Cristina Torrão's Blog, page 85

December 6, 2014

Os Segredos de Jacinta - Excertos (3)










Pairava o receio sobre os frequentadores da
igreja de São Pedro do Paraíso. Sabiam da existência de mouros, gente cruel,
que renegava os ensinamentos de Cristo, mas havia muito que a Terra de Paiva se
encontrava fora da sua ameaça, nem sequer se organizavam correrias e fossados,
como nas povoações de fronteira. As terras dos mouros ficavam para lá de
Coimbra, onde o infante tinha a sua corte, mas ninguém fazia ideia onde se
situava. Só se sabia que era longe.



Durante a missa, em que celebrou a
ressurreição do Senhor, o pároco Sindila falou na necessidade da guerra contra
os infiéis e, no fim, pôs o altar à disposição de um dos cavaleiros, que deixou
claro que D. Afonso Henriques havia mister de todos os homens do condado. Os
mouros haviam, há cousa de dois anos, destruído um castelo que o infante
mandara construir num sítio chamado Leiria, chacinando duzentos e quarenta
soldados e cavaleiros. D. Afonso tencionava vingar-se, levando a cabo um
fossado de proporções nunca vistas, penetrando bem fundo nas terras dos pagãos.
O sacrifício seria recompensado, haveriam de volver ricos, cheios de despojos:
ouros, sedas e brocados, além de escravos e animais.





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Published on December 06, 2014 02:45

December 4, 2014

Estão mesmo a pedi-las








Publiquei há dias, no meu mural do Facebook, um link conduzindo a uma notícia, em que se dava conta de uma advogada inglesa ter iniciado um
boicote às férias no Algarve
, com petição e recolha de assinaturas, por causa de cavalos que via com sinais de subnutrição e desidratação. As
reações não se fizeram esperar: aqui d’el-rei, que uma inglesa tontinha e
histérica se atrevia a atacar o nosso jardinzinho à beira-mar plantado, por
causa de um bando de equinos magritos! Afinal, nós temos as melhores praias do
mundo, a melhor comida do mundo, somos o povo mais hospitaleiro do mundo, etc.
e tal. Que mais quer a mulher? Que se fique lá pela sua Inglaterra natal, onde
há problemas que sobrem!




Pois é, meus amigos, eu também amo o meu
país. Por isso mesmo, não me limito a ver aquilo que é bom. É necessário tomar
consciência do que está mal, principalmente, quando se trata de uma fonte de
receitas tão importantes como o turismo. Por acaso, houve um comentador,
residente em Sagres, que confirmou o estado de calamidade que tem observado,
até contou um caso de uma carcaça de um cavalo que jazeu a céu aberto, na berma
da estrada, durante três dias!




Como eu aqui já disse, somos nós, humanos, os
mais beneficiados, quando se trata de proteger e defender os animais. Por aí se
vê, de facto, o nível de um país. Mas a coisa não se ficou por aqui! Houve um
comentador que achou ter encontrado o remédio certo para inglesas histéricas:
umas «boas palmadas nas nalgas»!




Homens que se julgam criaturas superiores,
com a obrigação de educarem as mulheres, se preciso for, com umas tareiazinhas,
há-os aos montes. Afinal, elas estão mesmo a pedi-las e a paciência de um homem
é limitada.




Depois admirem-se de haver tanta violência
doméstica!

Arrogância para dar e vender… Isto está tudo
ligado, é o que vos digo!








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Published on December 04, 2014 02:39

December 2, 2014

Farrusco - Um Cão de Gado Transmontano



















Poucos livros me emocionaram tanto como este.



Através do Farrusco, Isabel Mateus refere a extinção de um modo de vida transmontano: a pastorícia. Somos transportados para um tempo e um lugar
onde a luta pela sobrevivência é dura, tanto para humanos, como para animais.
E, no entanto, há quem saiba perfeitamente corresponder à empatia transmitida
por um cão, assim como há quem lhe fique indiferente, ou a despreze. Não tenho
dúvida de que o coração de um homem se pode medir pela maneira como ele trata
os animais. Sendo eles o símbolo da nossa essência, despertam o mais
íntimo do nosso carácter, seja a comunhão de sentimentos, a mera indiferença,
ou a crueldade, sem pruridos.




O Farrusco foi feliz enquanto teve um dono que lhe apreciava
as capacidades, reconhecia-o
como parceiro indispensável na guarda do rebanho, um trabalho perigoso, quando
se tratava de defender as ovelhas dos lobos e até de ladrões de gado. Mas dava sentido à sua vida.




Quando o dono emigrou, o Farrusco foi guiado para um novo lar, de um pastor que nunca o respeitou. Nem sequer lhe dava comida
suficiente e não hesitava em castigá-lo duramente com o seu cajado, caso algo não
lhe agradasse. Quando o Farrusco, apesar de não ser velho, já de nada lhe
servia, pois também este pastor vendeu o seu rebanho, o homem tratou de se
livrar dele. Encarregou um seu neto de empurrar o cão para dentro de uma cova, que dava acesso a uma antiga mina de ferro, provocando sofrimento atroz também à criança, sem arcaboiço para carregar com tamanha culpa.









O Farrusco sobreviveu uma semana no escuro, ferido, sem
água nem comida. Um grupo de crianças atendeu ao seu ganir desesperado e
conseguiu salvá-lo. Uma idosa, que o conhecia de outros tempos, deu-lhe
guarida. O Farrusco, embora sentindo que não levava a vida para que fora
destinado, adaptou-se àquela velhinha que o tratava com dignidade, dividindo com ele o pouco que tinha. Mas a senhora não resistiu a mais um inverno rigoroso das montanhas
transmontanas. O Farrusco acompanhou o caixão ao cemitério, ficou lá um dia
inteiro de guarda, na neve, e voltou, depois, à sua vida errante, sem comida certa.
Desaparecia dias a fio, no meio das montanhas, e regressava à aldeia, mais
escanzelado do que nunca, dependendo da caridade, que era pouca.




Um dia, Josefina, uma das crianças que o tinha resgatado da cova, decidiu segui-lo. E viu-o encaminhar-se para o local onde o seu primeiro dono havia construído um bardo (curral de ovelhas), assim como um abrigo para ele próprio, a fim de passar as noites de estio com o rebanho no monte. Apenas lá se encontrava o abrigo abandonado, mas o Farrusco via o bardo e as ovelhas, recordando os melhores momentos da sua vida, em
plena comunhão com o pastor, os dois se apoiando na solidão mútua. Um bom lugar
para se despedir deste mundo...









Este pequeno grande livro (118 páginas, com ilustrações de Cristina Borges Rocha) vale pelo estilo despojado e que inclui termos esquecidos e/ou pouco usados e
pela maneira como Isabel Mateus nos consegue dar a perspetiva do
animal, perfeitamente verosímil. Um cérebro, sem dúvida, menos incapacitado do que
o nosso, mas, por isso mesmo, tão tocante. A inteligência sofisticada não está
lá, mas aquilo que constitui a essência de um ser vivo: o sentido do dever, a
fidelidade à família e a saudade dos tempos em que o mundo ainda fazia sentido,
quando se dá conta de que tudo é perene e todo o fim é amargo. Restam as lembranças...






Nota: o livro pode ser adquirido online na Wook e na Bertrand.




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Published on December 02, 2014 02:49

December 1, 2014

A Citação da Semana (37)

«É melhor que fale a nossa vida, não as nossas palavras».



Mahatma Gandhi
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Published on December 01, 2014 02:18

November 29, 2014

Os Segredos de Jacinta - Excertos (2)








À medida que a noite caía, o arraial
tornava-se mais agreste e jocoso. Os homens e muitas das mulheres já haviam
bebido a sua conta, jograis e segréis começavam com as cantigas de escárnio e
maldizer, a que se juntavam as pantominices de bufões e histriões. Um dos
segréis gabava-se, ao som das cítaras, de obter os favores da mulher de um
nobre, sem este dar pela conta. O povo delirava com a linguagem rude,
gargalhando até à exaustão.



Seguiu-se outra cantiga, em que se contava
como uma dama da nobreza tentava seduzir um jogral, sem ser correspondida.
Apreciava-se este tipo de sátira, maior vergonha não podia suceder a uma fidalga:
dar-se aos amores de um homem de condição inferior, neste caso, com a agravante
de o jogral a desdenhar. Para aumentar a animação, uma das soldadeiras
encarnava o papel da dama, tentando, através de gestos e movimentos sensuais,
atrair um dos histriões. Perante a indiferença deste, não hesitava em agarrar-se
a ele, apalpando-lhe as partes pudendas.



Era o delírio total.



Passou-se a uma cantiga sobre um frade que se
fazia passar por impotente (escaralhado),
mas que ia emprenhando todas as donas que dele se acercavam, tendo três delas dado
à luz no mesmo dia.











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Published on November 29, 2014 03:54

November 27, 2014

O Bardo do Farrusco




















Rebanhos cobriam os montes nordestinos, um modo de vida, a
que a solidão e a pobreza puseram fim, empurrando os pastores para a emigração.
Para trás, ficaram os cães de gado transmontanos, desorientados, escorraçados,
escanzelados.












O Farrusco subiu uma última vez ao monte. No planalto vazio,
viu o bardo que outrora guardava junto com o pastor, revivendo os melhores momentos
da sua vida. Josefina, a menina que o seguiu, foi a única testemunha do clarão
nos seus olhos, à lembrança de um tempo em que o mundo ainda fazia sentido.












Qual será o nosso bardo, aquele que nos iluminará,
pela última vez, os olhos desiludidos e cansados? 






(Em breve, a minha opinão sobre "Farrusco - um cão de gado transmontano", de Isabel Mateus; ilustrações de Cristina Borges Rocha)





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Published on November 27, 2014 09:19

November 26, 2014

Os Segredos de Jacinta - Excertos (1)

- É o que eu digo: Deus comunica com esta criança inocente, de olhos mais cristalinos do que as águas dos ribeiros no estio.
A mãe Adosinda benzia-se, expirando ais, como se tanta devoção lhe pesasse sobre o peito. Por sua vez, o pai e os dois irmãos, quando o mais velho ainda era vivo, olhavam com desconfiança para a moça, como os homens olham para as mulheres que dizem coisas que eles não entendem.
A partir dos dez anos, Joana começou a dar conselhos ao povo que se juntava nas romarias e nas feiras. Não fosse a proteção do pároco Sindila, muitos haveriam de dizer que só poderia ser bruxedo, obra do chifrudo! Com treze anos, foi-lhe atribuído um milagre, ao pressentir um acidente com uma criança, impedindo-a de morrer afogada no rio Arda.
O pároco Sindila não havia mister de mais provas. Empenhou-se de alma e coração na realização do sonho da moça: tornar-se noiva de Cristo.
A profissão de Joana elevou ainda mais o prestígio da família, garantindo a salvação de todos os seus membros, como Adosinda, por entre ais e benzeduras, não se cansava de repetir.

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Published on November 26, 2014 11:54

November 25, 2014

Carinho Animal













«Mas o destino daquela noite ainda não estava completamente
determinado. As horas seriam intermináveis até à alba, porque o outro
borreguinho estava atravessado no corpo da mãe e precisava de mãos humanas e
experientes que o puxassem para a vida. Enquanto a Mocha tentava expurgar um
corpo que já não deveria pertencer ao seu útero morno, o Farrusco aproximava-se
da outra cria e tentava aquecê-la. A determinada altura sentiu inclusive que o
cordeirinho tateava o seu ventre à procura da teta materna».




In “Farrusco – um cão de gado transmontano”, de Isabel
Mateus

Ilustrações de Cristina Borges Rocha





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Published on November 25, 2014 04:07

November 24, 2014

A Citação da Semana (36)

«Acelerar não ajuda. Partir à hora certa é o mais importante».



Jean de La Fontaine




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Published on November 24, 2014 02:14

November 23, 2014

A Esmeralda do Rei
















Foi bom reencontrar personagens históricas com as quais já “convivi”,
como D. Afonso Henriques, D. Sancho I e a infanta D. Teresa. É sempre
refrescante deparar com uma visão dos acontecimentos diferente da nossa e, no
entanto, encontrar pontos de contacto, certas coincidências, no carácter
imaginado de pessoas que viveram há quase mil anos, mas cujas existências
ficaram registadas. Gostei igualmente da abordagem ao início do reinado de D.
Afonso II, sobre o qual sei pouco.




Este livro conta a história de Esmeralda, filha de uma moura
e de um cruzado que se estabeleceu em Arruda, depois da conquista de Lisboa. Trava
conhecimento com D. Sancho ainda infante e aprende a amá-lo, mas a vida de Esmeralda
será marcada por múltiplas aventuras, que tanto a aproximam, como a afastam do seu rei. Não pude deixar de recordar livros meus,
nomeadamente, A Cruz de Esmeraldas e
Os Segredos de Jacinta, o que não
deixa de ser curioso, pois todos estes romances foram escritos numa altura em
que o Paulo Pimentel e eu não tínhamos conhecimento da existência um do outro,
nem lido nenhum dos livros de cada um.




Acompanhando o percurso de Esmeralda, entramos na vida e nos
acontecimentos que marcaram o reino português nas últimas décadas do século XII
e nas primeiras do seguinte. Notável é a capacidade do autor em vestir a pele
de uma personagem feminina, cheia de sensibilidade. A escrita de Paulo Pimentel
é bastante poética, muito marcada pela comunhão entre o ser humano e a natureza.
Somos parte de um cosmos e sentimo-lo, se algum dia descobrirmos as nossas asas.




«Muhammad, o profeta do Islão, designava que a grande jihad é aquela batalha que travamos com
a nossa alma. Pois bem, esse é o esforço que tenho andado a fazer há anos. Sei
que o meu fim também está próximo. Já pressinto a hora de abrir as minhas asas,
e regressar à luz. Não tenho medo. Hei de transformar-me em mais um ponto de
brilho, na infinita abóbada celeste». (Pág. 372)




Não obstante alguns alongamentos no enredo, este livro faz
as delícias de qualquer apaixonado pela vida medieval. Por isso, estou já
curiosa quanto ao próximo romance de Paulo Pimentel, que será publicado em 2015
e que terá como tema, mais uma vez, a nossa Idade Média.





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Published on November 23, 2014 10:29