Cristina Torrão's Blog, page 26
July 25, 2019
Efemérides históricas ao tempo da formação de Portugal (3)
Faz hoje 880 anos que se deu a Batalha de Ourique.

Batalha de Ourique de Jorge Colaço no Centro Cultural Rodrigues de Faria.
Ainda existe bastante mistério à volta desta batalha, o que alimenta o mito. Não há, porém, dúvida de que ela foi importantíssima para D. Afonso Henriques e a unidade portuguesa. Foi a partir desse dia que ele passou a intitular-se rei, considerando Portugal um reino. Também foi a partir desta altura que o seu nome começou a ser temido no Al-Andalus (a Hispânia muçulmana). Por outro lado, relembremos algo que muita gente não considera: D. Afonso Henriques não conquistou, a 25 de Julho de 1139, um palmo de terra que fosse!
Este último aspeto foi aliás motivo de discussão sobre o local da Batalha: se Portugal acabava a algumas dezenas de quilómetros a sul de Coimbra (embora não houvesse fronteira definida entre Coimbra e Santarém; o castelo de Leiria situava-se em território hostil, constantemente ameaçado) como se foi dar uma batalha entre portugueses e muçulmanos em pleno Alentejo?
Hoje, parece ponto assento que a batalha terá surgido na sequência de um fossado com grande raio de acção. Era costume a realização de fossados de parte a parte, as tropas avançavam devastando e depredando, reunindo espólio, incluindo pessoas (que serviriam como escravos) e animais. Reunindo as suas forças em Coimbra, o rei português avançou em direcção ao Tejo, que cruzou a leste de Santarém, e continuou a avançar, atravessando o Guadiana e aventurando-se até perto de Sevilha. Por onde passava, deixava um rastro de destruição atrás de si. E não encontrou praticamente resistência, o que pode explicar o ter-se aventurado tão longe.
Em Abril, Afonso VII, o primo de Afonso Henriques, iniciara um cerco a Oreja, a nordeste de Toledo. Os governadores almorávidas de Córdova e de Sevilha reuniram um grande exército, a fim de lhe fazer frente, o que explica que os portugueses pudessem avançar facilmente e levando o Professor Miguel Gomes Martins (De Ourique a Aljubarrota, A Esfera dos Livros 2011) a considerar que os dois primos tivessem combinado as suas ações.

Fosse como fosse. No regresso, Afonso Henriques terá cruzado o Guadiana perto de Mértola, continuando depois para oeste, a fim de evitar a cidade de Beja. Os danos provocados pela sua ofensiva devem, porém, ter sido de tal ordem, que o governador de Córdova decidiu afastar-se de Toledo, a fim de ir cortar o caminho aos portugueses. E assim se defrontaram os dois exércitos no Campo de Ourique, «uma vasta área delimitada pelas serras do Cercal e de Grândola a oeste, pela serra algarvia a sul e pelo Guadiana terminal a leste» (Miguel Gomes Martins, na obra citada).
Pouco se sabe sobre a constituição das duas hostes. As fontes portuguesas são escassas e, o que também é estranho, esta campanha não é mencionada em qualquer fonte muçulmana. Parece, no entanto, que o exército mouro era muito maior do que o cristão, a «Vita Theotonii» (Vida de S. Teotónio) refere que Afonso Henriques «derrotou cinco reis dos infiéis». Os historiadores atuais vêem algum exagero nestas palavras, se bem que, muitas vezes, os almorávidas se intitulavam de reis, sendo meros governadores de pequenas cidades.
«Terá sido nos momentos que antecederam a batalha que teve lugar o célebre episódio (…) da aclamação de Afonso Henriques (…) Erguido de pé sobre o seu escudo - à maneira germânica - pelos seus guerreiros, o príncipe, então com 30 anos, convertia-se, aos olhos dos que iriam lutar a seu lado, em rei». Este episódio (considerado “coerente e verosímil” por José Mattoso) teve certamente «um efeito profundamente moralizador no seio dos combatentes portucalenses» (Miguel Gomes Martins 2011).
Quanto à tática, Miguel Gomes Martins é de opinião de que a cavalaria pesada cristã (em contraste com os ginetes, os cavaleiros leves e ágeis dos muçulmanos) deve ter conseguido romper e desorganizar as linhas inimigas com grande sucesso. A derrota terá tido um grande impacto no seio dos almorávidas, já que o mesmo governador de Córdova, no ano seguinte, levou a cabo um fossado, no âmbito do qual atacou e arrasou o castelo de Leiria. E, em 1144, foi a vez de Soure.

Cavaleiros muçulmanos representados na capa de Reconquista Cristã , de Pedro Gomes Barbosa (Ésquilo 2008).
A verdade é que Afonso Henriques não mais deixou de se intitular rei, obtendo, em 1143, a confirmação do primo, em Zamora, embora não devesse ter sido quebrado o laço de vassalagem (que aliás nunca foi oficializado em cerimónia, permanecendo ambígua a relação entre os primos). A verdade é que o nosso primeiro rei enviou, dois meses depois da Conferência de Zamora, uma carta dirigida ao papa, prometendo-lhe vassalagem e solicitando que o libertasse do jugo do imperador da Hispânia.
Nota: texto publicado originalmente aqui .

Batalha de Ourique de Jorge Colaço no Centro Cultural Rodrigues de Faria.
Ainda existe bastante mistério à volta desta batalha, o que alimenta o mito. Não há, porém, dúvida de que ela foi importantíssima para D. Afonso Henriques e a unidade portuguesa. Foi a partir desse dia que ele passou a intitular-se rei, considerando Portugal um reino. Também foi a partir desta altura que o seu nome começou a ser temido no Al-Andalus (a Hispânia muçulmana). Por outro lado, relembremos algo que muita gente não considera: D. Afonso Henriques não conquistou, a 25 de Julho de 1139, um palmo de terra que fosse!
Este último aspeto foi aliás motivo de discussão sobre o local da Batalha: se Portugal acabava a algumas dezenas de quilómetros a sul de Coimbra (embora não houvesse fronteira definida entre Coimbra e Santarém; o castelo de Leiria situava-se em território hostil, constantemente ameaçado) como se foi dar uma batalha entre portugueses e muçulmanos em pleno Alentejo?
Hoje, parece ponto assento que a batalha terá surgido na sequência de um fossado com grande raio de acção. Era costume a realização de fossados de parte a parte, as tropas avançavam devastando e depredando, reunindo espólio, incluindo pessoas (que serviriam como escravos) e animais. Reunindo as suas forças em Coimbra, o rei português avançou em direcção ao Tejo, que cruzou a leste de Santarém, e continuou a avançar, atravessando o Guadiana e aventurando-se até perto de Sevilha. Por onde passava, deixava um rastro de destruição atrás de si. E não encontrou praticamente resistência, o que pode explicar o ter-se aventurado tão longe.
Em Abril, Afonso VII, o primo de Afonso Henriques, iniciara um cerco a Oreja, a nordeste de Toledo. Os governadores almorávidas de Córdova e de Sevilha reuniram um grande exército, a fim de lhe fazer frente, o que explica que os portugueses pudessem avançar facilmente e levando o Professor Miguel Gomes Martins (De Ourique a Aljubarrota, A Esfera dos Livros 2011) a considerar que os dois primos tivessem combinado as suas ações.

Fosse como fosse. No regresso, Afonso Henriques terá cruzado o Guadiana perto de Mértola, continuando depois para oeste, a fim de evitar a cidade de Beja. Os danos provocados pela sua ofensiva devem, porém, ter sido de tal ordem, que o governador de Córdova decidiu afastar-se de Toledo, a fim de ir cortar o caminho aos portugueses. E assim se defrontaram os dois exércitos no Campo de Ourique, «uma vasta área delimitada pelas serras do Cercal e de Grândola a oeste, pela serra algarvia a sul e pelo Guadiana terminal a leste» (Miguel Gomes Martins, na obra citada).
Pouco se sabe sobre a constituição das duas hostes. As fontes portuguesas são escassas e, o que também é estranho, esta campanha não é mencionada em qualquer fonte muçulmana. Parece, no entanto, que o exército mouro era muito maior do que o cristão, a «Vita Theotonii» (Vida de S. Teotónio) refere que Afonso Henriques «derrotou cinco reis dos infiéis». Os historiadores atuais vêem algum exagero nestas palavras, se bem que, muitas vezes, os almorávidas se intitulavam de reis, sendo meros governadores de pequenas cidades.
«Terá sido nos momentos que antecederam a batalha que teve lugar o célebre episódio (…) da aclamação de Afonso Henriques (…) Erguido de pé sobre o seu escudo - à maneira germânica - pelos seus guerreiros, o príncipe, então com 30 anos, convertia-se, aos olhos dos que iriam lutar a seu lado, em rei». Este episódio (considerado “coerente e verosímil” por José Mattoso) teve certamente «um efeito profundamente moralizador no seio dos combatentes portucalenses» (Miguel Gomes Martins 2011).
Quanto à tática, Miguel Gomes Martins é de opinião de que a cavalaria pesada cristã (em contraste com os ginetes, os cavaleiros leves e ágeis dos muçulmanos) deve ter conseguido romper e desorganizar as linhas inimigas com grande sucesso. A derrota terá tido um grande impacto no seio dos almorávidas, já que o mesmo governador de Córdova, no ano seguinte, levou a cabo um fossado, no âmbito do qual atacou e arrasou o castelo de Leiria. E, em 1144, foi a vez de Soure.

Cavaleiros muçulmanos representados na capa de Reconquista Cristã , de Pedro Gomes Barbosa (Ésquilo 2008).
A verdade é que Afonso Henriques não mais deixou de se intitular rei, obtendo, em 1143, a confirmação do primo, em Zamora, embora não devesse ter sido quebrado o laço de vassalagem (que aliás nunca foi oficializado em cerimónia, permanecendo ambígua a relação entre os primos). A verdade é que o nosso primeiro rei enviou, dois meses depois da Conferência de Zamora, uma carta dirigida ao papa, prometendo-lhe vassalagem e solicitando que o libertasse do jugo do imperador da Hispânia.
Nota: texto publicado originalmente aqui .
Published on July 25, 2019 03:52
July 7, 2019
"Portugal-Krimis"
Krimi é a interessante palavra que na Alemanha se usa para livro policial. Portugal-Krimis são policiais portugueses. Estão na moda, aqui no país da Sra. Merkel. Estranho, não é? Não há notícia de livros portugueses com sucesso na Alemanha. Além disso, não se escrevem muitos policiais made in Portugal. Pois é, estes passam-se em Portugal, mas são escritos por… alemães!
São um sucesso editorial e muito recomendados agora para a época de férias. Por acaso, o meu marido já leu um deles: Lost in Fuseta.

O autor, um alemão com o pseudónimo Gil Ribeiro, brinca com a palavra Lost, pois o seu investigador chama-se Leander Lost, um alemão que, na sequência de um intercâmbio policial (nem sei se isso existe), é colocado na Fuseta. Ou seja, a tradução directa do título não é “Perdido na Fuseta”, embora o Leander Lost se sinta muitas vezes perdido. Este investigador tem o síndrome de Asperger, o que o torna num polícia muito especial: tem uma memória fotográfica (muito útil, na sua profissão), não sabe mentir (o que, por vezes, é desvantajoso) e encara os acontecimentos destituído de emoção (o que lhe permite manter o sangue-frio em certas situações). Lost in Fuseta é a primeira aventura de Leander Lost por terras algarvias, mas a série já vai, entretanto, no terceiro volume.

Tod in Porto (“Morte no Porto”), é o segundo caso do inspector Fonseca e da sua equipa da Judiciária. O autor é um alemão que vive há vários anos em Portugal e usa o pseudónimo Mario Lima (na Alemanha não se põem acentos).

Mord auf Portugiesich (“Assassínio em Português”) passa-se numa pequena aldeia no Norte de Portugal (junto à costa) e tem a assinatura da jornalista alemã free-lancer Heidi van Elderen.

Fado Fatal (dispensa tradução), outro policial situado no Porto, de Hanne Holms. Esta autora já publicou um Krimi passado na Toscana e outro em Maiorca. Agora, pelos vistos, foi a vez de Portugal.

Letzte Spur Algarve (“Última pista: Algarve”), de Carolina Conrad, conta a aventura de uma jornalista alemã, filha de portugueses, chamada Anabela Silva, que resolveu mudar-se para a aldeia de origem dos seus pais (no interior algarvio). Trata-se de uma jornalista muito curiosa e logo se vê envolvida numa investigação policial comandada pelo comissário João Almeida. Parece que o enredo é apimentado com um caso amoroso entre os dois.

Portugiesisches Blut (“Sangue Português“ - assinalado como "Lissabon-Krimi), de Luis Sellano, é a quarta aventura de um alemão, Henrik Falkner, que vive em Lisboa. Luis Sellano é (já adivinharam; e sem acento) o pseudónimo do autor alemão.

Madeirasturm (“Tempestade na Madeira”, ou "Tempestade madeirense") tem autoria de Joyce Summer, o pseudónimo de uma autora de Hamburgo. Criou o comissário madeirense Ávila e este é o seu segundo caso.
Nota: texto originalmente publicado aqui .
São um sucesso editorial e muito recomendados agora para a época de férias. Por acaso, o meu marido já leu um deles: Lost in Fuseta.

O autor, um alemão com o pseudónimo Gil Ribeiro, brinca com a palavra Lost, pois o seu investigador chama-se Leander Lost, um alemão que, na sequência de um intercâmbio policial (nem sei se isso existe), é colocado na Fuseta. Ou seja, a tradução directa do título não é “Perdido na Fuseta”, embora o Leander Lost se sinta muitas vezes perdido. Este investigador tem o síndrome de Asperger, o que o torna num polícia muito especial: tem uma memória fotográfica (muito útil, na sua profissão), não sabe mentir (o que, por vezes, é desvantajoso) e encara os acontecimentos destituído de emoção (o que lhe permite manter o sangue-frio em certas situações). Lost in Fuseta é a primeira aventura de Leander Lost por terras algarvias, mas a série já vai, entretanto, no terceiro volume.

Tod in Porto (“Morte no Porto”), é o segundo caso do inspector Fonseca e da sua equipa da Judiciária. O autor é um alemão que vive há vários anos em Portugal e usa o pseudónimo Mario Lima (na Alemanha não se põem acentos).

Mord auf Portugiesich (“Assassínio em Português”) passa-se numa pequena aldeia no Norte de Portugal (junto à costa) e tem a assinatura da jornalista alemã free-lancer Heidi van Elderen.

Fado Fatal (dispensa tradução), outro policial situado no Porto, de Hanne Holms. Esta autora já publicou um Krimi passado na Toscana e outro em Maiorca. Agora, pelos vistos, foi a vez de Portugal.

Letzte Spur Algarve (“Última pista: Algarve”), de Carolina Conrad, conta a aventura de uma jornalista alemã, filha de portugueses, chamada Anabela Silva, que resolveu mudar-se para a aldeia de origem dos seus pais (no interior algarvio). Trata-se de uma jornalista muito curiosa e logo se vê envolvida numa investigação policial comandada pelo comissário João Almeida. Parece que o enredo é apimentado com um caso amoroso entre os dois.

Portugiesisches Blut (“Sangue Português“ - assinalado como "Lissabon-Krimi), de Luis Sellano, é a quarta aventura de um alemão, Henrik Falkner, que vive em Lisboa. Luis Sellano é (já adivinharam; e sem acento) o pseudónimo do autor alemão.

Madeirasturm (“Tempestade na Madeira”, ou "Tempestade madeirense") tem autoria de Joyce Summer, o pseudónimo de uma autora de Hamburgo. Criou o comissário madeirense Ávila e este é o seu segundo caso.
Nota: texto originalmente publicado aqui .
Published on July 07, 2019 04:04
June 30, 2019
Feira do Livro de Braga
De 28 de junho a 14 de julho, as "Memórias de Dona Teresa" poderão ser encontradas na Feira do Livro de Braga, stand nº 11, da Poética Edições.
«- Senta-te a meu lado, Teresa - dizia minha tia Urraca, nos serões longos de Estio, quando já tínhamos os olhos cansados de bordar, provocando ciúme nas minhas duas irmãs. - Já te falei da cidade de Viseu? Já te contei que foi junto às suas muralhas que teu bisavô, Afonso V de Leão, encontrou a morte, trespassado por uma flecha dos infiéis?
Tantas vezes ouvi aquelas narrativas, que Viseu se me tornou uma cidade de fantasia que eu ansiava conhecer, a cidade ligada, desde tempos mui antigos, à meninice de infantes leoneses que ali foram criados.
- Não havia, na Hispânia, memória de soberano tão poderoso como Dom Fernando, "O Magno" - dizia ela, o olhar brilhante pousado no horizonte. - Nunca estes reinos viram tão excelso par real, como meus queridos pais, Dom Fernando e Dona Sancha!
Sentada a seu lado, eu venerava-a, junto com meus gloriosos avós paternos, envolvida pelo doce aroma dos jasmins da alcáçova toledana, que hoje recordo como se do Paraíso se tratasse».
In "Memórias de Dona Teresa"
«- Senta-te a meu lado, Teresa - dizia minha tia Urraca, nos serões longos de Estio, quando já tínhamos os olhos cansados de bordar, provocando ciúme nas minhas duas irmãs. - Já te falei da cidade de Viseu? Já te contei que foi junto às suas muralhas que teu bisavô, Afonso V de Leão, encontrou a morte, trespassado por uma flecha dos infiéis?
Tantas vezes ouvi aquelas narrativas, que Viseu se me tornou uma cidade de fantasia que eu ansiava conhecer, a cidade ligada, desde tempos mui antigos, à meninice de infantes leoneses que ali foram criados.
- Não havia, na Hispânia, memória de soberano tão poderoso como Dom Fernando, "O Magno" - dizia ela, o olhar brilhante pousado no horizonte. - Nunca estes reinos viram tão excelso par real, como meus queridos pais, Dom Fernando e Dona Sancha!
Sentada a seu lado, eu venerava-a, junto com meus gloriosos avós paternos, envolvida pelo doce aroma dos jasmins da alcáçova toledana, que hoje recordo como se do Paraíso se tratasse».
In "Memórias de Dona Teresa"
Published on June 30, 2019 04:16
June 20, 2019
Efemérides Históricas ao Tempo da Formação de Portugal (2)
A 20 de Junho de 1120, D. Teresa refugiou-se no castelo de Lanhoso e a meia-irmã D. Urraca montou-lhe cerco.

Castelo de Lanhoso - esta torre, a sua "imagem de marca" actual, ainda não existia ao tempo de D. Teresa.
Foto © Horst Neumann
Trata-se de uma época muito conflituosa, cheia de intrigas e golpes,
nos quais estavam envolvidas mais duas importantes personalidades: o
conde galego Pedro Froilaz de Trava e o arcebispo de Santiago de
Compostela, Diego Gelmírez.
Tal como a meia-irmã, D. Urraca, como mulher, teve muita dificuldade
em fazer valer a sua autoridade, apesar de ser a única herdeira legítima
de D. Afonso VI. O facto de ter cumprido a última vontade de seu pai,
casando com o rei D. Afonso I de Aragão e Navarra, piorou a situação da
rainha, pois, no caso de o casal ter filho varão, esse príncipe deveria
herdar Leão e Castela e o meio-irmão, Afonso Raimundes, filho do
falecido D. Raimundo, herdaria apenas a Galiza. Assim determinara o
imperador Afonso VI, logo provocando o protesto do conde galego Pedro
Froilaz de Trava, Aio de Afonso Raimundes, que considerava o seu
protegido o único herdeiro do avô. Depois da morte do imperador, o conde
galego, assim como o bispo Gelmírez, apressaram-se a coroar Afonso, de
apenas seis anos, como rei da Galiza, num primeiro sinal da autoridade
que assistia ao pequeno.

Afonso I de Aragão, por Manuel Aguirre y Monsalbe (1822–1856)
Esta coroação complicou a vida de D.
Urraca, pois, durante a menoridade do filho, teve de aceitar a regência
de Pedro Froilaz de Trava sobre a Galiza. Não teve aliás filhos com
Afonso I de Aragão e o casamento chegou mesmo a ser dissolvido pela
Igreja. Porém, quando o filho atingiu a maioridade, que, nesta altura,
se dava pelos catorze ou quinze anos, o conde galego instou-o a ocupar o
trono de Toledo, a fim de tomar o lugar de seu avô, apesar de a mãe
ainda ser viva. Não estando disposta a prescindir dos seus direitos, D.
Urraca envolveu-se em contendas com Pedro Froilaz de Trava e o arcebispo
de Santiago de Compostela.
Os dois galegos eram amigos, unidos na defesa do seu protegido, mas,
com o tempo, começaram a desentender-se. D. Urraca aproveitou para
aprofundar o fosso entre eles, entrando, em 1120, com um exército na
Galiza. Instalou-se em Santiago de Compostela, onde doou um importante
feudo à igreja daquela cidade, favorecendo o arcebispo. Esta doação
debilitava a família de Trava, o que indignou o conde Pedro Froilaz.

D. Urraca de Leão e Castela, pintura de 1892/94 por José María Rodríguez de Losada, na Prefeitura de Leão
Em seguida, aconteceu, porém, algo que hoje não se sabe bem explicar:
D. Urraca penetrou no condado Portucalense, arrasando culturas,
incendiando e depredando. Terá sido por influência do arcebispo Diego
Gelmírez, que pretendia acabar com o estatuto arqui-episcopal de Braga?
Nesse caso, será difícil de explicar que D. Urraca tenha feito, a 17 de
Junho, uma importante doação à igreja de Braga, na presença do arcebispo
D. Paio Mendes.
O certo é que, na sequência da incursão da meia-irmã, D. Teresa teve
receio de ser destituída do governo do condado e refugiou-se no castelo
de Lanhoso, um dos melhores de Entre Douro e Minho. Situado no cimo de
um maciço rochoso com quase trezentos metros de altura, o castelo
permitia vigiar as redondezas num raio de dezenas de milhas. Devido ao
terreno acidentado, o seu acesso fazia-se apenas por um itinerário e as
suas muralhas eram reforçadas por cinco torreões, dois dos quais
ladeavam a única porta de entrada, voltada a Sul. Além disso, o seu
interior albergava uma estrutura palaciana.

Pormenor do recinto actual do castelo de Póvoa de Lanhoso.
Foto © Horst Neumann
A partir daqui, não há certezas sobre o que
aconteceu. A versão mais conhecida é que as irmãs se reconciliaram, nas
chamadas «pazes de Lanhoso», jurando-se amizade e tendo D. Teresa
prestado vassalagem à irmã, que instituiu, a seu favor, «os senhorios de
Zamora, Orense, Salamanca, Toro e Ávila» (Mateus, 2005). Certo é que o
cerco foi de pouca dura. E, regressada a Compostela, D. Urraca mandou
prender o arcebispo Gelmírez e confiscou-lhe todos os castelos! O que
terá gerado este volte-face?
Na opinião de Mateus (2005), terá havido intriga de Fernão Peres de
Trava, o filho mais novo do conde Pedro Froilaz. Este é um interessante e
fulcral episódio, pois talvez marque o início da relação entre Fernão
Peres e D. Teresa. Mas como entraram os dois em contacto? Terá Fernão
Peres procurado D. Teresa em Lanhoso? Teriam os dois, nessa altura,
combinado apoderarem-se da Galiza (que D. Teresa considerava fazer parte
da sua herança) e urdido uma intriga, a fim de pôr D. Urraca novamente
contra o arcebispo Gelmírez? Neste caso, é possível que nem tenham
existido as «pazes de Lanhoso», rejeitando a hipótese de D. Teresa ter
prestado vassalagem a D. Urraca.
O mais certo é nunca virmos a saber o que realmente aconteceu. No
entanto, o episódio de Lanhoso teve importância fulcral no futuro de D.
Teresa, já que a sua ligação a Fernão Peres de Trava, permitindo a
ingerência deste no governo do condado Portucalense, afastou de si os
barões que veriam no filho, Afonso Henriques, o melhor meio de afastar a
influência galega.
Nota: texto originalmente publicado aqui .

Castelo de Lanhoso - esta torre, a sua "imagem de marca" actual, ainda não existia ao tempo de D. Teresa.
Foto © Horst Neumann
Trata-se de uma época muito conflituosa, cheia de intrigas e golpes,
nos quais estavam envolvidas mais duas importantes personalidades: o
conde galego Pedro Froilaz de Trava e o arcebispo de Santiago de
Compostela, Diego Gelmírez.
Tal como a meia-irmã, D. Urraca, como mulher, teve muita dificuldade
em fazer valer a sua autoridade, apesar de ser a única herdeira legítima
de D. Afonso VI. O facto de ter cumprido a última vontade de seu pai,
casando com o rei D. Afonso I de Aragão e Navarra, piorou a situação da
rainha, pois, no caso de o casal ter filho varão, esse príncipe deveria
herdar Leão e Castela e o meio-irmão, Afonso Raimundes, filho do
falecido D. Raimundo, herdaria apenas a Galiza. Assim determinara o
imperador Afonso VI, logo provocando o protesto do conde galego Pedro
Froilaz de Trava, Aio de Afonso Raimundes, que considerava o seu
protegido o único herdeiro do avô. Depois da morte do imperador, o conde
galego, assim como o bispo Gelmírez, apressaram-se a coroar Afonso, de
apenas seis anos, como rei da Galiza, num primeiro sinal da autoridade
que assistia ao pequeno.

Afonso I de Aragão, por Manuel Aguirre y Monsalbe (1822–1856)
Esta coroação complicou a vida de D.
Urraca, pois, durante a menoridade do filho, teve de aceitar a regência
de Pedro Froilaz de Trava sobre a Galiza. Não teve aliás filhos com
Afonso I de Aragão e o casamento chegou mesmo a ser dissolvido pela
Igreja. Porém, quando o filho atingiu a maioridade, que, nesta altura,
se dava pelos catorze ou quinze anos, o conde galego instou-o a ocupar o
trono de Toledo, a fim de tomar o lugar de seu avô, apesar de a mãe
ainda ser viva. Não estando disposta a prescindir dos seus direitos, D.
Urraca envolveu-se em contendas com Pedro Froilaz de Trava e o arcebispo
de Santiago de Compostela.
Os dois galegos eram amigos, unidos na defesa do seu protegido, mas,
com o tempo, começaram a desentender-se. D. Urraca aproveitou para
aprofundar o fosso entre eles, entrando, em 1120, com um exército na
Galiza. Instalou-se em Santiago de Compostela, onde doou um importante
feudo à igreja daquela cidade, favorecendo o arcebispo. Esta doação
debilitava a família de Trava, o que indignou o conde Pedro Froilaz.

D. Urraca de Leão e Castela, pintura de 1892/94 por José María Rodríguez de Losada, na Prefeitura de Leão
Em seguida, aconteceu, porém, algo que hoje não se sabe bem explicar:
D. Urraca penetrou no condado Portucalense, arrasando culturas,
incendiando e depredando. Terá sido por influência do arcebispo Diego
Gelmírez, que pretendia acabar com o estatuto arqui-episcopal de Braga?
Nesse caso, será difícil de explicar que D. Urraca tenha feito, a 17 de
Junho, uma importante doação à igreja de Braga, na presença do arcebispo
D. Paio Mendes.
O certo é que, na sequência da incursão da meia-irmã, D. Teresa teve
receio de ser destituída do governo do condado e refugiou-se no castelo
de Lanhoso, um dos melhores de Entre Douro e Minho. Situado no cimo de
um maciço rochoso com quase trezentos metros de altura, o castelo
permitia vigiar as redondezas num raio de dezenas de milhas. Devido ao
terreno acidentado, o seu acesso fazia-se apenas por um itinerário e as
suas muralhas eram reforçadas por cinco torreões, dois dos quais
ladeavam a única porta de entrada, voltada a Sul. Além disso, o seu
interior albergava uma estrutura palaciana.

Pormenor do recinto actual do castelo de Póvoa de Lanhoso.
Foto © Horst Neumann
A partir daqui, não há certezas sobre o que
aconteceu. A versão mais conhecida é que as irmãs se reconciliaram, nas
chamadas «pazes de Lanhoso», jurando-se amizade e tendo D. Teresa
prestado vassalagem à irmã, que instituiu, a seu favor, «os senhorios de
Zamora, Orense, Salamanca, Toro e Ávila» (Mateus, 2005). Certo é que o
cerco foi de pouca dura. E, regressada a Compostela, D. Urraca mandou
prender o arcebispo Gelmírez e confiscou-lhe todos os castelos! O que
terá gerado este volte-face?
Na opinião de Mateus (2005), terá havido intriga de Fernão Peres de
Trava, o filho mais novo do conde Pedro Froilaz. Este é um interessante e
fulcral episódio, pois talvez marque o início da relação entre Fernão
Peres e D. Teresa. Mas como entraram os dois em contacto? Terá Fernão
Peres procurado D. Teresa em Lanhoso? Teriam os dois, nessa altura,
combinado apoderarem-se da Galiza (que D. Teresa considerava fazer parte
da sua herança) e urdido uma intriga, a fim de pôr D. Urraca novamente
contra o arcebispo Gelmírez? Neste caso, é possível que nem tenham
existido as «pazes de Lanhoso», rejeitando a hipótese de D. Teresa ter
prestado vassalagem a D. Urraca.
O mais certo é nunca virmos a saber o que realmente aconteceu. No
entanto, o episódio de Lanhoso teve importância fulcral no futuro de D.
Teresa, já que a sua ligação a Fernão Peres de Trava, permitindo a
ingerência deste no governo do condado Portucalense, afastou de si os
barões que veriam no filho, Afonso Henriques, o melhor meio de afastar a
influência galega.
Nota: texto originalmente publicado aqui .
Published on June 20, 2019 05:00
June 7, 2019
O Implacável Cerco de Almada
A ação deste romance situa-se nos anos de 1383/84,
logo a seguir à morte de D. Fernando I, causando uma grave crise de sucessão. D.
Fernando I deixou apenas uma filha, D. Beatriz, casada com D. João I de Castela. Por
isso, se sentia o monarca castelhano com direito à coroa portuguesa. Foi na
sequência destes acontecimentos que D. João Mestre de Avis se declarou rei de
Portugal e, como sabemos, a crise só se resolveria com a Batalha de Aljubarrota,
em 1385.
Neste romance, D. João I de Castela surge, em 1384,
com a sua armada, no Tejo, cercando Lisboa e Almada ao mesmo tempo, a fim de impor
a sua autoridade. O autor, António da Costa Neves, faz um bom retrato da época,
através da sua personagem principal, João Galo, baseada num tabelião que
existiu historicamente. Aqui, João Galo tem apenas 13/14 anos e é filho do
regedor Afonso Galo, que faz parte do concelho da vila de Almada. Numa nota
inicial, o autor esclarece que não tem a certeza desta relação familiar. Tomou,
no entanto, esta opção, em prole do enredo, o que é legítimo, num romancista.
Sendo filho de um notável de Almada, o jovem João Galo
mantém-se informado sobre os acontecimentos, que o leitor vê através dos seus
olhos. Como disse, a época e a sua linguagem estão bem caracterizadas, assim
como a vida do jovem, cujas incertezas e insegurança próprias da adolescência
se misturam com os acontecimentos históricos.
Houve, porém, um aspeto que não me pareceu muito
credível. João Galo atravessa várias vezes o Tejo, num pequeno barco, esgueirando-se
por entre as galés castelhanas, acompanhado do seu futuro sogro (na época, um
jovem de 14 anos poderia perfeitamente estar de casamento marcado), a fim de se
inteirarem da situação em Lisboa. É certo que eles saem sempre de Almada às
escondidas, ao escurecer, ou de manhã muito cedo, disfarçados de pescadores de
alguma aldeia próxima (fazem-se ao rio num ponto afastado da vila), a quem os
castelhanos não dão grande importância. Pergunto-me, porém, se tal seria possível, já
que a finalidade de um cerco era levar os sitiados a morrer de fome. E mesmo
que os castelhanos não os considerassem habitantes de Almada, deixá-los-iam
andar à vontade?
Não obstante, trata-se de uma boa leitura para quem se
interesse pela época e por este tema, em particular.
Published on June 07, 2019 02:15
June 4, 2019
Ajudar quem quer desistir
Foto © Horst Neumann
O jornal católico que assino (na Alemanha), dedicou, há algumas semanas, uma edição ao suicídio (nº 18, 15-05-2019). Achei interessantíssimo, acima de tudo, porque informava como devemos reagir, caso desconfiemos que alguém que nos está próximo, ou que conhecemos, corre o risco de se suicidar. É um tema muito difícil de ser abordado e muitos de nós não o fazem pela simples razão de não saber como. Também há quem pense que o melhor é ignorar, pois receia que, ao referir o assunto, encoraje ainda mais a pessoa a levar a cabo as suas intenções.
No entanto, o contrário é válido: os psicólogos consultados foram unânimes a afirmar que ninguém deve ter medo de provocar o suicídio, pelo facto de o referir. É muito mais eficaz abordar a pessoa diretamente. Por exemplo: «Sentes-te tão desesperado, que achas que deves desistir? Encaras a possibilidade de pôr um fim a tudo? Como te posso ajudar?»
Quem pensa em suicidar-se, costuma enviar sinais. Anda angustiado, sem esperança, desesperado; deixa de cultivar as suas amizades, ou de exercer os seus hobbies; queixa-se de ser um fardo para os outros; ou diz mesmo que pretende acabar com a vida. Quem assim age, precisa de quem o ouça, de quem o leve a sério e lhe providencie ajuda profissional. Ignorar, na esperança de que passe, é o maior erro.
Outro grande erro é tentar menorizar os problemas de quem sofre: “isso não é nada”; “há quem esteja bem pior”; “isso passa”; “tens de te animar”; “pensas que a minha vida também é fácil?”. Atitudes destas são de evitar ao máximo, pois a pessoa sente que não é levada a sério, o que a deixa ainda mais amargurada, mais fechada.
A parte mais interessante no tratamento deste tema, foi, para mim, uma entrevista a uma senhora que faz trabalho voluntário numa linha do tipo “SOS Voz Amiga”, da qual traduzo algumas passagens:
Imagine que está de serviço na linha e alguém telefona a dizer: “estou desesperado, vou matar-me”. O que faz?
Em primeiro lugar, tento estabelecer um contacto, alcançar a pessoa em todos os sentidos.
E como o faz?
Pergunto: “Quer contar-me o que o deixa assim tão desesperado? O que está por trás disso?”. Depois, conforme o que me contam, valorizo a luta dessa pessoa, valorizo o seu sofrimento, a sua dor. Digo, por exemplo: “eu sei o que tem de aguentar; sei como é difícil levantar-se todos os dias e tentar viver normalmente, ignorando o sofrimento da depressão”. Com expressões deste género, consigo o contacto. O meu interlocutor ganha confiança em mim e solta-se. No decorrer da conversa, digo: “diz-me que não quer continuar a viver e eu consigo compreender. Mas o que seria necessário para que dissesse que tornaria a tentar? Pode sempre suicidar-se, no fim, terá sempre essa opção. Mas vamos primeiro ver: o que é ainda possível? Tem talvez um sonho na sua vida, alguma coisa que gostaria de fazer? Repare: luta todos os dias contra a sua depressão, sem avançar. Não concebe empregar essa energia para atingir algo com que sempre sonhou?”. Tento não dar conselhos, mas sim avaliar quais as possibilidades que a pessoa ainda tem, ir ao encontro dos seus desejos, dos motivos que a podem levar a mudar de ideias.
Não relativiza.
Nunca. A pessoa iria imediatamente sentir que não é levada a sério. Mantenho-me compreensiva e expresso as minhas emoções com sinceridade, por mais abalada que fique. Lembro-me de um caso de um homem que me disse que era o bastardo da família, que sempre fizeram questão de lho dizer, pois ele era o resultado de uma relação extraconjugal de sua mãe. O seu pai [marido da mãe] arrancava-o da cama três vezes por semana, começou a fazê-lo quando ele tinha três ou quatro anos, metia-o no carro, levava-o para um sítio ermo e dizia-lhe que lhe dava um tiro e que depois se suicidava da mesma maneira. Nunca o fez, mas o homem revivia o cenário constantemente.
Isso é horrível. Como reage?
Com sinceridade. Digo: “Isso que me está a contar abala-me imenso; até me pergunto como tem conseguido sobreviver”.
Nunca relativizar ou desvalorizar.
Exatamente. E tento então ver onde estão as possibilidades. Pergunto: “como tem aguentado esse fardo? O que lhe deu força? A sua fé? A sua avó? Um amigo? Tem de haver alguma coisa.” Faço perguntas. E não dou conselhos, apenas sugestões, em função do que me dizem.
E como é consigo? Como supera a desilusão, quando alguém desliga, a meio da conversa, deixando-a com a sensação de que não evitará o suicídio?
Aceito, simplesmente. E procuro distanciar-me, digo-me: a decisão de desligar foi do outro. Tentei dar o meu melhor, fazer o que estava dentro das minhas possibilidades. Se não chegou, não há nada que eu possa fazer para alterar esse estado de coisas.
Acrescento que esta senhora teve uma formação de dois anos, antes de começar a atender pessoas em desespero.
Nota: a tradução é minha, do alemão; o publicado é um resumo da entrevista que li.
Published on June 04, 2019 02:27
May 29, 2019
Efemérides históricas ao tempo da formação de Portugal (1)
Faz hoje 911 anos que morreu um infante
hispânico com apenas quinze anos de idade, de seu nome Sancho. E que
importância pode ter um acontecimento destes para Portugal, ocorrido
numa altura em que o nosso país ainda nem existia (talvez D. Afonso
Henriques ainda nem fosse nascido)?
Na verdade, esta morte modificou o curso
da História hispânica de forma radical. Caso o jovem Sancho tivesse
sucedido a seu pai, seria até provável que o reino de Portugal nunca se
tivesse formado. Estamos a falar do único filho varão do imperador D.
Afonso VI, pai de D. Teresa e avô de D. Afonso Henriques.

Afonso VI de Galiza, Leão e Castela, imagem daqui, sem indicação de data e autor
Num certo aspeto, a história de vida de
D. Afonso VI, rei de Leão Castela e Galiza, o que lhe valeu o título de
imperador, assemelha-se à de Henrique VIII de Inglaterra, que haveria
de nascer quase quatro séculos depois da sua morte: esperou, durante
toda a sua vida, por um herdeiro varão. Apesar de ter casado cinco
vezes, nasceu-lhe apenas uma criança legítima: a infanta D. Urraca, a
conhecida meia-irmã de D. Teresa.
À medida que envelhecia, D. Afonso VI
via-se incapaz de se conformar com este destino e, no início do século
XII, terá casado com Zaida, a sua barregã moura, legitimando assim o
filho de ambos. Zaida ter-se-ia convertido ao Cristianismo, sendo
batizada com o nome de Isabel, tendo o seu filho adquirido o nome de
Sancho (não sabemos como anteriormente se chamaria). Este casamento do
imperador não é consensual, entre os historiadores, pois não há forma de
o provar. A ter sido celebrado, foi-o de forma muito discreta. No
entanto, encontram-se referências a uma “rainha Isabel”, em alguns
documentos coevos, e o Professor Abel Estefânio, da Universidade do
Porto, refere, num seu artigo na revista Medievalista online, que “é pela autoridade do bispo Paio de Oviedo que somos informados de Zaida que «babtizata Helisabeth fuit vocitata»”.
Do que não há qualquer dúvida é que D.
Afonso VI, nos primeiros anos do século XII, decidiu apontar esse seu
filho, nascido em 1093, como seu sucessor legítimo, apelidando-o de
«infante Sancho». O jovem passou a confirmar os documentos oficiais da
corte, em conjunto com sua mãe, a tal «rainha Isabel».
Podemos imaginar o impacto que esta
medida causou na corte, nomeadamente em sua filha legítima Urraca e seu
genro Raimundo, mas também no casal Henrique-Teresa. Esse impacto foi de
tal ordem, que levou os dois genros a esquecerem as suas rivalidades, a
fim de firmarem, às escondidas do sogro, um Pacto Sucessório,
acontecimento praticamente desconhecido da nossa historiografia, mas
onde os dois decidiam como seria dividida a herança do imperador,
passando por cima do infante Sancho.
O vendaval durou, porém, apenas meia
dúzia de anos. O conde D. Raimundo faleceu, de repente, ainda antes do
sogro. E o jovem Sancho, nomeado, com apenas quinze anos, responsável
pela defesa de Toledo, acabou por perecer na Batalha de Uclés, a 29 de
Maio de 1108, na sequência de um ataque sarraceno.
D. Afonso VI, velho, doente e minado
pelo desgosto, morreria apenas cerca de um ano mais tarde. Antes disso,
porém, reuniu Cortes em Toledo e anunciou a filha Urraca sua sucessora,
ao que aliás se opôs o genro Henrique. Este acontecimento originou o
rompimento do conde portucalense com o sogro, que o baniu da corte,
considerando-o traidor.

Urraca I de Leão e Castela - Pintura de 1892/94 por José María Rodríguez de Losada na Prefeitura de Leão, Wikipedia
Como sabemos, também D. Henrique acabou
por morrer prematuramente, tornando-se as meias-irmãs Urraca e Teresa as
principais protagonistas da História Ibérica durante mais de uma
década. Ora, se o infante Sancho tivesse, de facto, sucedido a seu pai,
não se teriam verificado as lutas pelo poder entre as duas irmãs,
rivalidades que foram fundamentais para a formação do reino português.
Texto publicado originalmente aqui .
hispânico com apenas quinze anos de idade, de seu nome Sancho. E que
importância pode ter um acontecimento destes para Portugal, ocorrido
numa altura em que o nosso país ainda nem existia (talvez D. Afonso
Henriques ainda nem fosse nascido)?
Na verdade, esta morte modificou o curso
da História hispânica de forma radical. Caso o jovem Sancho tivesse
sucedido a seu pai, seria até provável que o reino de Portugal nunca se
tivesse formado. Estamos a falar do único filho varão do imperador D.
Afonso VI, pai de D. Teresa e avô de D. Afonso Henriques.

Afonso VI de Galiza, Leão e Castela, imagem daqui, sem indicação de data e autor
Num certo aspeto, a história de vida de
D. Afonso VI, rei de Leão Castela e Galiza, o que lhe valeu o título de
imperador, assemelha-se à de Henrique VIII de Inglaterra, que haveria
de nascer quase quatro séculos depois da sua morte: esperou, durante
toda a sua vida, por um herdeiro varão. Apesar de ter casado cinco
vezes, nasceu-lhe apenas uma criança legítima: a infanta D. Urraca, a
conhecida meia-irmã de D. Teresa.
À medida que envelhecia, D. Afonso VI
via-se incapaz de se conformar com este destino e, no início do século
XII, terá casado com Zaida, a sua barregã moura, legitimando assim o
filho de ambos. Zaida ter-se-ia convertido ao Cristianismo, sendo
batizada com o nome de Isabel, tendo o seu filho adquirido o nome de
Sancho (não sabemos como anteriormente se chamaria). Este casamento do
imperador não é consensual, entre os historiadores, pois não há forma de
o provar. A ter sido celebrado, foi-o de forma muito discreta. No
entanto, encontram-se referências a uma “rainha Isabel”, em alguns
documentos coevos, e o Professor Abel Estefânio, da Universidade do
Porto, refere, num seu artigo na revista Medievalista online, que “é pela autoridade do bispo Paio de Oviedo que somos informados de Zaida que «babtizata Helisabeth fuit vocitata»”.
Do que não há qualquer dúvida é que D.
Afonso VI, nos primeiros anos do século XII, decidiu apontar esse seu
filho, nascido em 1093, como seu sucessor legítimo, apelidando-o de
«infante Sancho». O jovem passou a confirmar os documentos oficiais da
corte, em conjunto com sua mãe, a tal «rainha Isabel».
Podemos imaginar o impacto que esta
medida causou na corte, nomeadamente em sua filha legítima Urraca e seu
genro Raimundo, mas também no casal Henrique-Teresa. Esse impacto foi de
tal ordem, que levou os dois genros a esquecerem as suas rivalidades, a
fim de firmarem, às escondidas do sogro, um Pacto Sucessório,
acontecimento praticamente desconhecido da nossa historiografia, mas
onde os dois decidiam como seria dividida a herança do imperador,
passando por cima do infante Sancho.
O vendaval durou, porém, apenas meia
dúzia de anos. O conde D. Raimundo faleceu, de repente, ainda antes do
sogro. E o jovem Sancho, nomeado, com apenas quinze anos, responsável
pela defesa de Toledo, acabou por perecer na Batalha de Uclés, a 29 de
Maio de 1108, na sequência de um ataque sarraceno.
D. Afonso VI, velho, doente e minado
pelo desgosto, morreria apenas cerca de um ano mais tarde. Antes disso,
porém, reuniu Cortes em Toledo e anunciou a filha Urraca sua sucessora,
ao que aliás se opôs o genro Henrique. Este acontecimento originou o
rompimento do conde portucalense com o sogro, que o baniu da corte,
considerando-o traidor.

Urraca I de Leão e Castela - Pintura de 1892/94 por José María Rodríguez de Losada na Prefeitura de Leão, Wikipedia
Como sabemos, também D. Henrique acabou
por morrer prematuramente, tornando-se as meias-irmãs Urraca e Teresa as
principais protagonistas da História Ibérica durante mais de uma
década. Ora, se o infante Sancho tivesse, de facto, sucedido a seu pai,
não se teriam verificado as lutas pelo poder entre as duas irmãs,
rivalidades que foram fundamentais para a formação do reino português.
Texto publicado originalmente aqui .
Published on May 29, 2019 11:06
April 29, 2019
Contos do Portugal Profundo (9)
«Ela insistiu e foi ainda mais longe na descodificação que fazia da natureza humana. Falou do medo, da impotência, da solidão, da perda... Metia-se com ele, talvez por sentir que ele fingia não ser grande adversário. E era verdade. Naquele momento estava ali sentado, com a mesma sensação de estar a assistir a uma peça de teatro ou a um filme. E como sabia que o silêncio era de ouro nos momentos em que a arte se confundia com a vida, não perturbava nem um pouco o "monólogo" de Eva...»
In "Despedidas à Francesa Num Outro Portugal", de Luís Alves Milheiro
À venda na Amazon:
https://www.amazon.es/Contos-Do-Portugal-Profundo-brasileira/dp/1727085205/ref=olp_product_details/258-8970244-4227953?_encoding=UTF8&me=&qid=1540376542&sr=1-1
Published on April 29, 2019 02:20
April 25, 2019
Abril no feminino?
Imagem: Centro de Documentação 25 de Abril – Universidade de Coimbra
Lisboa, Calçada de Carriche; mural do PCP
Estava eu sem inspiração nenhuma para escrever sobre o 25 de Abril, quando deparei com um post da jornalista Helena Ferro de Gouveia no Facebook:
«Mulheres de Abril
A história da Revolução ainda é contada
no masculino deixando na sombra aquelas que foram chamadas de
“companheiras na sombra”. Seja Maria Barroso, a retaguarda familiar de
Soares, sejam as mulheres no partido comunista, sejam escritoras,
artistas, professoras, sejam as mulheres de alguns movimentos católicos,
sejam as mulheres-mães-noivas-namoradas dos que combateram na guerra
colonial ou dos que pensaram o derrube do regime.
Mesmo após o fim da ditadura, no
período quente, elas não viveram tempos fáceis. A escritora Maria Teresa
Horta recorda que ajudou a organizar uma manifestação de luta pelos
direitos das mulheres. Nessa manifestação previa-se a queima de símbolos
da opressão feminina: vassouras, grinaldas de noiva… Porém, centenas de
homens juntaram-se em redor das mulheres e começaram a bater-lhes.
"Eram murros, despiam as mulheres, tentavam violá-las", conta a
escritora.
Quarenta e cinco anos depois de Abril
muito mudou para as mulheres em matéria de direitos e liberdades, há
ainda um longo caminho a percorrer para mudar mentalidades e falta
cumprir a igualdade. E foi também para isso que se fez Abril.»
Interessa-me o papel da mulher nos vários momentos da História e comecei a ler Mulheres da Clandestinidade,
de Vanessa de Almeida. O que mais me surpreendeu, até agora, foi a
forma de como as mulheres comunistas eram discriminadas no próprio
partido, um partido que, já durante o salazarismo, fazia da igualdade
uma das suas bandeiras.
Porém, os nossos comunistas não são caso único. Vi, há tempos, um
documentário na TV alemã sobre as mulheres do Kremlin e fiquei
igualmente abismada como elas eram usadas, mas “escondidas”, a fim de
dar protagonismo aos homens. Muito poucos saberão o nome das mulheres
que estiveram ao lado de personalidades como Lenine ou Estaline, por
exemplo. Ainda hoje, a Rússia não lida bem com a figura da “primeira
dama” (para não falar de uma mulher à frente dos destinos da nação).
Nesse programa, dizia-se que Raíssa Gorbachev foi muito criticada por
constantemente surgir ao lado do marido. Putin surge sempre sozinho. É
verdade que se separou da mulher, mas, mesmo quando ainda eram casados, a
sua actuação era idêntica. Ou alguém se lembra da mulher de Putin?
Regressando à nossa Revolução: é sabido que o 25 de Abril abalou os
costumes, porquanto o vendaval causado pelos chaimites de Salgueiro Maia
coincidiu com a revisão da Concordata, por parte do Vaticano,
permitindo o divórcio civil para casais unidos pela Igreja. Mesmo sendo
criança (entre os oito e os doze anos, se englobarmos o Verão Quente e o
período que se lhe seguiu), não fiquei indiferente à confusão de certos
adultos, perante tanta liberdade. Há uns anos, escrevi as minhas
memórias do 25 de Abril, que acabei por misturar com comentários da
adulta que hoje sou. Ainda não consegui publicá-las em livro, mas não
resisto a transcrever um pequeno excerto:
«Muitos pais de família romperam com as amarras que os haviam levado
ao casamento apenas para terem sexo à disposição. Partiram à procura das
Emanuelles* e das gargantas fundas*, o que aliás está
longe de implicar que as tenham encontrado. Sá Carneiro acabou por
personalizar esta nova ordem, ao divorciar-se para se juntar a outra
mulher. É curioso constatar que foi um homem de direita, que muitos
apelidavam ainda de fascista, que acabou por se tornar na personificação
da nova ordem.
Porém, o desaparecer de muitas convenções sociais e de outras
fachadas foi, em parte, aparente. À semelhança de outros momentos da
História, as liberdades a nível individual eram pensadas sobretudo para
os homens. Naqueles anos imediatos ao 25 de Abril, ainda não se aceitava
bem a ideia de que a esposa, a mãe divorciada, que ficava com os filhos
a seu cargo, fosse à procura de novo parceiro. Ela própria se escusava a
tal comportamento. A sua atitude de protesto passava, paradoxalmente,
pela defesa dos valores tradicionais».
* Expressões baseadas em títulos de filmes mais ou menos
pornográficos que, na altura, se mantiveram meses (talvez até anos) em
exibição nos cinemas e se transformaram em verdadeiros símbolos da nova
era.
Nota: texto originalmente publicado aqui .
Published on April 25, 2019 04:20
April 16, 2019
A Igreja Católica em crise
Sou assinante de um jornal católico
alemão semanal, o KirchenZeitung, ou KiZ, na sua abreviatura oficial, pertencente
ao bispado de Hildesheim. Nos últimos tempos, traz um ou mais artigos sobre o abuso sexual de menores dentro da Igreja Católica em quase todas as suas edições. Há quem ache que é demais e apele a que se
deixe o assunto em paz. Já se admitiu que o problema existe. Não chega? Até
porque, felizmente, os clérigos abusadores não são a maioria.
Surdo a tais apelos, o KiZ insiste no assunto. E eu aplaudo. Porque é disso mesmo que os
prevaricadores estão à espera: que, depois de se fazer uma balbúrdia à volta do
assunto, o caso adormeça e eles possam voltar a maltratar as suas vítimas na
paz do Senhor. Como sempre foi, durante séculos e séculos. Uma teia
impenetrável de prevaricadores e coniventes, que abafam os crimes, que nunca
castigam os criminosos, levando a Igreja de Cristo a esta situação incomportável:
protecção dos criminosos, em vez de protecção das vítimas! Dizia, há tempos,
uma colaboradora desse jornal: é inadmissível que um padre que o deixe de ser,
a fim de se casar, seja tratado de forma mais dura pela sua Igreja, do que
aqueles que abusam sexualmente de crianças!
Tenho lido relatos incríveis de antigas vítimas.
Também há mulheres, mas a maioria parece ser homens. Em todo o caso, trata-se
de pessoas que, só aparentemente, levam uma vida normal, pois não se livram de
depressões, insónias, ataques de pânico e tentativas de suicídio durante toda a
sua vida. Pessoas com asco de si próprias. Pessoas que tornam a recordar coisas
que julgavam esquecidas, por exemplo, quando têm filhos, levando-as a cair
novamente num poço escuro e frio, chegando a ficar com medo de tocar nas
crianças (as suas crianças) de forma imprópria.
É duro ouvir um homem de sessenta anos dizer que se
martirizou com pensamentos de pecado, ao lembrar-se de como regozijou ao saber
que o padre, que abusara dele durante dois anos, ia ser transferido para outra
paróquia. Na festa de despedida, toda a gente estava triste, por aquele padre
tão simpático se ir embora. E ele, um miúdo de 11 ou 12 anos, estava feliz. E censurou-se
por isso! É duro ler como bispos regiam autênticas redes de troca de menores. É
duro ler como um padre, ganhando a confiança de uma família, a ponto de fazerem
férias juntos, abusasse do miúdo, que dormia com ele, enquanto os pais dormiam
no quarto ao lado, pensando que o filho não poderia estar entregue em melhores
mãos.
Este último caso ilustra como a Igreja tem
responsabilidades acrescidas. O Papa Francisco desiludiu no seu discurso de
encerramento do encontro extraordinário de bispos em Roma, a fim de debater o
assunto, há cerca de dois meses, ao relembrar que abusos sexuais a menores
acontecem em todos os lugares onde adultos estão em contacto com crianças e
jovens, como clubes desportivos, colónias de férias, lares, etc. Esta
relativização caiu mal a muita gente, pois não se pode comparar o prestígio de
um clérigo, representante de Deus na Terra, com o de um treinador de ginástica.
Além disso, aconteça onde acontecer este crime, não pode ser nunca menorizado
ou relativizado. Muitos se perguntam o que levou um Papa, normalmente tão
acutilante e corajoso, ficar-se por discurso tão modesto. Por isso, escolhi a
fotografia acima para ilustrar este post
(igualmente copiada do KiZ): o Papa
mostra-se abatido e encolhido, como se o peso que carrega nos ombros se tenha
tornado demais para ele.
Numa altura de falta de padres e de igrejas quase
vazias, escândalos deste tipo minam a confiança na instituição milenar. Não há
dúvida de que a Igreja vive uma grande crise e só resolverá o problema com uma
grande reforma. Alguns bispos alemães dão os primeiros passos, apesar de
sofrerem a contestação de muitos dos seus pares. O novo bispo de Hildesheim,
por exemplo, afirmou, numa entrevista, que a ganância do poder está inscrita no
DNA da Igreja. Foi naturalmente muito contestado. Mas também apoiado. Porque
ele pôs o dedo na ferida. Os abusos impunes de menores só se tornaram
possíveis, porque a Igreja se transformou num clube de homens que se protegem
uns aos outros, a fim de manterem o seu poder.
O bispo Heiner
Wilmer não se deixa intimidar e constituiu uma comissão que
deverá investigar os casos de abuso sexual no seu bispado entre os anos 1957 e
1982, o tempo de regência de um bispo muito querido e conceituado, mas que se
desconfia que fazia parte de uma rede de troca de rapazinhos, algo que caiu
como uma bomba entre os católicos alemães que se lembram dele, até agora, com
muita saudade. Os elementos da comissão investigadora não são clérigos, nem estão
particularmente relacionados com a Igreja, a fim de garantir a sua
independência. E o bispo Heiner Wilmer prometeu pôr todos os arquivos à
disposição dos investigadores. Este é um dos problemas, quando se trata de
investigar: a retenção de informação por parte da Igreja.
Quatro pessoas fazem parte da comissão: dois
psicólogos, que se encarregarão de entrevistar possíveis vítimas e outras
testemunhas; um procurador-geral reformado que, durante quinze anos, presidiu a
uma comissão que investigou crimes nazis em Ludwisburg, e a antiga Ministra da
Justiça da Baixa Saxónia (um Land
alemão) que presidirá à comissão (informações tiradas do Kiz nº 14, de 07 de Abril passado).
O facto de estar uma mulher à frente desta comissão
não é por acaso. O bispo Heiner Wilmer é de opinião de que a Igreja Católica só
tem a ganhar envolvendo mulheres nos seus assuntos. Mais: ele considera ser
essencial a participação de mulheres na reforma que se exige, não excluindo a
sua ordenação.
Foi com agrado que, apesar das críticas que lhe são
feitas, constatei haver colegas seus a seguir-lhe o exemplo. No último KiZ (nº 15, de 14 de Abril), li que o
bispo de Osnabrück, Franz-Joseph Bode, considera a discussão do papel da mulher
na Igreja como urgente, central e inevitável. Na sua opinião, a Igreja Católica
está a desmoronar e só pode recuperar a confiança, quando mulheres e homens
trabalharem em conjunto. Li igualmente com muito agrado que o bispo de Limburg,
Georg Bätzing, pretende igualmente constituir uma comissão, a fim de investigar
os abusos sexuais no seu bispado nos últimos setenta anos. A comissão será
constituída por duas pessoas não ligadas à Igreja e terão de ser um homem e uma
mulher.
Não se trata, aqui, de quotas ou de calar críticas.
Trata-se, acima de tudo, de enquadrar mulheres nos meandros da Igreja,
quebrando o monopólio dos homens que se apoiam e protegem mutuamente. Desejo
muito que isso aconteça. Não porque as mulheres sejam, em geral, melhores do
que os homens, mas porque a sua presença quebrará a irmandade masculina. Além
disso, a sua opinião deve ser ouvida. Os homens são apenas metade da
Humanidade. Nos dias de hoje, não há razão para que sejam apenas eles a
decidirem sobre assuntos que digam respeito a toda a Humanidade. Na verdade, impressiona-me
que tal procedimento tenha funcionado durante milénios!
Sigo tudo isto com grande interesse, não para atacar a
Igreja Católica, mas numa grande esperança de que ela se consiga renovar. A
Igreja enfrenta um dos maiores desafios da sua História e urge redefinir o seu
papel. Para que serve, hoje em dia? Apenas para baptizados, comunhões,
casamentos e funerais? Não podemos esquecer as suas tão necessárias missões
caritativas espalhadas pelo mundo. E a Igreja Católica alemã tem-se concentrado
noutras causas: o apoio aos refugiados (nos últimos anos, entraram cerca de
dois milhões, neste país) e a ecologia. Sim, a preservação do ambiente, aliada
à causa animal, tem-se tornado, cada vez mais, uma causa da Igreja. A razão?
Proteger a Criação Divina.
Seria bom que a Igreja portuguesa lhe seguisse o
exemplo, fomentando o debate sobre temas polémicos e se deixasse de dogmas
ultrapassados, a fim de se dedicar a causas realmente importantes.
Nota: texto publicado originalmente aqui .
Published on April 16, 2019 11:40


