Cristina Torrão's Blog, page 25

December 6, 2019

A Angústia do Guarda-Redes Antes do Penalty












Peter Handke é o vencedor do Prémio Nobel da Literatura
de 2019. Constatei que tinha este seu livro em casa (na versão original, em
alemão), um dos seus contos mais conhecidos, talvez pelo título apelativo.
Escusado será dizer que pouco tem a ver com futebol. A personagem principal,
Josef Bloch, é um eletricista que foi, em tempos, um guarda-redes mais ou menos
conhecido. O título do livro é usado como metáfora para alguém que se vê numa situação
em que não se pode permitir erros.




Numa manhã, Josef Bloch chega ao trabalho apenas para
ficar a saber que foi despedido. Desnorteado, passa a errar pelas ruas da
cidade, agindo por instinto. O leitor é confrontado com situações banais, mas
sem nexo, Josef Bloch limita-se a deixar que os acontecimentos passem por ele.
Há, no entanto, uma situação em que ele reage… da pior maneira: perdendo o controlo sobre si mesmo e cometendo um crime. Vê-se obrigado a fugir, deixa a cidade para se refugiar numa pequena estância
de férias, na fronteira entre a Áustria e a Suíça. A partir daqui, Josef Bloch
não se pode permitir erros. Continua, porém, a vaguear, sem um plano, ou uma
direção.




A escrita de Peter Handke é fria, limita-se a constatar
factos. Os sentimentos e as emoções das suas personagens ficam por conta do
leitor, mas o estilo é tão poupado (por vezes, mesmo enigmático), que se torna
difícil adivinhar o que vai na cabeça de Josef Bloch. Este tipo de escrita
fez-me lembrar a de Gonçalo M. Tavares, porquanto o escritor português consegue
ser mais emotivo. Peter Handke deixa tudo bem lá no fundo. O que vem à
superfície é apenas o que todos conseguem ver, o resto tem de ser imaginado (ou
seria melhor dizer adivinhado?) pelo leitor.




Confesso que foi uma escrita que não me empolgou. Realço,
no entanto, que Handke tem tantas obras publicadas, que seria desonesto ajuizar
sobre o escritor baseada apenas neste livro.





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Published on December 06, 2019 11:22

November 16, 2019

Upskirting

Upskirting.jpg

Imagem daqui




Os telemóveis transformaram o ato de fotografar, outrora reservado para ocasiões especiais, num gesto banalíssimo. E também iniciaram modas, como a das “selfies”, que enervam muita gente. Comparado, porém, com outras práticas fotográficas, a do auto-retrato é inofensiva. Venho hoje falar do upskirting: fotografar por baixo da saia, ou do vestido, de uma mulher, a maior parte das vezes, sem que esta o note. A maioria das vítimas são jovens, algumas ainda menores.




Duas jovens alemãs, vítimas de upskirting (uma delas tinha apenas treze anos, quando assim foi fotografada pela primeira vez), iniciaram, há meses, uma campanha, acompanhada de petição , com o objectivo de criminalizar esta prática. Não sendo o upskirting considerado assédio sexual, já que não há qualquer contacto físico, não é crime e as suas vítimas nem sequer podem apresentar queixa à polícia. É assim visto com condescendência por muita gente, como outras práticas que, alegadamente, apenas servem para que os rapazes se divirtam. Um argumento muito usado pelos defensores do upskirting é: «não queres ser fotografada por baixo da saia? Veste calças!» Machismo? Que ideia! As duas ativistas é que são umas feministas radicais, que querem impor mais censuras aos coitados dos homens, que, qualquer dia, nem sequer podem olhar para uma mulher, blá, blá, blá…




Na verdade, além de representar uma violação não consentida da intimidade, o upskirting está longe de ser um mero divertimento. As fotografias são partilhadas em chats e, muitas vezes, comercializadas e/ou publicadas em sites pornográficos. Tudo isto sem o consentimento das visadas que, muitas vezes, ignoram a existência das imagens. Noutros casos, porém, as vítimas são identificáveis, o que em nada diminui a sua gravidade.




As duas jovens activistas estão de parabéns. Há dias, foi aprovado, na Alemanha, um projeto de lei para criminalizar a prática do upskirting (incluindo fotografias tiradas a decotes, sem o consentimento da visada) com penas que vão da multa a dois anos de prisão, à semelhança do que já tinham feito outros países como a Finlândia, a Austrália e a Grã-Bretanha.




Além do upskirting, o projeto de lei pretende criminalizar, com penas semelhantes, o péssimo hábito de fotografar vítimas, mortais ou não, de acidentes de viação.





Texto originalmente publicado aqui.


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Published on November 16, 2019 08:35

October 31, 2019

Barco Negro












Depois de ter postado aqui sobre os “Portugal-Krimis”, ou seja, livros policiais situados em território
português, mas escritos por alemães, houve um escritor, com pseudónimo Mario Lima, que se manifestou nos
comentários. Este autor alemão vive há vários anos no Minho com a mulher e três
gatos e dedica-se à produção (em pequena escala) de vinho verde tinto.




Fiquei curiosa quanto aos seus livros, não só por ter
trocado impressões com ele, como por ele os situar na cidade do Porto, uma
cidade que me diz muito. Nasci em Castelo de Paiva, vivi muitos anos em Vila Nova
de Gaia e licenciei-me na Universidade do Porto. A personagem principal dos
dois livros de Mario Lima é o inspector Fonseca, da PJ do Porto.




Li o seu primeiro policial, Barco Negro , inspirado no lindíssimo
fado homónimo de Amália Rodrigues (no link indicado, pode ouvir-se a
versão original e a cantada por Mariza). Trata-se de um enredo bem construído e
uma leitura que entretém, mantendo o leitor em suspense. Não há dúvida
de que Mario Lima conhece bem o Porto e Matosinhos e consegue transmitir a
atmosfera dessas duas cidades, pelo menos, no inverno. Este foi um aspeto que
apreciei particularmente. Ainda não li mais nenhum destes “Portugal-Krimis”,
mas sempre imaginei que os autores falassem muito do sol e das praias.




Pois bem, a ação de Barco Negro decorre de
início de Novembro até Janeiro do ano seguinte, ou seja, em plena estação fria
e cheia da chuva. A história inicia-se debaixo de uma chuva torrencial, que
atrapalha o trabalho dos investigadores da PJ, quando surgem dois cadáveres em
Perafita, Matosinhos. Embora haja dias de sol pelo meio, o frio não deixa de
nos perseguir durante todo o livro, havendo inclusive uma cena passada perto de
uma casa de montanha, na zona de Montalegre, com temperaturas abaixo de zero. Pois,
isto também é Portugal! Achei igualmente interessante alguma referência ao
tempo da ditadura e à PIDE.




Entre os investigadores da PJ, encontra-se uma jovem
estagiária, psicóloga, que, na verdade, chega a roubar protagonismo ao
inspetor Fonseca, perguntando-se o leitor quem será, afinal, a personagem
principal. Enfim, o inspetor Fonseca é o único que vem mencionado na capa dos
dois livros. Não sei como é no segundo, Tod in Porto (Morte no
Porto
), mas, na minha opinião, se Mario Lima pretende criar um inspetor
carismático para a sua série de policiais, vai ter de se dedicar mais ao
Fonseca e refrear a sua “paixão” pela bonita e sexy Ana Cristina.




Infelizmente, o livro só existe em língua alemã e eu
recomendaria a sua tradução. Algo que aprecio em obras destas é a nossa
imagem, vista por alguém de fora. Por isso, não resisto a traduzir uma pequena passagem
da página 265. O cenário é um hipermercado em vésperas de consoada natalícia:




«Na secção do peixe, encontravam-se quantidades extra
de bacalhaus empilhados sobre mesas. Escolher o bacalhau certo para a consoada
não era resolução para tomar de ânimo leve. Todos se aglomeravam à volta das
mesas, cada qual o melhor especialista na matéria. Um bacalhau assim, salgado e
seco, não devia ter uma cor muito esbranquiçada e também a consistência era
importante: fosse ele mole demais, não servia. As pessoas pegavam nos bacalhaus
e vergavam-nos, de olhar crítico. Era aquele o certo? A maior parte dos peixes
acabava por ser novamente atirada para a pilha. Não haveria melhor? Casais mais
velhos entreolhavam-se preocupados, abanando a cabeça. “Não valem nada”. Uma
velhota baixinha desconfiava que os melhores estavam escondidos bem lá no
fundo. Resoluta, arrancava um bacalhau a seguir ao outro do fundo da pilha,
atirando-os para cima do monte, examinando cada um deles de testa franzida.
Nada, mais uma vez. Venha o próximo!» 



Texto originalmente publicado aqui.
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Published on October 31, 2019 11:45

October 10, 2019

“Deus nunca se familiarizou comigo”












Traduzi desta maneira, do alemão, o título deste livro
(à letra não faz muito sentido). A autora, de apenas 22 anos, inspirou-se nas suas
leituras da Bíblia, exprimindo as suas dúvidas, aquilo que lhe agrada e aquilo
que não lhe agrada. Achei pertinente, principalmente, por ela tentar dar vida
às “personagens”, ou seja, tirá-las das Sagradas Escrituras e pô-las no mundo
real. É certo que algumas dessas tentativas não são bem conseguidas. Outras,
porém, tornam-se em bons motivos de reflexão, como o capítulo intitulado
“Gostava de ter Eva como Padroeira”, do qual traduzo alguns excertos (pp. 19 a
23):




Gostava de ter Eva como padroeira, porque mais ninguém
como ela sabe o que significa perda. Gostava que ela me dissesse quão vazia se
sentiu, depois de ter sido expulsa do Paraíso.


Gostava de conversar com Eva sobre vergonha e ouvir da
sua boca a palavra “distância”, pois ninguém como ela sabe sentir a vergonha e
a distância. Gostava de ouvir dela que não ter vergonha significa apenas não
ter segredos e que houve, uma vez, um lugar, onde nem sequer se concebia a
ideia de que possa haver necessidade de nos escondermos.





Eu diria a Eva que tento sempre roubar a árvore
completa, quando alguém me diz que não devo comer do seu fruto. E que vou atrás
de qualquer serpente que me prometa alguma coisa.





Quero Eva para padroeira, porque ela sabe como é ser
criada por Deus e, mesmo assim, não acreditar totalmente n’Ele.





Gostava de perguntar a Eva se lhe dói pensar na maçã -
não por ela ter feito o que fez, mas por ter sido tão previsível. E se ela
ainda interpreta a dor como sendo metade perda e metade humilhação.





Se eu fosse Eva, não falaria de certas coisas. Não falaria
sobre Adão e de como ele foi autorizado a escolher o nome dela. Não falaria
sobre Deus e de como Ele a vestiu, ainda antes de a expulsar do Paraíso.





Deus disse que Eva passara a poder distinguir entre o Bem
e o Mal, mas eu acho que Ele sobrestimou os humanos.


Não acho que nós humanos gostemos de nos destruir.
Apenas tentamos ver para além de nós. Damos pinceladas cor-de-rosa sobre os
avisos dos maços de tabaco, ignoramos recomendações, toleramos amizades tóxicas
e drogas leves. Falsificamos a assinatura dos contratos que celebramos connosco
próprios.





Espero que o Céu não seja o Jardim do Éden e que lá
não exista cobiça, nem maçãs, nem serpentes, nem saídas de emergência.


Porque, se eu fosse Eva, tornaria, em qualquer altura,
a morder a maçã.






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Published on October 10, 2019 03:13

October 5, 2019

Efemérides históricas à volta da formação de Portugal (5)

Há quem assinale a data de 5 de Outubro de 1143 como a da independência de Portugal. É um facto que, em Zamora, Afonso VII, o imperador da Hispânia, reconheceu o título de rei a seu primo e Portugal como reino. Contudo, não prescindiu da vassalagem de Afonso Henriques.




Zamora (2).JPG

Zamora, na nargem direita do rio Douro (Duero)







Atentemos ao que diz José Mattoso, na sua biografia de Afonso Henriques (2007; extractos das páginas 207 a 214):




No Verão de 1143, chegou ao reino de Leão o cardeal legado da Sé Apostólica Guido de Vico (…) Guido parece ter-se dirigido primeiro a Portugal. Há informações acerca da sua estadia no Porto e em Coimbra.
(…)


De Coimbra, o legado dirigiu-se a Valhadolid, onde, em 19 e 20 de Setembro, celebrou um concílio.


(…)



Depois de ter encerrado o concílio, o legado papal dirigiu-se a Zamora, onde estava a 4 e 5 de Outubro, e onde se reuniu com os reis de Portugal e de Leão. A este encontro chamam os historiadores modernos a «conferência de Zamora». Tem sido considerada como a reunião que selou o acordo entre Afonso Henriques e Afonso VII, que marcou o reconhecimento pelo segundo da dignidade régia do primeiro, e que permitiu a celebração de um tratado, que talvez incluísse uma repartição dos direitos de conquista sobre territórios muçulmanos, mas do qual, infelizmente, não existe nenhum texto.
(…)



A 13 de Dezembro de 1143, Afonso Henriques dirigiu uma carta ao papa declarando que tinha feito homenagem à Sé Apostólica, nas mãos do cardeal Guido, como cavaleiro de São Pedro (…) Também se torna quase certo que esta decisão obtivera o acordo do cardeal, uma vez que a carta declara que o rei tinha prestado homenagem nas suas mãos. (…) Estes factos significam, por sua vez, a realização de conversações anteriores, talvez por ocasião da passagem de Guido por Coimbra [ou seja, antes da conferência de Zamora].




Tratado de Zamora.png

Assinatura do Tratado de Zamora. Painel de azulejos do início do século XX, em Portimão - Foto de Aires de Almeida no Flickr







Consideremos este ponto importantíssimo: antes de se dirigir a Zamora, Afonso Henriques prestou homenagem ao cardeal Guido de Vico. Porquê? Só podia ser por saber que o primo não prescindiria da sua condição de vassalo! Como imperador, Afonso VII podia ter reis (e tinha) como vassalos, por isso, o reconhecimento do título real a Afonso Henriques e de reino a Portugal não significa uma aceitação da independência por parte dele.




Neste sentido escreve igualmente o Prof. Miguel Gomes Martins em 1147 - A Conquista de Lisboa (2017):




[Na conferência de Zamora deve ter sido também debatido] o compromisso por parte de Afonso Henriques de não voltar a intervir militarmente na Galiza (…) Este ponto pode mesmo ter sido decisivo para o que se passou de seguida, ou seja, para que Afonso VII, em retribuição e talvez por pressão do legado [papal], reconhecesse o título de rei a Afonso Henriques, algo a que o imperador não deve ter colocado grandes entraves, já que em nada beliscava a sua supremacia face ao primo, que continuaria (…) na sua dependência vassálica. Pelo menos, assim o pensava, pois desconhecia o que secretamente tinha sido negociado em Coimbra, semanas antes, entre Afonso Henriques e Guido de Vico, ou seja, a preparação da vassalagem do monarca português à Santa Sé, acto que necessitava ainda de ser formalizado pelo rei, mas acima de tudo, pelo papado (p. 98).




1147 A Conquista de Lisboa.jpg




Temos aqui uma situação muito curiosa e que costuma ser ignorada: o cardeal Guido de Vico aceitou a homenagem de Afonso Henriques, prometendo libertá-lo do jugo de Afonso VII e, passadas semanas, serviu de mediador num encontro em que o rei português não contestou a sua condição de vassalo do imperador hispânico! Como se explica que um legado papal tivesse tal atitude?




A explicação estará em negociações secretas levadas a cabo entre D. João Peculiar, arcebispo de Braga, e o cardeal Guido de Vico, que terão incluído o casamento de D. Afonso e D. Mafalda de Sabóia. José Mattoso (2007) considera o arcebispo de Braga uma figura chave em todo este processo. Chega a afirmar que D. João Peculiar terá contribuído tanto como o próprio Afonso Henriques para a independência de Portugal.




João Peculiar.JPG

Estátua do arcebispo D. João Peculiar, em Braga.




A 13 de Dezembro de 1143, cerca de dois meses depois do encontro de Zamora, Afonso Henriques encontrou-se em Braga com o arcebispo D. João Peculiar e com os bispos do Porto e de Coimbra, a fim de se escrever a missiva (Claves regni celorum) a enviar ao papa, conforme combinara com o cardeal, solicitando vassalagem à Santa Sé. Ora, se o primo já tivesse reconhecido a independência de Portugal, tal passo seria desnecessário.




Este pedido de vassalagem chegou, porém, a Roma numa altura conturbada, em que se realizaram dois conclaves no espaço de seis meses. Inocêncio II, o papa que enviara Guido de Vico à Hispânia, morreu antes do regresso do cardeal. O seu sucessor, Celestino II, faleceu, antes de responder ao rei português e foi finalmente Lúcio II quem enviou a bula Devotionem tuam, datada de 1 de Maio de 1144. Quando finalmente o nosso primeiro rei a segurou nas mãos, porém, deve ter ficado desiludido.

Em primeiro lugar, o papa não o intitulava rei, mas sim «dux portugallensis». E não dizia claramente que Afonso Henriques estaria livre da suserania do primo, optando por uma linguagem difusa: promete-lhe, tanto a ele, como aos seus sucessores, a protecção de São Pedro para as suas almas e para os seus corpos.




Afonso Henriques viu-se, assim, numa situação bastante ambígua: Roma aceitava-o vassalo (e o censo em ouro), ao garantir-lhe a protecção de São Pedro. Mas intitulava-o apenas de «duque»!

O nosso primeiro rei teria de esperar ainda mais de trinta anos para ver reconhecido o seu título real, por parte da Santa Sé. Tinha já cerca de setenta anos, quando recebeu a Bula Manifestis Probatum de Alexandre III.




Manifestis_Probatum.jpg

Bula Manifestis Probatum, de 23 de Maio de 1179








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Published on October 05, 2019 09:36

September 15, 2019

"Memórias de uma aldeã"









Este livro não é uma grande obra literária. Mas é
maravilhoso, porque conta a vida real. E a vida supera, muitas vezes, a ficção.




Nascida em 1919, na Baviera, a autora, Anna
Wimschneider, conta a sua vida de trabalho, desde que, com nove anos, teve de
substituir a mãe que morreu de parto do nono filho. Anna não era a mais velha,
tinha três irmãos nascidos antes dela. Mas era a rapariga mais velha e teve de
ser ela a tomar conta da família. Trabalho sem fim, tanto em casa, como na
agricultura, ao mesmo tempo que frequentava a escola. Muitas vezes, o
“agradecimento” do pai e dos três irmãos mais velhos, por ela cozinhar, limpar,
lavar e remendar a roupa, vinha na forma de tabefes, por ela se esquecer de
algo, ou não o ter feito em condições. Só podia ir para a escola, depois de ter
tratado dos irmãos mais novos, feito o pequeno-almoço para toda a família e
arrumado a cozinha. Chegava sempre atrasada às aulas. O professor era
felizmente compreensivo. O padre não! Chegou também a bater-lhe, por chegar
atrasada à missa, ou apenas por trazer o missal errado (de notar que toda a
gente, na aldeia, sabia que a miúda substituía a mãe).




Quando conheceu o futuro marido, o pai não a queria
deixar casar, pois ela fazia-lhe falta. Mas uma vizinha lá o convenceu a deixar
a moça viver a sua vida. Que aliás não se tornou mais fácil, pelo menos, nos
primeiros anos. O marido era um lavrador tão pobre como ela. Além disso,
casaram em 1939, pouco antes de se iniciar a 2ª Guerra Mundial, e ele foi
alistado. Anna ficou sozinha com dois tios e uma tia do marido, já velhos, e a
sogra. Tratava sozinha de tudo: da casa, das terras e dos velhos. Além disso, a
sogra era-lhe muito hostil.




A vida só começou a melhorar, depois de a guerra
acabar e o marido recuperar dos ferimentos. Os velhos foram morrendo. Anna
tinha, assim, apenas a sua própria família e, embora continuasse a ter muito
trabalho, já se considerava privilegiada. Os últimos dez anos da sua vida, quando
já não tinha os filhos a seu cargo, não foram, porém, muito agradáveis. Anna
estava frequentemente doente, devido às agruras que experimentara na infância e
na juventude, e chegava a passar mais tempo no hospital, do que em casa.
Sofria, principalmente, de asma.




No início dos anos 1980, uma das filhas convenceu-a a
escrever a sua história. De notar que Anna Wimschneider nunca se serve de um
tom queixoso, ou revoltado. Limita-se aos factos, descritos com grande lucidez.
Uma editora dispôs-se a rever e a corrigir o manuscrito (Anna estava longe de ser uma escritora), publicando-o em 1984. Já
se venderam, na Alemanha, dois milhões de exemplares! E foi realizado um filme
em 1988 (a capa representa uma das cenas). A autora morreu em 1993.




Este livro é testemunho de uma vida que, pelo menos
nas nossas latitudes, já não existe, nem se consegue imaginar. Um livro que também
nos mostra como as pessoas descarregam as suas frustrações e os seus ódios nos
outros, tendo, por alvo preferido (porque mais fácil), as crianças - de notar que
a autora não o denuncia, a conclusão é minha. Um livro que tornou famosa uma
mulher simples e nos mostra que as editoras deviam estar atentas a relatos deste tipo. Um livro que li de um fôlego.





A autora Anna Wimschneider, imagem da Süddeutsche Zeitung








Manuscrito original de Anna Wimschneider, na posse da BayerischeStaatsbibliothek (Biblioteca do Estado da Baviera)







Nota: o título original, “Herbstmilch”, designa uma antiga receita bávara, com leite azedo,
e significa “leite outonal”, ou “leite de outono”. Como o seu sentido não é passível de ser identificado em Portugal, preferi traduzir o subtítulo: “Memórias de uma aldeã”.




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Published on September 15, 2019 03:21

September 4, 2019

Efemérides históricas à volta da formação de Portugal (4)

No Verão de 1184, D. Afonso Henriques deu a mão da filha, a infanta D. Teresa, a Filipe da Alsácia, conde da Flandres.



A história à volta desta filha de D. Afonso Henriques e do conde da Flandres é deveras curiosa. Por vezes, penso que, não se tivesse ela passado em Portugal, mas, por exemplo, na Inglaterra, o romance já teria sido transformado em filme, ou em série, ou nas duas coisas, tornando-se a infanta D. Teresa de Portugal e o conde Filipe da Flandres num dos mais famosos pares amorosos da época medieval.



Afonso Henriques parece ter tido uma relação muito especial com esta filha, que ostentava o nome da avó. Ela permaneceu ao lado do pai até aos trinta e três anos, incomum numa época em que as princesas costumavam casar muito cedo, algumas, ainda crianças. Sobre as razões, nada se pode dizer.





AfonsoI - Óleo.JPG

Afonso I - Óleo de Carlos Alberto Santos




 Corria o ano de 1177, quando uma frota de cruzados flamengos, a caminho da Terra Santa e comandada pelo próprio conde Filipe da Flandres, ancorou na cidade do Porto. Afonso Henriques conhecera o pai de Filipe, Teodorico da Alsácia, que, vinte anos antes, passara, pelas mesmas razões, pela costa portuguesa e participara num ataque a Alcácer do Sal. Em 1177, o nosso primeiro rei, com cerca de setenta anos, estava bastante debilitado, devido ao desastre de Badajoz, em que teria ficado gravemente ferido. Já quase não saía de Coimbra, era o seu filho, o futuro D. Sancho I, que se deslocava pelo reino em seu nome. Mesmo assim, decidiu viajar ao Porto, a fim de se encontrar com o conde da Flandres. Afonso Henriques ficara eternamente grato pela ajuda dos cruzados na Conquista de Lisboa. A rota marítima, que passava pela costa portuguesa, continuou a ser muito frequentada e o nosso primeiro rei não perdia uma oportunidade de contactar com os cruzados que fizessem escala num dos portos portugueses.



A infanta D. Teresa, com cerca de vinte e seis anos, acompanhou o pai ao Porto (presume-se que praticamente não saísse do seu lado). E, estando o pai debilitado, foi ela que fez de cicerone a Filipe da Alsácia, mostrando-lhe a cidade e a região. Parece certo que, durante uma semana, a infanta portuguesa e o conde da Flandres conviveram muito. Ter-se-á estabelecido simpatia entre eles? Ou algo mais? Enfim, Filipe da Alsácia era casado. E, passada essa semana, despediu-se da infanta e de seu pai e seguiu viagem.







MulherIII.jpg

Jovem medieval copiada de um anúncio numa revista medieval alemã, há vários anos (o vestuário não é muito compatível com o do século XII, mas serve hoje para representar a infanta D. Teresa, da qual não encontrei imagens)





Cerca de seis anos mais tarde, o conde da Flandres enviuvou. E, sete anos depois da sua passagem pelo Porto, sem nunca mais ter visto Teresa, enviou uma frota a Portugal, pedindo a infanta em casamento e, caso o pai o aceitasse, solicitando que ela viajasse para a Flandres nessa mesma frota.



Historicamente, não existem fontes que expliquem as razões que levaram a este casamento e alguns historiadores admitem que o conde da Flandres tenha ficado bem impressionado com a figura e o porte da infanta. O próprio Afonso Henriques a chegou a apontar como sua sucessora, caso o infante D. Sancho falecesse sem filhos. Em 1172, ao doar o castelo de Monsanto à recém-criada Ordem de Santiago da Espada, Afonso Henriques declarou que os Mestres da Ordem deveriam aceitar nesse castelo a soberania de seu filho Sancho e de sua filha Teresa, si regnum meum tenuerit («se vier a ter o meu reino»). Era a prova de que considerava a infanta, e mais ninguém, como a sucessão alternativa ao filho Sancho.



A infanta D. Teresa partiu para a Flandres nesse ano de 1184 e o rei seu pai morreria no ano seguinte. Já se previa que o seu fim estava próximo. Aquela filha, de trinta e três anos, que nunca se havia separado dele, não o confortou, nos seus últimos momentos, nem assistiu à sua morte. A separação deve ter sido muito difícil para os dois.





Filipe da Alsácia.JPG

Filipe da Alsácia, Conde da Flandres - estátua na Basílica do Sangue Sagrado, em Bruges. Filipe da Alsácia, que fez várias viagens à Terra Santa, foi um dos cruzados mais famosos do século XII.





Teresa e Filipe não tiveram filhos. E a união acabou por durar apenas seis anos. Filipe embarcou numa nova cruzada, em Setembro de 1190, e morreu, sem ter regressado ao lar, de uma epidemia que atingiu os cruzados durante o cerco a Akkon. Teresa, ou Matilde, como ficou conhecida por aquelas paragens, por identificação com sua mãe, governou a Flandres sozinha durante mais de vinte anos (uma verdadeira representante da avó, de quem herdou o nome). Morreu em 1216, sem filhos, e eu acho uma pena que os governantes da Flandres, a partir do século XIII, não tivessem sido descendentes de D. Teresa e de D. Afonso Henriques. A sorte acabou por calhar a Balduíno V de Hennegau, um parente do falecido Filipe.


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Published on September 04, 2019 07:31

September 1, 2019

Sem receio da mudança


Imagem Wochenblatt







Estou muito orgulhosa do "meu" Horst. Atreveu-se a mudar de emprego aos 56 anos e até teve direito a reportagem no jornal diário local. Trabalha, desde 1 de agosto, na Câmara de Stade, a sua cidade-natal e onde vivemos há 20 anos, como planeador de tráfego, fazendo parte de uma equipa que pretende criar um novo conceito para a cidade, dando mais espaço aos peões e aos ciclistas (não, a Greta Thunberg não vai resolver os problemas ambientais do planeta, mas o movimento por ela iniciado está a ter reflexos e é isso que importa; quem, de nós, conseguiria tal proeza?).





Esta decisão do Horst exigiu coragem, pois, apesar de continuar funcionário público, está à experiência por seis meses. Se algo correr mal, pode ser despedido ao fim desse tempo. Para isso, rescindiu um contrato de trabalho vitalício, que tinha com a Câmara de Hamburgo, onde trabalhava há 26 anos. Como sabem, a Alemanha é uma federação de estados. Hamburgo é uma cidade-estado; Stade, apesar de estar a apenas 50 km, pertence ao estado da Baixa Saxónia. Um funcionário público não pode mudar de estado, mantendo o mesmo contrato, pois a entidade empregadora é diferente. Mas há-de tudo correr bem, estamos confiantes.




O emprego em Stade, além de lhe proporcionar fazer um trabalho para o qual está muito motivado, fica pertinho de casa. É só agarrar na bicicleta e, em dez minutos, chega ao emprego. Um verdadeiro sonho para quem, durante 20 anos, viajou de comboio todos os dias para Hamburgo, uma hora para cada lado.




O Horst merece.



Obs: a bicicleta dele não é elétrica.





Nota: texto originalmente publicado aqui .




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Published on September 01, 2019 07:24

August 29, 2019

Desafio "Museu Salazar"

Vivendo no estrangeiro, estou um pouco de fora do teor desta polémica, embora já tenha lido algumas alusões pela net. Como sou uma apaixonada pela História (porque acho que só nos conhecemos, se conhecermos a nossa História) e como Salazar e o Estado Novo fazem parte da História de Portugal, decidi dar a minha opinião, principalmente, depois de ler o Editorial do “Público”, por Manuel Carvalho.




Tal como Manuel Carvalho, acho que um "Museu Salazar" não pode ser nunca uma homenagem branqueadora e normalizadora do ditador. Por outro lado, nas democracias não pode haver temas tabus, personagens apagados das fotografias ou lugares de esquecimento , porque isto também serve para branquear a História, apagando, ou fazendo por esquecer, aquilo que nos incomoda. Aliás, Portugal tem muita necessidade de trabalhar certos momentos da sua História de forma rigorosa e o mais objetiva possível.




Um "Museu Salazar" nunca deve ter como propósito homenagear um “grande homem” (como parece afirmar o autarca socialista de Santa Comba Dão), mas deve possuir o objetivo de educar e informar. Isso, sim, seria um centro interpretativo do Estado Novo . Aliás, o nome da instituição devia ser este, por exemplo, ou Museu do Estado Novo, em vez de "Museu Salazar".




Um museu, ou centro, deste tipo, além de fazer um retrato da vida de Salazar, devia, obrigatoriamente, incluir:




- Uma secção sobre a Censura à Imprensa, praticada durante todo o Estado Novo, com imagens de notícias censuradas e informações sobre que tipo de artigos o eram (porque não eram apenas os políticos, também se censuravam notícias de suicídios, por exemplo, ou de crimes familiares).




- Uma secção dedicada ao Tarrafal (com imagens e artigos, talvez vídeos, se os houver) e à perseguição dos comunistas e sindicalistas.




- Uma secção dedicada à PIDE e às prisões de Caxias e Peniche, também com imagens, documentos, descrição das torturas, testemunhos, etc.




- Uma secção dedicada ao assassinato de Humberto Delgado (e a outros crimes que se tenham cometido em relação a opositores do regime).




- Uma secção dedicada à guerra colonial, com fotografias (que não faltam) e, proponho também, vídeos que mostrem, por exemplo, os embarques das tropas, ou as mensagens de Natal que os combatentes enviavam, todos os anos, pela televisão.




Estas são as minhas sugestões. Os historiadores especialistas desta época teriam mais e deviam ser contactados. Para que se fizesse, em Santa Comba Dão, um verdadeiro Museu ou Centro Interpretativo do Estado Novo, que nos oferecesse uma visão aberta da História . De visita obrigatória para estudantes!




Será que o autarca socialista de Santa Comba Dão tem arcaboiço para tal?





Nota: texto originalmente publicado aqui







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Published on August 29, 2019 07:14

August 11, 2019

O Pacto Sucessório













Venho hoje falar de um documento um pouco polémico, pois paira sobre ele o espectro da falsificação, embora actualmente se considere poder ser verdadeiro. De qualquer maneira, trata-se de um assunto em aberto e que, na minha opinião, tem a sua relevância. Estou a falar de um Pacto Sucessório secreto, que terá sido firmado entre os condes D. Raimundo e D. Henrique, à revelia do sogro Afonso VI, decidindo como dividiriam a herança depois da morte deste e por mim já aqui referido. Não se sabe a data exacta em que terá sido firmado, o historiador Charles Bishko situa-o entre 14 de Maio e 22 de Setembro de 1105, ou seja, durante o Verão. Nada melhor do que o mês de Agosto para o relembrar.




Nos arquivos portugueses, não existe cópia do documento, mas a versão que terá sido enviada ao abade de Cluny encontra-se na Bibliothèque Nationale de France. O Professor Abel Estefânio, da Universidade do Porto, publicou dois estudos sobre o assunto, na Medievalista online. No primeiro, O “pacto sucessório” revisitado: o texto e o contexto, em 2011, duvida da sua autenticidade. Porém, no segundo, Proposta de aclaração do “pacto sucessório” à luz de novos dados, três anos depois, admite que possa ser verdadeiro.






Manuscrito do “pacto sucessório”, Recueil
de Chartes de CLUNY, Bibliothèque Nationale de France, Département des
manuscrits, Colecção Baluze nº 86, f. 470.












Atentemos às palavras com que o Professor Abel Estefânio abre o segundo estudo:




«Quando o estudei pela primeira vez, pareceu-me que se tratava de um falso histórico e apresentei essa hipótese num artigo publicado em 2011 na revista Medievalista (…) Todavia, como não o pude afirmar categoricamente, não dei o assunto por encerrado. Havia, desde logo, que considerar a nota que o Professor José Mattoso elaborou sobre o meu estudo, com o contributo do Professor Arnaldo do Espírito Santo relativamente ao argumento linguístico. Perante a ausência de sinais evidentes do uso de um latim clássico que denuncie um falsário da época moderna, o Dire(c)tor da Medievalista considerou que se impunha um exame mais aprofundado».




Na minha opinião, é verosímil que os condes D. Raimundo e D. Henrique tenham firmado este pacto. Recordemos a situação! D. Afonso VI, sentindo a morte a aproximar-se e angustiado por não ter herdeiro varão, nomeia seu sucessor o filho que teve da moura Zaida, baptizando-o de infante Sancho. Podemos imaginar a revolta que sentiu a sua única filha legítima, D. Urraca, e também o genro D. Raimundo, sobretudo por, neste mesmo ano de 1105, a 1 de Março, ter nascido o filho do casal.




Raimundo terá recorrido ao abade Hugo de Cluny. A fim de conseguir guerreiros para a Reconquista, Afonso VI seguira, durante anos, uma política pró-francesa, ligada à Ordem Cluniacense, nomeando muitos prelados estrangeiros para as dioceses hispânicas, fazendo-lhes riquíssimas doações e dotando-os de privilégios, assim como aos nobres que os acompanhavam. Foi neste contexto que surgiram Raimundo e Henrique na Hispânia. O conde portucalense era inclusive sobrinho-neto do abade Hugo. Os cluniacenses introduziram, na Península, o culto romano, ditado pela reforma gregoriana, em detrimento do velho rito hispânico, ou moçárabe.




Afonso VI de Galiza, Leão e Castela Catedral Sant

Miniatura representando Afonso VI, rei de Leão, Castela e Galiza (1047-1109). Tumbo A da catedral de Santiago de Compostela.




A fim de poder nomear Sancho seu sucessor, porém, o imperador Afonso VI executou um verdadeiro volte-face, pois o velho clero hispânico prontificou-se a baptizar a moura Zaida e a legitimar o filho desta. Alarmado por Raimundo, o abade Hugo de Cluny enviou à Hispânia um seu representante, Dalmácio Geret, na presença do qual Raimundo e Henrique terão firmado o pacto sucessório.




O documento não costuma ser mencionado na nossa historiografia. A hipótese de falsificação não é o único motivo, já que, mesmo sendo verdadeiro, há quem o considere irrelevante. Tanto Raimundo, como o infante Sancho, viriam a falecer antes de Afonso VI, o primeiro dois anos depois de ter assinado o pacto e o segundo no ano seguinte, em 1108, na batalha de Uclés.




Na minha opinião, porém, que vejo boas razões para que seja autêntico, ele foi fundamental na política tão criticada de D. Teresa. Mas comecemos pelo princípio!




Ao casar com D. Urraca, D. Raimundo tornou-se conde da Galiza e, nas suas posses, incluía-se o condado Portucalense que, nessa altura, ia até ao Tejo, pois Afonso VI tinha recebido Santarém e Lisboa do rei mouro de Badajoz, que se pôs sob a protecção do imperador. Raimundo, porém, não conseguiu segurar Lisboa, provocando a ira do sogro. Ao casar a filha Teresa com Henrique, Afonso VI pôs nas mãos deste o condado Portucalense, confinando Raimundo à Galiza. Henrique, porém, permaneceu vassalo do cunhado, situação que o pacto confirma. A carta endereçada ao abade de Cluny começa assim:




Ao senhor e reverendíssimo abade de Cluny, Hugo, e a toda a congregação de S. Pedro, o conde Raimundo, o seu filho e o conde Henrique, seu vassalo, desejam saúde e amor em Cristo (O “pacto sucessório” revisitado: o texto e o contexto, p. 13).




A nossa historiografia tende a divulgar a versão de que o interesse de D. Teresa pela Galiza se deveu ao seu envolvimento com a família de Trava. Ora, este pacto secreto, assinado pelo marido, sete anos antes de morrer, mostra que a Galiza fazia parte das ambições do conde portucalense. D. Teresa deu-lhe seguimento. Nas suas lutas com a irmã Urraca, ela reclamou sempre a Galiza para si. E o próprio Afonso Henriques passou os cinco anos a seguir à Batalha de São Mamede a tentar conquistar território galego. Foi essa a sua primeira medida, depois de se tornar no líder incontestado do condado Portucalense. Só depois de sucessivas derrotas, perdendo os territórios galegos conquistados, ele se virou para o Sul.




Se eu, conde Raimundo, não puder dar Toledo a ti, conde Henrique, tal como prometi, dar-te-ei a Galiza com a condição de que tu me ajudes a conquistar toda a terra de Leão e de Castela (O “pacto sucessório” revisitado: o texto e o contexto, p.22).




Esta passagem, do texto do pacto, é um pouco enigmática, pois dá a ideia de que D. Henrique teria aspirações ao senhorio de Toledo e que o cunhado não estava disposto a concedê-lo, substituindo-o pela Galiza. Ou seria o contrário? Inclino-me para a segunda hipótese. Não vejo que interesse D. Henrique pudesse ter por Toledo, tão longe das suas posses, apesar de se tratar de uma cidade de grande prestígio, antiga capital do reino visigótico. Contudo, depois da morte do imperador, Toledo nunca foi motivo de conflito com a rainha D. Urraca. Já a Galiza sim! Além disso, à data do pacto, D. Raimundo era conde da Galiza há cerca de quinze anos, não penso que facilmente abrisse mão desse território. E relembremos ainda que, dar, a um vassalo, o senhorio de uma cidade situada nas terras do suserano, era prática habitual na Idade Média. Podemos, por isso, admitir que a ideia de Toledo terá sido de Raimundo, como recompensa pela ajuda do cunhado. Henrique, porém, estaria mais interessado no reino da Galiza, criando um impasse. Com a moderação de Dalmácio Geret, ter-se-á tentado uma solução provisória, do estilo: «Toledo ou a Galiza».




Defendo, portanto, a importância do pacto, ao mostrar que a luta pela Galiza não se baseou num capricho de D. Teresa, por ter um amante galego. Fazia parte de uma estratégia política iniciada pelo conde D. Henrique, seguida pela sua viúva e também pelo filho de ambos, num primeiro momento: formar um reino na faixa oeste da Península, que iria desde a costa norte galega até onde as conquistas a Sul o permitissem.




Teresa, Bermudo e Urraca.JPG

Miniatura medieval representando D. Teresa, ao centro, com sua filha Urraca Henriques e o genro Bermudo Peres de Trava. Manuscrito gótico do mosteiro galego de Toxosoutos (Arquivo Histórico Nacional, Madrid. Tumbo de Toxosoutos, fol.  6v.)





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Published on August 11, 2019 10:21