes de tudo, os absurdos da existência com o objetivo quase explícito de mostrar a impossibilidade de se chegar a uma conclusão sobre os problemas da existência humana.

Eurídice voltou-se ainda mais para dentro de si, e para dentro do escritório com estantes de livros até o teto, onde passava a maior parte do dia.

Antenor se tornou essa coisa ainda mais antenoriense. Cheio de si, seguro de tudo, incapaz de erros, e ai de quem lhe dissesse que falhou em algum momento - se todos falhassem como ele o Brasil seria uma potência.

Seu Manoel sentava-se em um sofá perto da janela. Olhava o Atlântico por horas, talvez em busca das almas perdidas em correntes elétricas, talvez pensando na sua Ana, talvez só olhando a bunda daquela morena, e como é que pode se vestir com uma roupa assim tão curta, este mundo já foi melhor.

principalmente quando a menina olhava mencólica pela janela, como que pensando em tudo o que tinha para viver e que jamais seria vivido.

e com o mais amplo sorriso de todos os que deu até então disse que sim, que ele aceitava nunca se casar com ela.

era bom e intenso e eterno. até deixar de ser.

foi mais ou menos nessa época que se formou a essência da cidade, e quem morava no Rio deixou de ser português imigrante, turco de nascença, brasileiro legítimo, chinês expatriado, meio branco, meio mulato ou meio índio para se tornar carioca.

foi um abraço que dizia "deixa eu te tocar pra ver se você existe. deixa eu ver se é mesmo verdade que você está aqui".

para ela o casamento era algo endêmico, algo que acometia homens e mulheres entre dezoito e vinte e cinco anos. tipo surto de gripe, só que um pouquinho melhor. o que eurídice realmente queria era viajar o mundo tocando sua flauta.

Elas não estavam interessadas em Antenor, mas na ideia de Antenor. Arrumavam-se e pintavam-se não para fazer Antenor se interessar por elas, mas pela ideia que teria delas.

tinham orelhas mas não tinham ouvidos, e por isso eram incapazes de assimilar aquilo que não interessava.

essa é a história de eurídice gusmão, a mulher que poderia ter sido.

só existia para classificar as pessoas no cruel sistema de comparações criado para entender o mundo.

e foi assim que concluiu que não deveria pensar. que para não pensar deveria se manter ocupada todas as horas do dia.

a memória é frágil, e o transcurso de uma vida, muito breve, e tudo acontece tão depressa, que não conseguimos ver a relação entre os acontecimentos, não podemos medir a consequência dos atos, acreditamos na ficção do tempo, no presente, no passado e no futuro, mas também pode ser que tudo aconteça simultaneamente

(...) tive a ideia de que estava armando um quebra-cabeças em que cada peça tinha uma localização precisa. Antes de colocá-las todas, parecia-me incompreensível, mas estava certa de que, se conseguisse terminá-lo, daria um sentido a cada uma, e o resultado seria harmonioso. Cada peça tem uma razão de ser tal como é.