Cristina Torrão's Blog, page 65

January 2, 2016

Cidades Medievais Portuguesas (9)

Ao visitar Monsaraz, debaixo do calor tórrido, tive a sensação de que podia ouvir, a todo o momento, o chamamento à oração pelo almuadem.











































A paisagem alentejana, a partir das muralhas de Monsaraz, ficou irremediavelmente modificada com a construção da barragem do Alqueva.













Fotografias






© Horst
Neumann





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Published on January 02, 2016 04:06

December 30, 2015

2016 - Ano de Dom Dinis









Pormenor da estátua em Coimbra



Dedicarei o ano de 2016 a Dom Dinis
(por acaso, o seu 755º aniversário), aproveitando o facto de o Rei Lavrador ser tema da próxima Viagem Medieval em Santa Maria da Feira. Apesar de todos os posts também serem publicados aqui no Andanças, criei um blogue apenas para este meu projeto , como já tenho anunciado na barra lateral. E, já agora, informo que foi criada recentemente uma página no Facebook, a fim de alertar as autoridades para o péssimo estado em que se encontra o  túmulo do rei Poeta em Odivelas.




Dom Dinis é conhecido por ter sido poeta, fundador da
Universidade portuguesa (aliás em Lisboa e não em Coimbra) e mandado plantar o
pinhal de Leiria, o motivo por que mereceu o cognome de Lavrador.




Na verdade, o sexto rei de Portugal provavelmente não mandou
plantar apenas aquele pinhal, mas vários. Na época medieval, gastavam-se
quantidades exorbitantes de madeira e o desaparecimento das florestas era já um
problema. O pinheiro bravo é das árvores que mais rapidamente cresce e, por
isso, Dom Dinis teria optado pela sua plantação em vários locais. Além disso,
foi um grande impulsionador de todo o tipo de agricultura.




No entanto, o cognome de Lavrador
não lhe faz justiça, pois Dom Dinis foi igualmente um grande impulsionador do
comércio, da pesca, da exploração mineira e um extraordinário legislador, além
de que expandiu a fronteira portuguesa para leste do Guadiana, conseguindo
ainda a inclusão da região de Ribacoa no reino. A fundação da Universidade e a poesia não foram igualmente os seus únicos contributos culturais. Ao decidir
adotar o português como língua oficial dos documentos régios (que até à altura
eram redigidos em latim, ou em galaico-português), Dom Dinis contribuiu para a
uniformização do idioma, diminuindo as diferenças regionais, pois, naquela
época, em que abundavam os dialetos, dificilmente um alentejano entenderia um minhoto ou um transmontano.





Imagem daqui





De tudo isto e de muito mais darei conta durante todo o
próximo ano, assinalando acontecimentos importantes do reinado de Dom Dinis, à
medida que forem acontecendo os respetivos aniversários. Para isso, criei inclusive o blogue 2016 - Ano de Dom Dinis , pois aqui no Andanças continuará a haver espaço para outro tipo de publicações. E aproveito para dizer
que o meu romance sobre o Rei Lavrador
será republicado em edição revista e melhorada.




A todos os que por aqui passam, desejo um Bom Ano Novo!







Nota: as minhas pesquisas sobre Dom Dinis baseiam-se na Biografia do Professor José Augusto de Sotto Mayor Pizarro (Temas e Debates 2008)













 
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Published on December 30, 2015 04:08

December 28, 2015

A Citação da Semana (93)

«Quem prescinde da liberdade, a fim de ganhar segurança, acaba por perder as duas».



Benjamin Franklin




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Published on December 28, 2015 02:58

December 27, 2015

Cidades Medievais Portuguesas (8)

Antes de ser conquistada por Dom Afonso Henriques, em Outubro de 1147, a cidade de Lisboa já havia pertencido aos cristãos, mais propriamente, ao avô do nosso primeiro rei, o imperador Afonso VI. A cidade foi-lhe oferecida pelo rei mouro de Badajoz, em 1093, junto com Santarém e o castelo de Sintra, em troca de proteção.



Porém, Afonso VI perdeu Sintra e Lisboa, pelo que responsabilizou o genro Dom Raimundo, conde da Galiza. Curiosamente, foi esta perda que abriu as portas ao protagonismo do conde Dom Henrique, pai de Dom Afonso Henriques, pois o imperador confinou Dom Raimundo à Galiza, entregando o condado Portucalense ao outro genro.



Lisboa só se foi tornando na principal cidade do reino mais de 100 anos depois da sua conquista definitiva, com os reis Dom Afonso III e Dom Dinis.

















 



















Além do Castelo de São Jorge, também a estação do metro do Martim Moniz evoca a conquista de Lisboa em 1147, homenageando, entre outros, o herói que morreu entalado numa das portas da cidade e os cruzados.


 

Fotografias



© Horst
Neumann





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Published on December 27, 2015 03:58

December 26, 2015

Conto de Natal (8)








De facto, teve
de se esperar, já com o resto pronto, mas não era ainda tarde, quando os genros
surgiram com o leitão fumegante, de pele estaladiça. Apesar de já temperado,
trazia-se sempre uma malga cheia do molho especial, a tresandar de alho e pimenta.
As tias Tininha e Guiomar procederam ao trinchar do bicho, Géninha alegou que
não tinha jeito nenhum para aquilo e desfaria a carne.

Havia batata
assada e arroz e, na travessa do leitão, rodelas de laranja, que ajudavam a
desenjoar da gordura. A refeição foi ensombrada pelo constatar de que o vinho mal
chegava e a resistência do avô em ir buscar mais. Apesar de ter a adega cheia,
aquilo contrariava-lhe os planos e alegava que o que estava à disposição chegaria,
caso fossem comedidos. Narciso já não se segurava de indignação e levantou-se,
a fim de ir à adega, quando o avô, que nunca interrompia uma refeição, igualmente
se levantou, declarando, com uma energia inabitual, que ele é que sabia qual o
vinho que deveria ser bebido. Encaminhou-se para adega com o pano de cozinha
que lhe servia de babete ao dependuro, e Narciso foi atrás dele, convencido de
que o sogro nunca traria o suficiente. Realmente o avô regressou contrariado,
pois o genro insistiu em trazer três garrafas em vez de uma. «Quem há de beber
isso tudo?», perguntava, exasperando Narciso: «ó homem, deixe-as ficar aqui à
mão, logo se verá se são ou não precisas».

É difícil dizer
se o avô conseguiu gozar o resto da refeição. E o neto Filipe, divertido com
aquela casmurrice, ainda o espicaçou: «ó avô, já abriste o teu chocolate? Bem
podias dar um quadradinho a cada neto». Os primos e a tia Guiomar riram e
também Géninha, normalmente defensora do pai, esboçou um sorriso, pois a
malandrice fora dita pelo seu tesouro. Os homens não ligaram e a avó, apesar de
incomodada, absteve-se de comentar.

No fim, Sandra
sentia-se tão enfartada, que prescindiu das sobremesas. O creme e a aletria não
tinham, de qualquer maneira, grande sabor, nunca ligara a bolharacos e já se enchera de rabanadas no dia anterior. Já o tio
Januário tornou a elogiar a aletria da mãe, emborcando grande quantidade, sob o
olhar enfadado da mulher. Ficou uma garrafa de vinho por abrir e o avô,
normalmente tão calado, lançou a farpa: «eu bem disse que eram garrafas a
mais». Enfim, valeu-lhe que a boa disposição de Narciso andava intimamente
ligada à pança bem atestada.

O dia estava
frio, mas ensolarado, pelo que se resolveu ir dar um passeio, aproveitando para
passar no café. Clara foi, mais uma vez, objeto da chacota dos primos, por
ostentar uns botins de camurça de cano tipo fole no tornozelo e apertado na
zona onde começava a barriga da perna. Também o tio Carlos, bem bebido, se
juntou àquele divertimento dos rapazes.

Apesar de achar
que a combinação dos botins com a minissaia rodada da prima lhe dava um aspeto
de trovador medieval, Sandra achava de muito mau-gosto aquela chacota e
declarou gostar dos botins, que estavam na moda. Minutos depois, já ela havia
esquecido o episódio, a mãe veio segredar-lhe a sua surpresa, temperada por um
laivo de censura: «gostas mesmo das botas»?

Durante o
passeio, Januário e Narciso encetaram as suas discussões políticas, em altos
berros, enquanto o tio Carlos preferia a companhia das sobrinhas, caminhando no
meio delas, que lhe enfiavam o braço e se riam muito das suas lérias.

Depois do
passeio, a festa terminara para Narciso, que se mostrou ansioso por fazer a
viagem de regresso. Instigou a família a fazer as malas, quando todos se preparavam
para descansar nos sofás da sala. O desagrado de Sandra era ainda maior, porquanto
ela gostaria de ficar com a prima, cuja família tornaria a pernoitar nos avós. Januário
não queria perder o almoço do dia seguinte, em que a mãe fazia roupa-velha: os restos das batatas, dos
grelos e do bacalhau desfeito eram estrugidos em azeite e alho. À despedida, e
por entre recomendações ao genro que guiasse com cuidado, a avó desabafou:
«gosto muito do Natal, mas também me agrada, quando, no fim, vocês regressam às
vossas casas».




No dia seguinte,
ao serão, Géninha recebeu um telefonema de sua mãe. Assim que a casa esvaziara,
ela procedera às primeiras arrumações e, no corredor do primeiro andar, dera
conta de um vaso fora de sítio. Quando o quis arrastar, o vaso abriu-se,
despejando a terra para cima da alcatifa! Era óbvio que o despropósito tinha a
assinatura dos netos e ela exigia saber qual deles partira o vaso!

A avó nunca
telefonava a ninguém, fazia mesmo questão de apregoar que dispunha de telefone
só para receber chamadas. Num tempo em que não havia telemóveis nem internet,
os telefonemas «para fora», isto é, para uma localidade diferente, exigindo
indicativo, eram de facto custosas.

Naquele serão,
porém, a avó ligou aos três filhos. Em vão. Nunca se descobriu quem partiu o
vaso, os primos cumpriram o pacto que haviam feito entre eles, encolhendo os
ombros, alegando não saberem de nada.




E assim se
passou mais um Natal. No ano seguinte, a cena repetir-se-ia. E, por mais
chacotas, discussões e ressabiamentos que houvesse, Sandra tornaria a sentir-se
menos sozinha do que na sua própria casa, ficando, para o resto da vida, com a
sensação de que aqueles convívios natalícios tinham sido os melhores da sua
vida.





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Published on December 26, 2015 06:27

December 25, 2015

Conto de Natal (7)








Estando as
prendas distribuídas, a mesa levantada e a cozinha arrumada, a avó ligou a
televisão. O avô acomodou-se na sua poltrona, com a escalfeta eficientemente
reparada pelo neto Mário a seus pés. As mulheres conversavam, porquanto Tininha
andava ainda às voltas com os sais de frutos, massajando a barriga inchada. Os primos
tornaram a desaparecer. O tio Carlos, embriagado, trauteava lengalengas
obscenas aos ouvidos das sobrinhas, que se riam muito, na sua adolescência, e
Narciso e Januário, sentados à mesa, à volta dos seus copos de vinho,
embrenharam-se numa discussão política, berrando cada vez mais alto, impedindo
os avós de ouvirem a sua televisão. Acabaram por se separar, amuados um com o
outro.

Falou-se na missa
do galo, mas estava frio. Os homens, de qualquer maneira, nunca consideravam ir
e as mulheres sentiam-se cansadas. A avó alegou que se poderia assistir às
cerimónias transmitidas de Roma. Foram, porém, todos deitar-se ainda antes da
meia-noite, encaminhando-se para os seus quartos gelados. As primas tinham mais
sorte, ficavam na sala aquecida, embora tivessem de abrir, por momentos, a
janela, a fim de renovar aquele ar de comidas e transpirações.




A manhã de Natal
reservava uma má surpresa a Clara. Os rapazes haviam-lhe dado nós nas roupas,
alguns tão apertados, que ela só os conseguiu desfazer com a ajuda da mãe. As
primas tinham deixado as suas malas no andar de cima e a indignação da moça só contribuiu
para aumentar o divertimento dos primos. A tia Guiomar foi a única, de entre os
adultos, que se dispôs a admoestá-los. Os homens não quiseram saber. E, se Tininha
mostrou um pouco de compreensão pelo agastamento da sobrinha, Géninha
limitou-se a um circunstancial «ai que malandros». Às escondidas, chegou a rir
com o filho. As roupas de Sandra haviam sido poupadas, confirmando-lhe que uma
moça só era tolerada quando apagada e submissa.

O avô dava-se ao
luxo de saborear o seu café com leite e as suas torradas com manteiga na cama,
pois a mulher levava-lhe o tabuleiro com o pequeno-almoço. Entretanto, já se
havia acendido o lume no forno de lenha da adega, a fim de se assar o cabrito e
o galo capão. Também se havia encomendado um leitão, já pronto, pois, em plena
Bairrada, acedia-se sem dificuldade aos melhores especialistas.

Tendo já
retirado a lenha e metido as carnes no forno quentinho, a avó preparou-se para
ir à missa, solicitando a companhia das netas, já que as filhas e a nora ficariam
a tomar conta dos assados. «Bem me custa», dizia ela, «mas, quanto maior é o
sacrifício, mais Deus gosta e nos recompensa». A Sandra lembrou-se do avô, ainda
no quentinho dos cobertores, e perguntou à avó porque não precisava ele de
fazer aquele sacrifício. A avó olhou-a como se ela tivesse dito algum absurdo e
respondeu: «eu rezo por mim e por ele». Trocando um olhar divertido com a prima,
Sandra contrapôs: «e não podias rezar por nós também»? «Não sejas preguiçosa,
anda», retorquiu a avó, mas era a vez de Clara dizer de sua justiça: «e os
rapazes, também não precisam de fazer sacrifícios»? «Deus me livre, levá-los»,
replicou a avó, «são tão difíceis de aturar». «Não é justo», começou a neta,
mas a avó interrompeu-a: «deixem-se de disparates e apressemo-nos, que se faz
tarde».

A missa foi
demorada, mas, em casa, tudo corria sobre rodas e os genros foram buscar o
leitão, sendo agora a preocupação da avó que o dito cujo estivesse pronto a
tempo. Devido ao grande número de encomendas, costumava haver atrasos.





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Published on December 25, 2015 06:26

December 24, 2015

Conto de Natal (6)








Houve uma
tentativa de cantar É Natal, é Natal,
mas não pegou, os homens e os três rapazes não estavam para aí virados. A avó, porém,
recordou que o filho havia cantado o Silent
Night
num coro do liceu, um momento que ela nunca esquecera. E, a pedido
dela, não obstante a desaprovação da tia Guiomar e da filha Clara, fez-se ouvir
a voz grave e poderosa, mas impiedosamente desafinada, do tio Januário:




                        Siiiii-ilent Night




Os primos
trocaram olhares. Clara mostrava-se ligeiramente incomodada, o irmão Mário
parecia encontrar-se literalmente sob tortura. A vontade de rir nos outros
primos, porém, fê-lo descontrair-se um pouco.

Januário, com os
seus olhos esbugalhados, expelia agora um ôôôôôô,
que a Sandra não entendeu. Não fazia parte da canção que ela conhecia. Até que
o tio completou a frase:




                        Ôôôôôô-ôly Night




Aquela maneira
de ele pronunciar o Holy, sem o
mínimo vestígio de um H expirado, provocou-lhe um ataque de riso muito forte e
ela teve de tapar a boca com o guardanapo. Os rapazes estavam igualmente capazes
de rebentar e também Clara esboçava um sorriso, embora a tia Guiomar continuasse
de nariz torcido. Narciso e Carlos revelavam-se enfadados e Géninha e Tininha quedavam-se
sem qualquer expressão especial que pudesse revelar o que lhes ia na cabeça,
assim como o avô, que se diria estar a dormir, não fossem os olhos abertos. Já
a avó não conseguia evitar o derramar de lágrimas de comoção.

Januário
continuava, no seu inglês impercetível. Apenas quem soubesse o texto de cor fazia
uma ideia do que ele de si emanava.

Depois de trauteada
a primeira estrofe, e indiferente aos risos abafados dos sobrinhos, preparava-se
para continuar, quando Clara lembrou que era altura da distribuição dos
presentes. A tia Guiomar começou a levantar a mesa e as cunhadas imitaram-na.
Retomou-se o alvoroço, enquanto o tio Januário se conformava com a interrupção
e a avó limpava as lágrimas.

A família espalhou-se
pelos sofás e pelas poltronas, à volta do fogão de sala, à exceção de Narciso,
que permaneceu sentado à mesa. Dizia que não ligava «a essa coisa das prendas».
Mas haveria uma razão mais forte. Talvez lhe custasse aguentar o protagonismo
da filha, tão habituado estava a anulá-la. Aquela era a hora das primas, as
«princesas da família», como a própria Clara as definia (Sandra nunca ousaria
tal). Eram elas que distribuíam os presentes, tirando à vez um embrulho do
bordo do fogão de sala. Anunciavam o nome a quem se destinava e procediam à sua
entrega. Também Filipe, à semelhança do pai, parecia não apreciar a cerimónia que
punha a irmã em destaque e constantemente desinquietava os primos para
brincadeiras.

Tininha queixou-se
da barriga inchada, depois da lauta refeição, apesar de todos saberem que ela comera
pouco. Foi tomar bicarbonato dissolvido em água, segundo o avô, o melhor
estimulante digestivo. E, sendo necessário, havia ainda sais de frutos.

Por vezes, batiam-se
palmas e exultava-se, depois da entrega de uma prenda, se bem que a tia Guiomar
reclamasse por o marido falar alto demais. E, ao desempacotar de um dos
presentes, deparando com um livro, o tio Januário mostrou-se desagradado. A avó
quis saber o motivo do desconforto do filho e este lá foi dizendo que sabia
tratar-se de algo que a mulher desejava ler, ou seja, alegou que a tia Guiomar se
presenteava a si própria através dele.

Tanto a esposa,
como a filha, negaram tal intento, mas a cerimónia ficou turvada durante uns momentos.
Tininha aproveitou para ir à cozinha, emborcar uma dose de sais de frutos, pois
o bicarbonato, por si só, parecia não conseguir esmoer os grelos que lhe davam
voltas no estômago. Narciso continuava em segundo plano, como se nada daquilo
lhe dissesse respeito. E os primos haviam desaparecido.

Sandra e Clara encetaram
a distribuição das prendas, agora com mais sossego, desde que se deixara de
ouvir o vozeirão do tio Januário, que insistia no seu amuo. Também a avó se
manteve acabrunhada. E Narciso, lá atrás, recebia os seus presentes a
contragosto, que as moças faziam o favor de lhe ir entregar.

No fim,
distribuíram-se os chocolates e os rapazes surgiram, ficando por saber como souberam
ajuizar o timing. Logo abriram as
suas tabletes, com a avidez de quem tem fome.

O avô enfiou a sua
no bolso e solicitou um quadradinho a cada um dos cinco netos, com o pretexto
de que gostaria de provar as diferentes qualidades. Longe iam, porém, os tempos
em que os moços caíam na esparrela. Desataram em gargalhadas sonoras, o que incomodou
Géninha. Não entendia porque haveriam eles de recusar um quadradinho ao avô! Clara
argumentou que, se lhe apetecia chocolate, que comesse da tablete dele, o que indignou
ainda mais a tia, enquanto a avó ralhava com o marido, que, na sua opinião, se expunha
ao ridículo.





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Published on December 24, 2015 06:24

December 23, 2015

Conto de Natal (5)








Ouviam-se os
rapazes no andar de cima, pareciam jogar à bola, algo que a avó não aprovava,
devido aos vasos que enfeitavam o corredor. Mas estava tão ocupada com as suas
sobremesas aguadas, que não se apercebia. E os pais, entretidos com o alho e o
piripiri, não estavam para se maçar.

A mãe da Sandra
surgiu, a trazer o pão para a mesa, o delicioso pão da Bairrada, o chamado «pão
das sandes de leitão». Vendo a filha a tratar do seu molho, perguntou-lhe se
não fazia também para o irmão, que gostava tanto daquilo. Mas Sandra sentia-se
protegida naquele ambiente familiar, não era o mesmo que estar sozinha, à mercê
da mãe e do pai. Atreveu-se a recusar, alegando que Filipe já era
suficientemente crescido para picar um dente de alho. O apoio da prima Clara, que
lançou um «pois, era o que faltava», fez com que Géninha prescindisse da sua
admoestação habitual à filha: «estás muito refilona, hoje».

A tia Guiomar
surgiu com as rabanadas quentinhas, polvilhadas com açúcar e canela, para
gáudio do tio Carlos, que adorava as de vinho e logo agarrou numa, enquanto
elogiava a cunhada. Lisonjeada, Guiomar riu-se muito. O marido protestou:
tivesse sido ele a agarrar numa rabanada, a esposa perderia as estribeiras. Tratando-se
de Carlos, ela achava muita piadinha! Guiomar fungou irritada e, depois de
pousar as travessas no aparador, ao lado das dos bolharacos, acercou-se da filha e da sobrinha. Em tom confidencial,
revelou a caturrice da sogra em fazer o leite-creme e a aletria com água
misturada no leite.

A avó queimou o
creme com uma espátula, depois de ter distribuído açúcar pela superfície,
mergulhando a cozinha em fumo. As primas foram buscar a travessa da aletria,
polvilhada com canela, e concordaram, aos segredinhos, que tinha um aspeto
muito pálido.

Géninha e
Tininha retiraram os ovos do meio das batatas, a fim de os descascarem, e
depois de escoadas as panelas, a avó e Guiomar transportaram-nas para ao pé da
lareira, a fim de que nada arrefecesse. Os homens adquiriram ânimo, perante a
fartura que se adivinhava dentro dos recipientes que se iam juntando à boca do
fogão de sala, e berravam ainda mais alto.

Os ovos vieram num
alguidar de barro, que se pôs sobre uma das panelas e se tapou com o testo. Chamaram-se
os primos. Imperava a regra do self-service,
imposta pela avó, a primeira a infringi-la, preparando o prato do marido, antes
que qualquer um dos outros se pudesse servir. O avô aguardava no seu lugar, com
um pano de cozinha, cuja ponta enfiava no colarinho, a proteger-lhe a camisa. Também
Géninha não resistiu ao apelo do filho Filipe, que lhe fizesse o prato e,
perante o protesto do rapaz por não ter molho, ainda lhe picou um dente de alho
para a comida, olhando de lado para a filha, no seu entender, a única culpada pela
sua tarefa extra. Todos os outros se desenvencilharam sozinhos, até Narciso,
quando viu a mulher ocupada com o reizinho.

Sandra achava
que o irmão perdia parte do espírito da consoada, desdenhando daquela espécie
de ritual de formar fila em frente à lareira, reclamando com os da frente, que
se despachassem, e advertindo os primos Mário e Toninho, que tentavam surripiar
mais do que um ovo. Havia precisamente treze ovos, um para cada pessoa. O prato
mais cheio era, como sempre, o da avó, que, à falta de espaço, empilhava os
grelos por cima das batatas e do bacalhau, formando uma elevação digna de ser
medida com uma régua.

E assim se molhou
o pão no azeite e se degustou o bacalhau. O silêncio imposto pelo gozar dos
prazeres da comida não tardou a ser interrompido pelo vozeirão do tio Januário:
«que foi agora»? A tia Guiomar implicava com a velocidade com que o marido
comia, com a quantidade de vinho que bebia e, quanto mais não fosse, com a
maneira como esbugalhava os olhos. A avó permitia-se uma pausa na sua
degustação: «deixe o rapaz comer». O tio Carlos, por vezes, ria-se trocista,
mas só quando se sentia bem comido e bebido. Até lá, não tugia nem mugia.

As conversas iam
regressando, à medida que os pratos se esvaziavam, até que tornava a formar-se alvoroço,
no compasso de espera entre o prato principal e a sobremesa. Enquanto os homens
permaneceram sentados, as mulheres trataram de retirar a louça usada e de pôr
os doces na mesa. O leite-creme foi realmente dado por aguado e a aletria sem
sabor, apenas o tio Januário e o avô garantiam estar tudo delicioso. Enfim,
havia as excelentes rabanadas da tia Guiomar e os eternos bolharacos.





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Published on December 23, 2015 06:22

December 22, 2015

Conto de Natal (4)








Sandra sentia
uma certa afinidade por aquele primo, que, tal como ela, era aquilo a que chamava
«apêndice da família». A família do tio Januário funcionava ao contrário da
sua. Em casa de Géninha e Narciso, o pedestal pertencia a Filipe. O tio Januário
e a tia Guiomar, contudo, haviam elegido a filha Clara como a rainha do lar. O
primo Toninho, de doze anos, como filho único, era poupado a tais oscilações
familiares.

Sandra e o primo
Mário não passavam portanto de «apêndices»: viam-se obrigados a contentarem-se por
pertencerem à família, sendo-lhes permitido viver sob o mesmo teto e ser sustentados
pelos mesmos pais. Ambos eram calados, com o seu quê de misterioso. Géninha
costumava dizer que a filha era introvertida.

Com miúdas da
sua idade, porém, Sandra não era nada introvertida. E, afinidades com o primo à
parte, não se cansava de conversar com a prima, enquanto os três rapazes iam
extravasar as suas energias para o corredor do primeiro andar, onde se situava
o quarto deles, um dos maiores da casa, albergando três camas de solteiro. As
netas costumavam dormir no sofá-cama da sala, no rés-do-chão, os restantes
quartos eram ocupados pelos quatro casais.

Na cozinha, iniciava-se
a balbúrdia. As rabanadas da tia Guiomar eram famosas, pelo que não foi difícil
decidir que tarefa lhe competia. Cortou o pão adequado em fatias. Umas seriam
passadas em leite, outras em vinho, a fim de contentar todos os gostos. Géninha
e Tininha descascaram as batatas e arranjaram os grelos, que seriam, depois,
cozidos em panelas enormes, assim como o bacalhau e os ovos.

A cautelosa
divisão de tarefas não evitou um conflito. A avó, que criara uma família em
plena ditadura salazarista, tencionava fazer o leite-creme e a aletria com uma
mistura de água e leite. As filhas e a nora protestaram: leite-creme e aletria
faziam-se unicamente com leite! A avó alegou que sempre assim fizera e, já
arrependida de ter condescendido na invasão do seu domínio sagrado, declarou-se
disposta a medir dois terços de leite e um terço de água. E não admitiu mais
conversa.

Os homens
conversavam aos berros, na sala, como se fossem todos surdos. Examinavam as
garrafas de tinto da Bairrada, selecionadas pelo avô, na sua adega ao fundo do
quintal. Os genros puseram a hipótese de serem poucas, pai e filho garantiam
que chegavam. As primas Sandra e Clara tagarelavam ao quentinho da lareira,
entretanto acesa. Os rapazes continuavam entretidos no corredor de cima, imunes
ao frio, que aumentava, à medida que escurecia.

Na cozinha, as enormes
panelas ferviam, cada qual com o seu conteúdo. Devido às grandes quantidades e
aos diferentes tempos de cozedura, os ingredientes haviam sido separados. As
batatas coziam junto com os ovos, enquanto os grelos ocupavam outra panela e o
bacalhau se dividira em duas, pois desenvolvia muita espuma.

As primas foram encarregadas
de pôr a mesa, tarefa que Clara executou sob protesto, por os rapazes serem
poupados. Narciso olhou desagradado para a moça. Sandra estava tão habituada a
ajudar a mãe sem que o irmão mexesse uma palha, que não reclamou, embora
achasse que a prima tinha razão.

A fim de se irem
distraindo, agora que a fome começava a apertar, os homens sentaram-se à mesa, ocupando-se
da preparação dos seus molhos. Picaram alho para os seus pratos, ao qual juntaram
piripiri e um pouco de azeite. Sandra juntou-se-lhes, mas Clara prescindiu,
alegando que não queria ficar a cheirar a alho. O tio Carlos, que era obcecado
por aquele condimento, troçou dela, perguntando-lhe se tinha algum namorado à
espera, naquela noite. Atrevendo-se a dar opiniões, ou a fazer críticas, a
jovem Clara expunha-se amiúde à troça dos tios e dos primos. O avô mantinha-se calado
e inativo, como sempre. Não lhe interessavam as garrulices da neta e alguém lhe
haveria de picar o alho, fosse a mulher, ou o filho.





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Published on December 22, 2015 06:20

December 21, 2015

Conto de Natal (3)








Estavam a
Sandra, a mãe e a tia ainda a distribuir os chocolates pelo bordo do fogão de
sala, quando surgiram os primos Filipe e Toninho aos risos abafados. Depois de a
avó lhes proibir tocar nos bolharacos,
haviam descoberto onde o avô guardava o seu sortido de bolachas e, em pleno
desfrutar, foram apanhados em flagrante. A forretice do avô era conhecida. Em
sua casa, tudo se racionava, da água ao vinho e das batatas às bolachas. Dando
com os netos a gozar as suas preciosidades, o patriarca, normalmente a
santidade em pessoa, como a avó não se cansava de dizer, enfurecera-se,
arrancara-lhes a caixa da mão e encetara a sua caminhada pelo corredor sem a
largar.

As três mulheres
foram espreitar e lá andava o avô para trás e para a frente, com a caixa nas
mãos atrás das costas, certamente, ruminando um novo esconderijo. Riram-se
daquela caturrice, mas a avó, apercebendo-se, ralhou ao marido, o que aliás já
era costume e não o impressionou minimamente, ele nem se deu ao trabalho de lhe
responder. E não largou a caixa.

Pouco depois,
chegou o irmão mais velho de Géninha e Tininha, o tio Januário, com a mulher
Guiomar e os filhos Clara e Mário. A família estava enfim completa e Sandra
alegrou-se com a chegada da prima, ansiosa por poder conversar com alguém da
sua idade e lhe contar as últimas novidades. As primas não se viam muitas
vezes, mas correspondiam-se por carta, um hábito não muito estranho, no início
dos anos 1980, de maneira que sabiam bastante da vida uma da outra.

Ao contrário da
irmã mais nova, o tio Januário jubilou com as bacias cheias de bacalhau, o cabrito,
o capão e as pilhas de bolharacos,
expressando-se no seu vozeirão, de olhos esgazeados, o que causava urticária à
mulher e à filha. Entre admoestações destas duas e a determinação da avó em
defender o filho querido, Januário engoliu meia dúzia de bolharacos num ápice. «Come, filho, come», incitava-o a mãe, depois
de ter ralhado com os netos pelo mesmo motivo. Mas Guiomar não se calava. Januário
tendia a ser gordo, coisa que a mulher não apreciava por, dizia ela, questões
de saúde. A avó, por seu lado, gostava de ver o filho gordinho e ficava nervosa
com as críticas da nora, que nunca deixava o rapaz comer em paz, credo!

A presença do sobrinho
Mário causou um certo desassossego no pai de Sandra. Mário, de catorze anos, a
idade de Filipe, era uma espécie de ovelha negra da família. Entre outras
peculiaridades comportamentais, dizia-se que gostava de surripiar uma ou outra nota
das carteiras, pelo que Narciso logo foi segredar à mulher que tivesse cuidado
com a sua. O pai de Sandra estava aliás convencido que conhecia a razão para
aquele desvio do sobrinho: Januário, o cunhado, era forreta como o pai dele e
dava uma mesada muito magra ao filho (se é que lhe dava alguma). E sabia-se que
Mário gostava de máquinas de flippers
e afins, mas ninguém falava nisso, por se saber que incomodava os avós.

Por outro lado,
apreciava-se a sua habilidade para reparações elétricas e, ainda antes de o
deixar despir o casaco, o avô aproximou-se dele com a sua escalfeta de aquecer
os pés debaixo do braço, alegando estar avariada.





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Published on December 21, 2015 06:18