Cristina Torrão's Blog, page 24
March 8, 2020
8 de março (3)
Published on March 08, 2020 09:15
8 de março (2)
Published on March 08, 2020 06:15
8 de março (1)
Published on March 08, 2020 03:15
February 29, 2020
Os Crimes de Hamburgo
Há posts que trazem consequências e contactos
inesperados. Primeiro, falei nos “Portugal-Krimis”,
ou seja, policiais escritos por alemães, mas situados em Portugal. Depois, fui contactada
por um dos autores, o que me despertou a curiosidade. Acabei por ler um livro
dele, do qual falei aqui.
Mas a história continuou: fui, por sua vez, contactada por um jovem autor
português, que escreveu um policial passado na Alemanha. Os Crimes de
Hamburgo é o primeiro romance de Francisco Carvalho, editado em Outubro
passado pela Coolbooks, inspirado nos dois anos que o autor viveu na
cidade alemã.
É um policial muito bem engendrado, cheio de
personagens interessantes, com suspense e bem resolvido. Tem outra
mais-valia: o tema é actual. Em Hamburgo, começam a ser assassinados refugiados
oriundos de países muçulmanos. Francisco Carvalho revela sensibilidade e
conhecimento do assunto. Dá-nos a conhecer os centros onde os refugiados são
aquartelados, enquanto esperam que a sua situação se regularize, e as
dificuldades com que são confrontados. De assinalar também a maneira como
consegue transmitir a atmosfera da cidade do Norte da Alemanha, já com ares de
Escandinávia.
Trata-se de um bom primeiro romance. E, como Francisco
Carvalho, segundo nos informa a editora, «tem mais histórias para contar», penso
que compensará ficarmos atentos a este nome.
Published on February 29, 2020 08:24
February 10, 2020
Emigrantes
Apesar de, nos últimos anos, Portugal se ter
igualmente tornado num país de imigrantes, é, sobretudo, um país de emigrantes.
Não se compreende, por isso, que a temática seja rara na nossa literatura, comparado com a importância e o impacto
do fenómeno no nosso país. Assim, o resultado não é animador: quando se fala de
emigração, das duas, uma: ou é para enfatizar a capacidade que os portugueses
têm para se adaptarem aos países de acolhimento, ou é para criticar a soberba
dos emigrantes de visita à terra. Não nego a pertinência destes dois aspetos,
mas a emigração é muito mais do que isso. A emigração é sobretudo um corte radical
na vida de pessoas e suas famílias, com consequências que insistimos em ignorar.
Marcamos irremediavelmente a nossa vida, no momento em que emigramos, e nada é
como imaginamos, nem sequer como planeámos.
Estes motivos chegariam, por si só, para sustentar a
importância de um livro como este. Adicionemos-lhe agora a qualidade de uma
escrita sensível, sem se tornar kitsch, ou sentimentaloide, de Ferreira
de Castro, ao descrever a fissura interior de quem deixa a sua terra-natal,
para se aventurar num outro mundo, aliada à ingenuidade de quem espera
encontrar um paraíso que não existe. Manuel da Bouça adapta-se, sim, adapta-se
a tudo. Mas… a que preço? A sua desilusão é palpável. E não só no Brasil
longínquo, também o regresso à pátria se revela completamente diferente daquilo
que imaginara.
Este é, por isso, um livro importantíssimo, devia até
ser leitura, não digo obrigatória, mas recomendada, no ensino oficial. Aliás, qualquer
obra sobre este tema, a que lhe seja atribuída a qualidade necessária, devia
ser lida e tratada nas escolas portuguesas. E, não havendo tempo para um romance,
podia optar-se por um conto, pelo menos um, durante a escolaridade obrigatória.
Tenho apenas uma falha a apontar a este livro de
Ferreira de Castro: as mulheres surgem quase como meras figurantes. Antes que
me acusem de anacronismo, de que tenho de ver o contexto em que foi escrito o
romance, etc. e tal (uma acusação que está tanto na moda), acrescento que
compreendo perfeitamente que Ferreira de Castro assim tenha procedido, pois era
um homem da sua época (o romance foi publicado pela primeira vez em 1928). Além
disso, a personagem principal é masculina e o autor centra-se (e muito bem) na
sua perspetiva. Não será, no entanto, descabido que se chame a atenção para a
imagem estereotipada de mulheres e crianças, bem presente nesta frase:
«A sua alegria desvanecera-se e agora, volvido de novo
para o cais, ao ver os últimos emigrantes desembarcados, que caminhavam,
trôpegos e miseráveis, entre as mulheres e os filhos, apiedava-se deles» (p.
219).
Embora o masculino plural sirva para os dois géneros, temos a sensação de que a
frase apelida de emigrantes apenas os homens, reduzindo as mulheres e as
crianças a simples figurantes.
Porém, repito: marca de uma época, que não tira a importância
nem o mérito a este excelente romance. Pelo contrário. Ensina-nos que o mundo já foi diferente do que é hoje.
Published on February 10, 2020 02:57
February 4, 2020
Os criadores da mulata
Costuma dizer-se que o dinheiro, ou o poder, estragam o carácter. Na verdade, acontece o contrário: o dinheiro, ou o poder, mostram o verdadeiro carácter, aquele que foi recalcado. O adquirir de poder, ou de riqueza, abre novas possibilidades, surge a oportunidade de dar livre curso a desejos e práticas que muitos mantinham secretos.
Penso que se passa algo parecido com a libertação da xenofobia que alguns portugueses têm manifestado. Durante muito tempo, houve a convicção de que não existia racismo em Portugal. E a prova era que, em muitos países europeus, havia partidos de extrema-direita, notoriamente xenófobos, com bons resultados eleitorais, enquanto que, em Portugal, tudo continuava pacato. Confirmava-se: o nosso jardinzinho à beira-mar era um oásis.
O surgimento do partido Chega parece ter soltado a rolha que se mantinha sob pressão. Agora, sim, muitos mostram, sem pruridos, aquilo que lhes ia no interior. A melhor prova de que há racismo é o facto de este novo partido ter passado de 1,29%, nas últimas eleições, para 6,2%, nas últimas sondagens, muito à custa de uma simples frase do seu líder: mandou uma deputada negra regressar à "sua" terra. Ah, mas o homem foi provocado, coitado, a dita senhora deu-lhe cabo da paciência, precisava de uma lição. Enfim, um homem não é de ferro… (Isto faz-me lembrar outras coisas que não digo, para não me desviar do tema).
Quero, no entanto, fazer um parênteses para declarar que não estou a apoiar a proposta de Joacine Katar Moreira de devolver a África peças de arte que se encontram nos museus portugueses. Na verdade, não tenho competência para deliberar sobre esse assunto. Não sou, porém, contra a discussão de tal proposta, escutando vários pontos de vista, pois é algo que ocupa igualmente os governos de outros países europeus. O que eu veementemente condeno é a atitude do líder do partido Chega. Nada, no meu entender, a justifica. Mas o que mais me choca não é o comportamento condenável de um político (infelizmente, não é raro, entre políticos). O que mais me choca é a tal atitude ter ajudado a disparar as intenções de voto no seu partido.
Diz-se que os portugueses criaram a mulata, já em criança ouvia. E já nesse tempo, eu achava que havia algo de muito errado, nessa frase. Como Deus criou o homem (como sabem, o masculino serve para os dois géneros), o português criou a mulata - interessante, aqui, usa-se a forma feminina, embora seja inevitável que o garanhão luso tenha igualmente criado o mulato em proporções idênticas. Não estava mais de acordo com o funcionamento da nossa língua dizer que o português criou o mulato?
Mas ninguém fala no mulato, só na mulata. Porquê? Ora, porque a mulata é uma mulher lindíssima, sensual, que faz ferver o sangue dos homens. Quantos sonhos as mulatas já alimentaram, quantos poemas e canções já lhe foram dedicados… E quantos desses portugueses casaram com as mulatas que idolatravam? Bem, convenhamos que essa perfeição feminina transporta em si os genes negros… Por isso, não misturemos as coisas! A mulata serve para a diversão; casar é com a branca! Embora possa ser uma branca moreninha, assim com um tom de pele próximo do da mulata…
“Os portugueses criaram a mulata” - esta frase, que se diz com orgulho (não fôssemos nós um país de poetas) encerra, em si, um verdadeiro tratado sobre racismo e machismo. Hoje, fico-me pelo racismo, esse, que André Ventura ajudou a libertar. Acho que até lhe devíamos agradecer por, finalmente, nos mostrar a verdade. Espero que contribua para que deixemos de mentir a nós próprios.
Nota: Texto originalmente publicado aqui.
Penso que se passa algo parecido com a libertação da xenofobia que alguns portugueses têm manifestado. Durante muito tempo, houve a convicção de que não existia racismo em Portugal. E a prova era que, em muitos países europeus, havia partidos de extrema-direita, notoriamente xenófobos, com bons resultados eleitorais, enquanto que, em Portugal, tudo continuava pacato. Confirmava-se: o nosso jardinzinho à beira-mar era um oásis.
O surgimento do partido Chega parece ter soltado a rolha que se mantinha sob pressão. Agora, sim, muitos mostram, sem pruridos, aquilo que lhes ia no interior. A melhor prova de que há racismo é o facto de este novo partido ter passado de 1,29%, nas últimas eleições, para 6,2%, nas últimas sondagens, muito à custa de uma simples frase do seu líder: mandou uma deputada negra regressar à "sua" terra. Ah, mas o homem foi provocado, coitado, a dita senhora deu-lhe cabo da paciência, precisava de uma lição. Enfim, um homem não é de ferro… (Isto faz-me lembrar outras coisas que não digo, para não me desviar do tema).
Quero, no entanto, fazer um parênteses para declarar que não estou a apoiar a proposta de Joacine Katar Moreira de devolver a África peças de arte que se encontram nos museus portugueses. Na verdade, não tenho competência para deliberar sobre esse assunto. Não sou, porém, contra a discussão de tal proposta, escutando vários pontos de vista, pois é algo que ocupa igualmente os governos de outros países europeus. O que eu veementemente condeno é a atitude do líder do partido Chega. Nada, no meu entender, a justifica. Mas o que mais me choca não é o comportamento condenável de um político (infelizmente, não é raro, entre políticos). O que mais me choca é a tal atitude ter ajudado a disparar as intenções de voto no seu partido.
Diz-se que os portugueses criaram a mulata, já em criança ouvia. E já nesse tempo, eu achava que havia algo de muito errado, nessa frase. Como Deus criou o homem (como sabem, o masculino serve para os dois géneros), o português criou a mulata - interessante, aqui, usa-se a forma feminina, embora seja inevitável que o garanhão luso tenha igualmente criado o mulato em proporções idênticas. Não estava mais de acordo com o funcionamento da nossa língua dizer que o português criou o mulato?
Mas ninguém fala no mulato, só na mulata. Porquê? Ora, porque a mulata é uma mulher lindíssima, sensual, que faz ferver o sangue dos homens. Quantos sonhos as mulatas já alimentaram, quantos poemas e canções já lhe foram dedicados… E quantos desses portugueses casaram com as mulatas que idolatravam? Bem, convenhamos que essa perfeição feminina transporta em si os genes negros… Por isso, não misturemos as coisas! A mulata serve para a diversão; casar é com a branca! Embora possa ser uma branca moreninha, assim com um tom de pele próximo do da mulata…
“Os portugueses criaram a mulata” - esta frase, que se diz com orgulho (não fôssemos nós um país de poetas) encerra, em si, um verdadeiro tratado sobre racismo e machismo. Hoje, fico-me pelo racismo, esse, que André Ventura ajudou a libertar. Acho que até lhe devíamos agradecer por, finalmente, nos mostrar a verdade. Espero que contribua para que deixemos de mentir a nós próprios.
Nota: Texto originalmente publicado aqui.
Published on February 04, 2020 10:26
January 26, 2020
Lisboa e Porto

Imagem TV Today 18 a 31-01-2020
Ontem, um canal regional alemão, pertencente ao 1º canal público ARD, mostrou um pequeno programa sobre duas cidades portuguesas. A revista televisiva que costumo comprar, porém, fez uma imensa confusão entre as duas. Traduzindo o texto acima: «Lisboa conta-se entre as "boomtowns" turísticas na Europa. Mais de seis milhões de visitantes anuais - para apenas 500.000 habitantes. A reportagem guia-nos às grandes Praças do Rossio e do Comércio, ao lindíssimo bairro de Alfama e ao Mercado da Ribeira. Depois, segue para o Porto, na margem do Douro».
Presumo que os «500.000 habitantes» deviam pertencer ao Porto. E a legenda da imagem vai ainda mais longe: «Arquitectura imponente: a ponte Dom Luís I em Lisboa»!
Um texto destes é capaz de pôr os cabelos em pé de qualquer português. Para os mais radicais, aqueles que levam a um nível muito pessoal a rivalidade (que se quer saudável) entre as duas maiores cidades do nosso país, um texto destes pode ser mesmo caso para insultos aos responsáveis da revista.
Apesar de também criticar a falta de cuidado com que este pequeno texto foi escrito, aconselho um respirar fundo aos mais indignados. Afinal, se uma revista televisiva portuguesa fizesse uma confusão destas entre Berlim e Hamburgo, não nos merecia mais do que um encolher de ombros (quando muito... e só para quem estivesse em condições de detectar os erros). E eu, que vi o programa, garanto que não se misturaram as duas cidades. Foi uma pequena reportagem interessante, que é bem capaz de atrair ainda mais turistas ao nosso país. Se isso é bom, ou mau, fica ao critério de cada um.
Também publicado aqui.
Published on January 26, 2020 03:00
December 30, 2019
O Juiz e o seu Carrasco
Considera-se o género policial como leitura de entretenimento,
sem grande valor literário, embora haja autores de policiais que se conseguiram
destacar pela sua qualidade, como o inglês Sir Conan Doyle, o belga Georges
Simenon e talvez a igualmente britânica Agatha Christie. O suíço Friedrich Dürrenmatt,
do qual já tinha lido a peça Os Físicos , encontra-se, sem sombra de
dúvida neste patamar. O Juiz e o seu Carrasco, já passado a filme, foi
inclusive leitura obrigatória no ensino secundário alemão (talvez ainda o seja,
pelo menos, nalguns casos).
Não hesito em afirmar que é uma obra sublime, de grande
sentido estético e, ao mesmo tempo, de leitura agradável. A partir do
assassinato de um polícia de Berna numa pequena aldeia, desenvolve-se uma
complicada trama, exigindo a intervenção do comissário Bärlach. O famoso criminalista
vê-se confrontado com um antigo conhecido, outrora seu amigo, mas que, a partir
de certa altura, decidiu usar a sua genialidade para praticar o mal (no fundo,
um tema algo parecido com o abordado em Os Físicos ). Bärlach há muito
que deseja encarcerar esse seu “velho amigo”, exímio em cometer crimes, cuja
autoria é impossível de provar. O comissário vê finalmente uma possibilidade de
finalmente conseguir apanhar o outro em falso, ao mesmo tempo que descobre
sofrer de doença incurável, pelo que o duelo se torna numa luta contra o tempo.
O próprio Dürrenmatt classificou este seu livro como a «luta derradeira entre dois
homens». Não obstante, o final toma um rumo inesperado…
Recomendo vivamente esta leitura que, no mercado
português, parece estar apenas disponível na FNAC
(em edição de bolso).
Published on December 30, 2019 02:11
December 23, 2019
O Natal e os enjeitados
São cerca das 19h 30m, de uma sexta-feira, em Stade, a pequena cidade alemã onde vivo. A escuridão é já completa, estamos em dezembro. A temperatura ronda os 5ºC e o vento forte faz salpicar a chuva miudinha no rosto dos transeuntes. O parque de estacionamento do pavilhão de eventos está quase vazio e um casal que foi convidado para jantar nas imediações aproveita para ali estacionar o carro.
Mal abrem as portas, ouvem o choro do bebé. A senhora admira-se por soar tão perto. Terão sido os pais de alguma criança obrigados a trocar as fraldas do filho no carro? Ou talvez uma mãe amamente o seu bebé. Tenta perscrutar algum sinal de vida dentro das poucas viaturas estacionadas, algum sinal de luz. Em vão. Apesar da chuva e do vento, resolve dar alguns passos na direção de onde lhe parece vir o choro. Numa das faixas de relva que permeiam o parque de estacionamento, vê um tecido cor-de-laranja enrodilhado debaixo de um arbusto. O local está mal iluminado, ela aproxima-se e mal acredita nos seus olhos: enrolado numa toalha de banho está um bebé pequenino, recém-nascido. O casal chama a emergência médica e a polícia. A menina é transportada para a maternidade do hospital.
Esta cena passou-se há três semanas. A menina, a quem o pessoal da maternidade deu o nome provisório de Luísa, encontra-se bem de saúde e foi entregue a uma família de acolhimento. A polícia continua à procura da mãe, ou dos pais, da bebé. Atente-se ao pormenor: as notícias não referem apenas a mãe. Não resisti a contar este episódio, depois de algo semelhante ser ter verificado há poucas semanas, em Lisboa. As notícias portuguesas, mesmo antes de se saber que a mãe era prostituta, referiam sempre andar-se à procura da “mãe”.

Museu Casa da Roda, Torre de Moncorvo © 2016 Horst Neumann
O abandono de recém-nascidos é prática antiquíssima. Durante muitos séculos, existiu a roda dos expostos, ou dos enjeitados, numa tentativa de proporcionar algum futuro às crianças, ou mesmo evitar o infanticídio. As razões que levam as mães a cometerem acto tão chocante, ontem como hoje, são das mais variadas. Vão desde a prostituta ignorante (e talvez viciada em drogas e sem meios), a casos de incesto (pais que violam filhas, por exemplo) e mulheres pressionadas a livrarem-se do bebé, tanto pelo pai da criança, como pelos seus próprios familiares. Em todos os casos, porém, penso haver um factor comum: a mãe sente-se sozinha, ela própria abandonada, sem apoios de parte nenhuma, o que a torna incapaz de assumir a responsabilidade, ou a leva a recear a rejeição familiar.
E, no entanto, nenhuma mulher engravida sozinha. Acho, por isso, profundamente injusto ser apenas a mãe a responsabilizada e a pagar pelo crime. A carga de culpa do pai é equivalente, ou maior ainda: ele não abandona apenas o filho, abandona também a mãe do seu filho. Mesmo que o pai ignore sê-lo, não deixa de partilhar a culpa, quanto mais não seja, por ter usado uma mulher como quem usa o sofá num momento de lazer.
A Suécia, esse país tão liberal, proibiu, há uns anos, a prostituição. Em caso de transgressão, não é a prostituta a autuada, mas o cliente! Afinal, ele não quer saber se a mulher que está a usar exerce a “profissão” por vontade própria ou por ser obrigada. Nem sequer se preocupa com o facto de ela poder engravidar, o que se tornou raro, nos nossos dias, mas não deixa de acontecer. A Alemanha, onde a prostituição é permitida e considerada, pelo menos, a nível legislativo, como outra profissão qualquer, tornou-se um paraíso para bordéis e tráfico humano, onde muitas jovens, normalmente oriundas do leste europeu, são mantidas à força (violência, chantagens) e, muitas vezes, se viciam em drogas para aguentarem a sua miséria. Enfim, um assunto que dá pano para mangas e que ficará para um próximo postal, até porque não sei se este caso está relacionado.
O que me levou a relatá-lo foi o facto de os dois casos (em Portugal e na Alemanha) terem ocorrido em época natalícia. Recordemos que no Natal se festeja o nascimento de uma criança. Cada vez mais me convenço de que é o nascimento em si o verdadeiro milagre do Natal. Todo o nascimento é um milagre, independentemente da maneira de como o bebé foi concebido. Apesar de ser católica, pergunto-me: porque é tão importante insistir na virgindade da mãe do menino? Porque é que uma mãe virgem há de valer mais do que as outras mães? Atentemos a que estamos a falar de uma mãe que apenas não está sozinha, porque o noivo decidiu ampará-la, mesmo sabendo não ser ele o pai do bebé. Pergunto-me se não será essa a verdadeira mensagem do Natal. Não será a função de São José, essa figura tão apagada, a mais importante de todas?
Ainda uma palavra de apreço para a senhora de Stade, que não descansou, enquanto não encontrou o bebé que chorava. Quantos de nós iriam à procura da origem do choro, numa noite de frio e chuva? Quantos de nós não encolhiam os ombros, virando as costas, pensando: “seja o que for, não é nada comigo”?
A pequena Luísa teve muita sorte. Espero que o seu anjinho-da-guarda a continue a proteger e a faça muito feliz!

Nota: Esta imagem foi copiada do jornal bissemanário local, datado do passado dia 14 de Dezembro. Vê-se o subtítulo: „Ainda não há pistas sobre a mãe” (Noch keine Hinweise auf die Mutter). No artigo, porém, encontra-se a frase: „Está por esclarecer quem é a mãe, ou quem são os pais” (Wer die Mutter bzw., die Eltern sind, ist ungeklärt).
Texto originalmente publicado aqui.
Mal abrem as portas, ouvem o choro do bebé. A senhora admira-se por soar tão perto. Terão sido os pais de alguma criança obrigados a trocar as fraldas do filho no carro? Ou talvez uma mãe amamente o seu bebé. Tenta perscrutar algum sinal de vida dentro das poucas viaturas estacionadas, algum sinal de luz. Em vão. Apesar da chuva e do vento, resolve dar alguns passos na direção de onde lhe parece vir o choro. Numa das faixas de relva que permeiam o parque de estacionamento, vê um tecido cor-de-laranja enrodilhado debaixo de um arbusto. O local está mal iluminado, ela aproxima-se e mal acredita nos seus olhos: enrolado numa toalha de banho está um bebé pequenino, recém-nascido. O casal chama a emergência médica e a polícia. A menina é transportada para a maternidade do hospital.
Esta cena passou-se há três semanas. A menina, a quem o pessoal da maternidade deu o nome provisório de Luísa, encontra-se bem de saúde e foi entregue a uma família de acolhimento. A polícia continua à procura da mãe, ou dos pais, da bebé. Atente-se ao pormenor: as notícias não referem apenas a mãe. Não resisti a contar este episódio, depois de algo semelhante ser ter verificado há poucas semanas, em Lisboa. As notícias portuguesas, mesmo antes de se saber que a mãe era prostituta, referiam sempre andar-se à procura da “mãe”.

Museu Casa da Roda, Torre de Moncorvo © 2016 Horst Neumann
O abandono de recém-nascidos é prática antiquíssima. Durante muitos séculos, existiu a roda dos expostos, ou dos enjeitados, numa tentativa de proporcionar algum futuro às crianças, ou mesmo evitar o infanticídio. As razões que levam as mães a cometerem acto tão chocante, ontem como hoje, são das mais variadas. Vão desde a prostituta ignorante (e talvez viciada em drogas e sem meios), a casos de incesto (pais que violam filhas, por exemplo) e mulheres pressionadas a livrarem-se do bebé, tanto pelo pai da criança, como pelos seus próprios familiares. Em todos os casos, porém, penso haver um factor comum: a mãe sente-se sozinha, ela própria abandonada, sem apoios de parte nenhuma, o que a torna incapaz de assumir a responsabilidade, ou a leva a recear a rejeição familiar.
E, no entanto, nenhuma mulher engravida sozinha. Acho, por isso, profundamente injusto ser apenas a mãe a responsabilizada e a pagar pelo crime. A carga de culpa do pai é equivalente, ou maior ainda: ele não abandona apenas o filho, abandona também a mãe do seu filho. Mesmo que o pai ignore sê-lo, não deixa de partilhar a culpa, quanto mais não seja, por ter usado uma mulher como quem usa o sofá num momento de lazer.
A Suécia, esse país tão liberal, proibiu, há uns anos, a prostituição. Em caso de transgressão, não é a prostituta a autuada, mas o cliente! Afinal, ele não quer saber se a mulher que está a usar exerce a “profissão” por vontade própria ou por ser obrigada. Nem sequer se preocupa com o facto de ela poder engravidar, o que se tornou raro, nos nossos dias, mas não deixa de acontecer. A Alemanha, onde a prostituição é permitida e considerada, pelo menos, a nível legislativo, como outra profissão qualquer, tornou-se um paraíso para bordéis e tráfico humano, onde muitas jovens, normalmente oriundas do leste europeu, são mantidas à força (violência, chantagens) e, muitas vezes, se viciam em drogas para aguentarem a sua miséria. Enfim, um assunto que dá pano para mangas e que ficará para um próximo postal, até porque não sei se este caso está relacionado.
O que me levou a relatá-lo foi o facto de os dois casos (em Portugal e na Alemanha) terem ocorrido em época natalícia. Recordemos que no Natal se festeja o nascimento de uma criança. Cada vez mais me convenço de que é o nascimento em si o verdadeiro milagre do Natal. Todo o nascimento é um milagre, independentemente da maneira de como o bebé foi concebido. Apesar de ser católica, pergunto-me: porque é tão importante insistir na virgindade da mãe do menino? Porque é que uma mãe virgem há de valer mais do que as outras mães? Atentemos a que estamos a falar de uma mãe que apenas não está sozinha, porque o noivo decidiu ampará-la, mesmo sabendo não ser ele o pai do bebé. Pergunto-me se não será essa a verdadeira mensagem do Natal. Não será a função de São José, essa figura tão apagada, a mais importante de todas?
Ainda uma palavra de apreço para a senhora de Stade, que não descansou, enquanto não encontrou o bebé que chorava. Quantos de nós iriam à procura da origem do choro, numa noite de frio e chuva? Quantos de nós não encolhiam os ombros, virando as costas, pensando: “seja o que for, não é nada comigo”?
A pequena Luísa teve muita sorte. Espero que o seu anjinho-da-guarda a continue a proteger e a faça muito feliz!

Nota: Esta imagem foi copiada do jornal bissemanário local, datado do passado dia 14 de Dezembro. Vê-se o subtítulo: „Ainda não há pistas sobre a mãe” (Noch keine Hinweise auf die Mutter). No artigo, porém, encontra-se a frase: „Está por esclarecer quem é a mãe, ou quem são os pais” (Wer die Mutter bzw., die Eltern sind, ist ungeklärt).
Texto originalmente publicado aqui.
Published on December 23, 2019 11:31
December 14, 2019
Os Físicos
Os Físicos é uma hilariante peça teatral do
suíço Friedrich Dürrenmatt (1921/1990), que escrevia em língua alemã. Talvez ele
não seja atualmente muito conhecido no nosso país, mas vários romances e peças
de Dürrenmatt foram adaptadas ao cinema. Um dos filmes mais conhecidos intitula-se
A Visita (The
Visit), realizado em 1964 e protagonizado por Ingrid Bergman e Anthony
Quinn.
Caracterizei a peça Os Físicos como hilariante,
pois ela está cheia de situações absurdas e cómicas, onde aliás impera o humor
negro, o que torna a leitura muito agradável. No entanto, Os Físicos
tematiza uma problemática nada risível: físicos geniais e suas descobertas, que
tanto podem ser úteis à humanidade, como contribuir para a sua destruição, tudo
dependendo das mãos em que cai esse saber. O ponto de partida é o facto de que,
sem as descobertas de Einstein, a bomba atómica nunca seria possível. Dürrenmatt
tinha 24 anos, quando Hiroxima e Nagasaki foram devastadas pela bomba atómica, ficando
impressionado com o poder que o ser humano possui e os efeitos catastróficos
que daí podem advir. Os Físicos desenrola-se uma clínica psiquiátrica, local
de esconderijo de um cientista genial, na esperança de que o mundo nunca venha a
ter contacto com as suas descobertas.
Não encontrei versão portuguesa à venda desta peça,
embora ela seja, de vez em quando, levada à cena, como aconteceu, por exemplo, em
2017, na Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão, e na
Escola Alemã de Lisboa, a 8 de junho de 2018. Quem esteja interessado em
lê-la em inglês pode adquiri-la na wook.pt .
Gostei tanto do estilo e da ironia de Friedrich Dürrenmatt,
que lerei, de seguida, uma das suas obras mais famosas: O Juiz e o seu
Carrasco.
Published on December 14, 2019 07:59


