Rodrigo Constantino's Blog, page 379

April 12, 2012

Soros e o Bundesbank


Rodrigo Constantino

George Soros, o bilionário especulador, filantropo e defensor do esquerdista Barack Obama, escreveu um artigo no Financial Times em que ataca a postura do Bundesbank. Segundo Soros, o tradicional banco central alemão, orgulho do povo germânico por seu rigor na defesa do valor da moeda, tem representado um entrave para as verdadeiras "soluções" à crise europeia.

E quais seriam estas soluções? Reformas trabalhistas nos países periféricos, que perderam competitividade ao longo dos últimos anos frente ao colosso alemão? Redução da burocracia e dos gastos públicos? Desarmar a armadilha do "welfare state" que engessou suas economias? Nada disso. Para Soros, a solução é usar o BCE para imprimir papel-moeda de forma ilimitada e indefinida. Ele explica:

The Bundesbank has seen the danger. It is now campaigning against the indefinite expansion of the money supply, and it has started taking measures to limit the losses it would sustain in a break-up. This is creating a self-fulfilling prophecy: once the Bundesbank starts guarding against a break-up, everybody will have to do the same. Markets are beginning to reflect this.

Quanto ao risco de profecia autorealizável, eu concordo que existe. Mas é preciso destacar que ele existe porque os fundamentos são frágeis e os pilares que sustentam este casamento forçado são de areia! Ignorar as verdadeiras causas do problema e focar no sintoma é a forma garantida de postergar o estouro da crise, porém amplificando a catástrofe depois.

O que Soros gostaria de ver é um caminho mais rápido na direção de uma união fiscal. Em outras palavras, o BCE ganharia tempo injetando liquidez de forma alucinada enquanto os alemães aceitariam transferir recursos para os gregos, portugueses, espanhóis e italianos. Falta só combinar com os alemães! Estes precisam encarar todos como igualmente "europeus", e não membros de uma cultura totalmente diferente, com línguas absolutamente díspares e um estilo de vida não condizente com a produtividade de seu trabalho. Pelo voto fica difícil sair um acordo desses...

E Soros sabe disso. Ele sabe também que o Bundesbank, pilar de austeridade monetária na história da Alemanha, jamais aceitaria a rota inflacionária como saída para a crise. Por isso ele defende simplesmente a "morte" do Bundesbank:

The Bundesbank will never accept these proposals, but the European authorities ought to take them seriously. The future of Europe is a political issue: it is beyond the Bundesbank's competence to decide.

Entenderam? O euro, um projeto político, precisa ser salvo a despeito dos enormes problemas que causou. E, para tanto, faz-se necessário enterrar de vez o Bundesbank e partir para uma união fiscal. Era exatamente esta a intenção da elite europeia, especialmente a francesa, quando o projeto foi concebido! Enterrar o Bundesbank e o marco alemão, sintoma da força relativa deste país, e impor a criação dos Estados Unidos da Europa, comandados por Bruxelas e com influência francesa desproporcional ao seu poderio econômico.

Em um artigo para O GLOBO, eu expliquei melhor estas intenções na origem do euro:

O projeto que criou a moeda comum partiu das elites europeias, incluindo socialistas franceses que sonhavam com um meio para recuperar seu prestígio e influência. O principal objetivo era político: domar a Alemanha recém-unificada. A ortodoxia de seu banco central (Bundesbank) e as reformas conhecidas como "ordoliberalismo" transformaram o país em uma potência na região. A valorização do marco frente às demais moedas era uma constante humilhação para todos.

Se dependesse de gente como George Soros, os socialistas franceses teriam aquilo tão sonhado, qual seja, um banco central dócil e subserviente aos interesses políticos de curto prazo. A moeda comum acabaria representando, na prática, a socialização imposta na região. Mas para ter maior integração comercial, liberdade econômica e paz, não é preciso ter uma mesma moeda, tampouco um poder centralizado em Bruxelas. No afã de buscar esta união forçada, acredito que essa turma vai acabar com o oposto daquilo que deseja: a desintegração da zona do euro. O tempo dirá...
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Published on April 12, 2012 08:18

April 11, 2012

Aborto e feto anencéfalo

O julgamento do STF reacendeu o debate sobre o aborto. Neste vídeo apresento meus argumentos sobre o tema cabeludo, condenando os dois extremos, o fanatismo tanto religioso como ateísta, questionando qual vida a cruzada moral dos religiosos realmente defende, e tentando sustentar algum bom senso no debate.
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Published on April 11, 2012 16:49

Tensão social na Grécia aumenta


Rodrigo Constantino

Deu no Financial Times: Pre-election threat to stability in Greece

The credibility of Greece's political class has sunk so low that both main parties of the centre right and centre left have faced problems finding suitable candidates to stand for election early next month.

Politicians are widely denounced as "thieves and traitors", reflecting a populist view that their corrupt practices while in government were responsible for triggering Greece's financial collapse.

One veteran political organiser for New Democracy, the conservative frontrunner, said: "The pool of potential candidates [for both main parties] has shrunk, especially in the provinces … Both respected professionals and prominent local government officials have been turning down offers."

"There are fewer people than usual aspiring to run," said a senior member of Pasok, the Panhellenic Socialist Movement that is in coalition with the centre-right under Lucas Papademos, the technocrat prime minister.

Campaigning has already started for an election expected to take place on May 6, even though the date will not be officially announced until midweek after parliament has approved another package of structural measures.


[...]

Comentário: Tenho dito e repito que o euro é um projeto político, idealizado pela elite europeia, mais especificamente francesa, que tenta forçar um casamento entre culturas bem diferentes. Agora que a conta da farra chegou, com juros e correção monetária, o clima está péssimo. Os gregos não querem fazer os dolorosos ajustes necessários. A Alemanha, por meio dos burocratas de Bruxelas, tenta impor uma agenda de mais austeridade. Só tem um problema: combinar com os gregos! A democracia pode sobreviver ao projeto centralizador de poder em Bruxelas? Ou o elo fraco joga a toalha e vota sua saída da moeda comum? O tempo dirá. Particularmente, acho pouco provável este casório forçado durar muito mais tempo. O pior é que a fase de uma possível separação amigável pode ter ficado para trás.[image error]
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Published on April 11, 2012 11:50

A amarga Anvisa vai atrás do seu doce!


Rodrigo Constantino

O caderno "Ciência" do jornal O Globo hoje serve como claro alerta ao que vem por aí. A matéria principal diz: "Brasil, um país de peso", com o seguinte subtítulo: "Estudo do Ministério da Saúde mostra que 64% da população já lutam contra balança". Os brasileiros ficam cada vez mais gordos. E o ministro Alexandre Padilha quer fazer alguma coisa:

Agora é a hora de virar o jogo para não chegarmos a países como os Estados Unidos, que tem mais de 20% de sua população obesa. Temos que ter maior oferta de produtos industrializados saudáveis. No tocante aos supermercados, por exemplo, o objetivo é tornar alimentos saudáveis mais visíveis.

As "almas altruístas" que vivem 24h pensando em como ajudar o próximo já querem impor regras aos mercados. Talvez obriguem que alface e cenoura orgânicos fiquem em destaque na prateleira, enquanto as balas e doces permanecem escondidos atrás do balcão. Sem dúvida aumento de imposto fará parte das propostas de combate à obesidade.

Em seguida, a matéria aponta os grandes vilões em destaque: "Dieta tem excesso de gordura e açúcar". Carnes gordas e refrigerantes são os inimigos da boa saúde. Os casos de câncer tendem a aumentar se esta alimentação ruim continuar.

Eu não discordo que o brasileiro médio se alimenta mal, naturalmente. Tampouco vou condenar campanhas por uma melhor alimentação. Acho legítimo e até saudável. Mas o abuso de alguns não deve tolher o uso dos demais! Eis onde reside o perigo, como diz a última reportagem do caderno: "Tabagismo chega ao menor patamar".

Diz o subtítulo: "Pela primeira vez, número de fumantes fica abaixo de 15% da população brasileira". Essa parcela já foi o dobro algumas décadas atrás. O elo ficou evidente. A lógica é a seguinte: o sobrepeso é um problema de saúde pública, uma "epidemia", que pode causar inclusive câncer, tal como o tabagismo, outra "praga" da saúde pública.

Portanto, é não só legítimo como desejável que o governo declare guerra aos alimentos calóricos e gordurosos. Proibir campanhas na televisão, impor alertas catastróficos nas embalagens ou até impedir a venda em vários ambientes são medidas necessárias para preservar a boa saúde dos brasileiros. Já posso imaginar a foto de uma "baleia" quase morta estampada no pacote de biscoito com o seguinte aviso: "O Ministério da Saúde adverte que este alimento pode matar".

No meu artigo do GLOBO sobre a Anvisa, apelei ao sarcasmo para condenar o autoritarismo da agência, pois só com humor conseguimos aturar as investidas destes "tiranos do bem" às vezes. Nele, eu alertava:

Muitos são os que aplaudem vossas medidas, saibam disso. Temos sólidos argumentos. Por exemplo: a saúde universal paga pelo estado. Eis como vai a lógica: se todos pagam impostos para manter o SUS, então claro que é legítimo o governo cuidar da nossa saúde. Dando continuidade a esta lógica impecável, nós da ANTA achamos que o governo deveria impor exercícios físicos diários, pois o ócio é prejudicial à saúde. Cortar o sal, o açúcar, a fritura e a gordura parece o caminho natural a seguir.

Podem anotar: a Anvisa vai começar timidamente a impor avisos sobre os riscos do açúcar, para em pouco tempo tomar medidas mais drásticas. A amarga Anvisa vai atrás do seu doce, caro leitor![image error]
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Published on April 11, 2012 09:59

Ctrl-C Ctrl-V


Alexandre Schwartsman, Folha de SP

Todos conhecem a história do sapo na panela, aquele que não pula, mesmo quando a temperatura se torna insuportável, desde que a água vá esquentando bem devagarinho. Ao final do conto o anfíbio entorpecido morre escaldado, incapaz de perceber as mudanças que afetaram o ambiente ao seu redor.

É difícil não pensar a fábula do sapo como uma metáfora para a mudança do padrão de política econômica no país de uns anos para cá. O tripé macroeconômico – câmbio flutuante, metas para a inflação e superávits primários – se tornou praticamente irreconhecível. Só alguém muito desatento poderia crer que o regime cambial no Brasil é flutuante quando ministros de Estado afirmam "não administrar o câmbio" ao mesmo tempo em que prometem "tentar manter essa taxa aí [R$ 1,80/dólar]".

Da mesma forma, nem a lendária Velhinha de Taubaté acreditaria que o BC – que, otimista, prevê a inflação quase um ponto acima da meta no próximo ano, mas mesmo assim estimula a economia – segue de fato um regime de metas para a inflação.

Já do lado fiscal as notícias não são melhores. Trabalho recente dos economistas do Itaú revela, por exemplo, que o superávit primário "estrutural" do setor público (livre da contabilidade criativa, particularmente intensa nos últimos anos, assim como dos efeitos do ciclo econômico sobre despesas e receitas públicas) caiu persistentemente comparado aos níveis registrados entre 2003-05. Enquanto naquele período a diferença "estrutural" entre receitas e despesas não financeiras superou o equivalente a 4% do PIB, nos últimos quatro anos teria atingido cerca de 2% do PIB em média, uma expansão fiscal considerável.

Por onde quer que se olhe, é inevitável perceber que a água fica mais quente a cada dia, muito embora o sapo tenha permanecido, pelo menos até agora, confortavelmente chapado. A água, porém, vai se aquecer ainda mais caso se materializem as propostas ventiladas neste final de semana acerca da possibilidade da re-renegociação das dívidas dos estados.

Não é segredo que a reestruturação das dívidas estaduais na segunda metade dos anos 90 foi, em conjunto com a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), a pedra fundamental na mudança da sua postura fiscal. Os estados, é bom que se diga, foram pesadamente subsidiados quando a União assumiu suas dívidas (cujo custo era bastante superior ao pago pelo governo federal) e lhes emprestou a taxas muito favoráveis.

Em contrapartida, contudo, foram obrigados a ajustar suas contas, resultado não muito diferente daquele que ocorreria na Europa, caso os países da Zona do Euro enveredassem por este caminho. Não por acaso, os estados – deficitários até 1998 – têm contribuído regularmente para o superávit primário do setor público após a reestruturação.

Também não é segredo que, a despeito do imenso subsídio, governadores tentaram desde o início sabotar este acordo, sem, é claro, ameaçar as condições favoráveis para si, mas buscando solapar exclusivamente sua obrigação de pagar o que devem para a União. Sempre quiseram, a todo custo, se livrar da camisa-de-força fiscal que os obriga a gerar superávits primários.

Este sonho ancestral está prestes a virar realidade. O governo federal acena com alterações nas regras do jogo que, se postas em prática, não apenas permitirão que os estados reduzam seus saldos fiscais, mas também representarão a primeira modificação relevante na LRF, abrindo a porteira para novas mudanças. Não é preciso muito para concluir que isto levará à deterioração adicional das contas públicas.

Não se trata da primeira (nem segunda) vez que este problema aparece, nem é meu primeiro artigo a respeito. A novidade é que, desta vez, as chances de uma derrapada fiscal estão se tornando bem maiores. Já disse não nutrir ilusões sobre a capacidade de artigos de jornal mudarem o mundo, mas, por Tutatis, como gostaria de estar enganado.[image error]
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Published on April 11, 2012 07:46

Entendemos, ainda, a grandeza?

ÉLCIO VERÇOSA FILHO, Folha de SP

Em nosso tempo, nada há que nos seja tão caro e tão representativo do nosso modo de ser quanto a concepção da tolerância como valor. Ser tolerante é, hoje, a suprema excelência.

Tanto as qualidades como todos os inumeráveis defeitos naturalmente humanos são, para nós, assunto exclusivamente privado.

Da mesma forma, o único defeito intolerável é o rompimento desse pré-contrato social, sob a forma da "intolerância" e do "autoritarismo", entendidos como "crueldade" ou "ausência de compaixão".

O princípio recebeu sua consagração definitiva na Constituição dos EUA com o direito de "buscar a felicidade" ("the pursuit of happiness"), que inclusive andam querendo enfiar também na nossa Constituição.

Ele foi o resultado de séculos de luta contra opressões de todo tipo, patrocinadas pelos porta-estandartes tradicionais do "bem" e da "virtude" -padres, militares, vizinhas fofoqueiras etc.-, e da natural desconfiança daí decorrente de que, por trás do "bem" e da "virtude", belos e radiosos ornamentos do discurso, há, quase sempre, uma inconfessada vontade de poder.

A conclusão lógica é que o melhor remédio para isso é que todos passam gozar, como o que há de mais sagrado, do direito de lançar-se na baixeza se a baixeza parecer o melhor caminho para ser feliz.

Escrevo baixeza sem aspas por uma boa razão. Um motivo recorrente para a defesa da tolerância é justamente a incapacidade de dar validade universal aos juízos avaliativos: "bom" e "mau", "alto" e "baixo", "nobre" e "vil" não têm validade em si; o seu sentido depende inteiramente do tempo e lugar em que são proferidos, quando não da mera visão pessoal do avaliador.

Como seres que se entendem cada vez mais como produtos autônomos (sic) do processo histórico -livres criadores dos "valores" e do conhecimento-, sentimos grande dificuldade em evitar essa conclusão.

Mas o caso é que essa posição, que podemos chamar de convencionalista, pós-moderna ou relativista, também tem problemas. É mesmo verdade que não temos nenhum conhecimento objetivo do que é "bom" e "mau", "alto" e "baixo", "grande" e "mesquinho" no sentido moral?

Da mesma forma que sabemos com certeza mais que intuitiva -com o perdão de Descartes- que existe um mundo efetivo, independente, fora de nós, é difícil não reconhecer que, de alguma forma, sabemos, para além de toda pose relativista, que Bach é, no campo da música, maior, "mais grande", mais digno de louvor e de imitação (enfim, "melhor") que Michel Teló.

Assim como sabemos, para usar um exemplo menos frívolo, que dar a vida por um amigo é maior, "mais grande", do que buscar a todo custo, por quaisquer meios disponíveis, meramente sobreviver.

A correção ou segurança desses juízos avaliativos parece clara para os melhores de nós (respectivamente os que conhecem algo de música e os que buscam sinceramente o bem) e vão em um sentido diverso daquilo que normalmente chamamos de "convicção pessoal".

Aí é que está: concordamos ainda com Aristóteles que, como Aquiles, mais vale queimar intensamente por um tempo breve em nome de causas belas e nobres do que passar uma vida inteira vegetando na mediocridade. (Uma prova curiosa de que ainda temos algum sentido da grandeza é o culto dedicado aos astros de rock que morreram jovens e viveram intensamente.)

Mas o caso é que não conseguimos mais, com as categorias de que dispomos -"tolerância", "respeito", "direitos"-, articular aquilo que experimentamos (o maior brilho e valor do que é simplesmente "grande", mais digno da nossa admiração) em um discurso racional.

Não é, assim, que o fenômeno da grandeza humana não seja (re)conhecível, como querem os entusiastas libertários no seu ceticismo de conveniência. Ele simplesmente não é mais pensável. Pelo menos para nós. Da mesma forma e pelas mesmas razões pelas quais não é mais pensável quem somos nem qual é o nosso bem.

Ao que parece, a grande e radical novidade é que, pela primeira vez na história, nós simplesmente não queremos saber. Eis o fundo sem fundo do nosso relativismo (moral, cultural etc.), onde parece residir toda a nossa "virtude": gloriamo-nos de não estar nem aí.[image error]
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Published on April 11, 2012 07:25

April 10, 2012

O filho pródigo

João Pereira Coutinho, Folha de SP

TODAS AS famílias têm seus motivos de vergonha: infidelidades, burlas, crimes. A família europeia tem uma vergonha maior. Chama-se Holocausto. E não é fácil engolir a matança maquinal e sistemática de milhões de seres humanos, na sua maioria judeus (porque a "solução final", convém lembrar aos amnésicos, intitulava-se "solução final para a questão judaica"), sem risco de indigestão grave.
O Holocausto é uma mancha que não sai da consciência europeia. E uma das formas de lidar com ela é invertendo os papéis dos personagens, transformando as vítimas em carrascos.
Nos últimos anos, essa metamorfose tem sido praticada com fervor pela "intelligentsia" ocidental: os judeus de hoje não são muito diferentes dos nazistas de ontem; Gaza é um novo gueto de Varsóvia; e Israel é uma espécie de Terceiro Reich no Oriente Médio.
A Europa acredita que, através dessa inversão anacrônica, a culpa do crime irá desaparecer. E chegará um dia em que os europeus poderão afirmar, de cabeça limpa e sem vergonha da sua imagem no espelho: "Eles, os judeus, não são melhores do que nós".
Eis, em resumo, o poema que Günter Grass escreveu na imprensa alemã e que levou Israel a declará-lo "persona non grata".
Superficialmente, o poema de Grass é apenas mais uma acusação à política de Tel Aviv, ao seu programa nuclear e às suas alegadas intenções de atacar o Irã. Curiosamente, as ameaças diretas do Irã a Israel, que na verdade começaram as hostilidades, não figuram na obra literária de Grass.
E não figuram porque Grass é um caso à parte: aos 17 anos, o escritor marchou com as Waffen-SS, a tropa de elite de Hitler, e serviu ao Terceiro Reich nos seus momentos finais.
Um segredo tão "vergonhoso" que o próprio só recentemente decidiu partilhá-lo com os leitores da sua autobiografia, "Descascando a Cebola".
Infelizmente, esse pecadilho de juventude, escondido a vida inteira, ainda não está ultrapassado. E só isso explica que, algures no poema, Grass se permita sentenciar que Israel é hoje a maior ameaça à paz mundial.
A frase, que poderia ter sido dita por Mahmoud Ahmadinejad ou qualquer outro antissemita do gênero, não deveria merecer grande comentário. Mas, por uma vez sem exemplo, será que Grass tem razão?
A resposta a essa pergunta poderia ser dada por um compatriota do escritor. Em 2005, o cientista político Josef Joffe escreveu para a revista "Foreign Policy" um ensaio célebre em que imaginava a história do Oriente Médio sem a existência de Israel no mapa. "Um mundo sem Israel", lia-se na capa.
E, no interior, esse mundo não era muito diferente do mundo que existe hoje. Sunitas e xiitas não seriam menos inimigos; os cristãos da Síria, do Egito ou do Iraque não estariam a ser menos perseguidos; a Arábia Saudita não teria melhores relações com os aiatolás de Teerã; Saddam não teria poupado a vida de curdos ou xiitas ou kuwaitianos; a guerra entre o Iraque e o Irã, o mais longo conflito do século 20, não teria sido evitada.
E, sobre o destino dos palestinos, a luta de "libertação" seria provavelmente dirigida contra o Egito e a Jordânia, caso esses dois países ainda dominassem Gaza e a Cisjordânia como o fizeram até 1967.
Por outras palavras: o fracasso político, econômico e cultural do Oriente Médio, esse oceano de 1 bilhão de muçulmanos, não se explica com uma gota de 5 milhões de judeus. Explica-se pelo autoritarismo, pela ignorância e pelo fanatismo dos seus líderes.
Günter Grass discorda. E, no seu poema-manifesto, limita-se a coligir os velhos temas do antissemitismo clássico: os judeus manipulam o mundo e, na sua ânsia de o dominarem, acabarão por destruí-lo. O seu líder de juventude, Adolf Hitler, não diria melhor.
Um mérito, porém, devemos reconhecer a Grass: o seu poema foi publicado nas vésperas do Pessach, um período que, durante a Idade Média e mesmo depois, servia para acusar os judeus de usarem o sangue dos gentios na feitura do pão da Páscoa. Era o pretexto ideal para as perseguições antijudaicas.
Günter Grass não é tão primitivo como os antecessores. Mas o seu sentido de "timing" é digno de um Fred Astaire.[image error]
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Published on April 10, 2012 14:20

Europe has yet to make Europeans


By Gideon Rachman, Financial Times

"We have made Italy, now we must make Italians." So said Massimo d'Azeglio, an Italian intellectual, just after his country's unification in 1861. The current generation of EU politicians face a modern version of the d'Azeglio dilemma: They have made a European Union, now they must make Europeans.

The construction of a group identity typically takes generations. But Europe's politicians no longer have the luxury of time. Unless they can persuade the 500m or so citizens of the EU to feel more attachment to Europe and less to their nations, they may be unable to take the necessary steps to save the euro.

Most analysts reckon that, to survive, the euro will have to be backed by a much bigger European federal budget, common debt (eurobonds) and a more powerful central government. These things do not have to emerge immediately, but the direction of travel needs to be established soon. However, the popular backing for such steps is nowhere to be seen. German taxpayers balk at the idea of larger transfers of money to southern Europe. Greek and Spanish voters do not seem remotely ready to see their countries' budgets made in Brussels. The European identity needed to make "Europe" work is not strong enough. But without it the EU looks like a building with shallow foundations, trying to withstand a political and economic earthquake.

The difficulty of "making Italians" is a cautionary tale for those who now have to struggle to "make Europeans". More than 150 years after unification, the Northern League, a powerful opposition party, campaigns to turn Italy into a much looser federation, or even to break the country up.

The League's leader, Umberto Bossi, was forced to resign last week but the tensions on which his party thrives remain. Southern Italy is still much poorer than the north. Some argue that its relative stagnation is partly a result of being stuck in a currency union with the more productive north. Meanwhile many northern taxpayers deeply resent the transfers of tax money to the south and lambast the region's corruption.

Like Italy, Europe suffers from a north-south divide, with mutual resentments growing between the citizens of a more prosperous north and an economically struggling south. Somehow, politicians have to persuade both sides to overcome their differences, by thinking of themselves as Europeans.

But "making Europeans" will be much tougher than making Italians: the process of identity formation must take place across a huge territory with entrenched differences of language and culture.

All nation-builders have known that a shared national narrative and a common language are essential building blocks for the creation of a nation. Control of the education system is essential. In 1861, just one in 40 Italians actually spoke Italian. That was rectified through the schools. But today education remains firmly in the hands of the EU's 27 nations. There is no common school curriculum inside the EU – far less instruction in a common language.

After a recent EU summit that saw the adoption of German-inspired fiscal rules, Volker Kauder, the parliamentary group leader for Chancellor Angela Merkel's Christian Democrats, exulted: "Now Europe is speaking German". But that is not true, literally or metaphorically. It is far too soon to proclaim that Germany's economic "stability culture" has been internalised by southern Europe. And teaching of the German language has actually been on the slide in much of Europe – although demand for German lessons is reportedly picking up in southern Europe, as the unemployed contemplate emigration.

If Europe genuinely wanted all its citizens to be taught in a common language, the obvious candidate would be English. But proposing that English should be made the language of instruction in French schools would simply be a new and amusing way of committing political suicide.

Some pundits nonetheless thought they had spotted hopeful signs of the formation of a pan-European identity in the current French presidential election, when it was announced that Angela Merkel, the German chancellor, would campaign alongside Nicolas Sarkozy. But the idea was swiftly dropped, along with President Sarkozy's early campaign theme that he would import a successful German model to France.

The barnstorming Le Bourget speech that launched the campaign of François Hollande, Mr Sarkozy's chief rival, is full of references to great figures from French history – from Clemenceau to Camus. It is these cultural roots that give the speech its colour, its passion and its sense of history. The EU barely features.

In fact, as the French election has proceeded, so the debate has become more nationalistic. The authorities in Brussels, who are convinced that Europe must press ahead with deeper integration have instead had to listen to Mr Hollande promising to "renegotiate" the EU's new fiscal pact and Mr Sarkozy threatening to pull France out of its agreement on border-free travel. Elections in Greece next month are also likely to see a sharp increase in nationalist rhetoric – particularly after the recent shocking suicide of a pensioner, who killed himself in front of parliament and left a note accusing Greek politicians of being traitors who had sold the country out to foreigners.

Group identities can be forged in moments of crisis and war. But, far from "making Europeans", this current crisis is encouraging the citizens of the European Union to fall back on older, more deeply-rooted, national identities.

Comentário: Como já disse outras vezes, o euro foi um projeto concebido pela elite europeia, um ícone daquilo que Hayek chamou de "arrogância fatal". Foi um projeto político antes de econômico. A ideia era unir à força povos com culturas bem diferentes. A criação dos Estados Unidos da Europa era a meta ambiciosa daquela turma, incluindo socialistas franceses. Ocorre que faltou combinar com os alemães e gregos que eles, a partir de então, seriam um único povo. As línguas são diferentes, não há ampla mobilidade de mão de obra, ao contrário do que acontece nos EUA, e as culturas são bem distintas. Não se muda pilares tão estruturais por decreto estatal. Ao tentarem impor um casamento sem "amor" genuíno, os burocratas europeus vão acabar criando uma separação litigiosa. A sobrevivência do euro está longe de garantida.
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Published on April 10, 2012 07:46

Admirável Brasil Novo

Raul Velloso, O Globo

O alarde sobre a perda de espaço da indústria de transformação no PIB brasileiro existe exatamente porque ninguém gosta de incorrer em perdas.

A indústria de transformação está perdendo participação, mas não tanto quanto a estatística sugere. Sabe-se que os preços da indústria têm caído em relação aos demais, especialmente ao setor de serviços – onde a escassez de oferta produz forte subida de preços. Assim, se deflacionássemos os valores originais pelos índices setoriais de preço, a queda de participação física seria menor.

Não se trata, portanto, de dizer que a indústria acabou, mas que o Brasil, a exemplo de outros países, está passando por uma transformação estrutural em favor dos demais setores. Esse é o ponto. O paradigma em vigor no passado já mudou ou está em processo de mudança. É de se esperar que, diante da perda, os representantes da indústria tendam a mostrar indignação, especialmente contra o tsunami cambial – um inimigo externo recente -, e que o governo se sinta premido a implementar medidas de alívio.

A indústria made in Brazil perde espaço basicamente por quatro motivos. Primeiro, porque poupamos pouco (especialmente no setor público), ou seja, mesmo arrecadando muito, adotamos um modelo de forte expansão dos gastos correntes. Por isso, o setor público investe pouco, criando gargalos e altos custos na infraestrutura de transportes. Há o fato de que o governo desaprendeu a planejar e gerir inversões, e também um viés ideológico anti-investimento privado de qualidade na infraestrutura. O Custo Brasil é gigantesco, tanto por isso, como porque há burocracia excessiva, corrupção e outras mazelas. Com margens apertadas, a indústria sofre mais.

Em segundo, porque os preços das nossas commodities de exportação dispararam, beneficiando diretamente um setor que não é a indústria. Em breve, com o pré-sal, seremos campeões também em petróleo de alta profundidade, e exportadores dessa commodity tecnologicamente sofisticada.

Em terceiro, porque a China, esbanjando poupança, vem implementando há trinta anos – ou mais – um modelo econômico baseado na inundação de produtos industrializados baratos no mundo ocidental. E, por último, porque o Brasil se tornou mais atrativo aos capitais externos por seus méritos (controle da dívida pública e estabilidade política), por seus deméritos (uma das maiores taxas de juros reais do mundo), e pelo demérito dos outros (crise mundial).

Vê-se que, enquanto a indústria perde, outros setores ganham. Basta lembrar o sucesso do pré-sal. Agora, não se trata mais do petróleo de águas rasas, mas do óleo extraído de águas profundas com sofisticada tecnologia made in Brazil.

Além do mais, a indústria brasileira padece do pecado de ter sido montada especialmente para atender ao mercado interno, na ideia de que o sistema original de proteção duraria para sempre. Só que o mundo resolveu reduzir as barreiras, e o Brasil não teve escolha: integrou-se mais aos mercados mundiais, desvendando uma pletora de "carroças".

Tudo isso empurra o Brasil para a apreciação real da taxa de câmbio, o que vem ocorrendo há muito, e só não se dá em maior intensidade porque o Banco Central compra todos os dólares que consegue, ainda que essa compra seja financiada internamente a juros estratosféricos.

Sem preparo para enfrentar essa avalanche de mudanças, a indústria trava uma guerra inglória contra as forças naturais dos mercados e o modelo de crescimento dos gastos correntes. Nesse sentido, o governo vive uma difícil contradição. Quer ajudar a indústria, para o que lança medidas pontuais, mas gostaria de poder viabilizar maior crescimento global do PIB, o que exige maior volume de poupança de fora, a fim de complementar a reduzida geração de poupança interna que o seu modelo ocasiona.

O conflito está em que não há como trazer essa poupança sem ter um déficit de igual valor na conta corrente do Balanço de Pagamentos, o que requer maior apreciação cambial, maiores importações e, no fim, maiores déficits externos.

Não é por outro motivo que, nos governos Lula (até 2008), a taxa de investimento aumentou cerca de cinco pontos de porcentagem do PIB, enquanto o déficit externo (poupança externa) aumentava na mesma magnitude. Com o país impedido de importar serviços, e sendo campeão de competitividade em commodities, a indústria acaba sendo o primo pobre que precisa não crescer para tudo o mais funcionar. Estamos – ou não – num admirável mundo novo?

Com tantos desafios, é fundamental criar condições para a indústria se tornar mais competitiva de forma sustentável. Sem uma estratégia semelhante à que colocou a Embraer no brilhante patamar em que está, e dada a oferta mundial excedente de produtos industrializados do momento, é de se tentar outros caminhos. Nesse contexto, o principal andaime que dará sustentação à indústria é a concentração de investimentos em infraestrutura, especialmente de transportes, onde a carência é maior. Assim, estaremos pavimentando de forma mais sólida o caminho para o novo mundo que se ergue.[image error]
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Published on April 10, 2012 05:18

April 9, 2012

O espírito da BMW

(Abaixo vai minha segunda tentativa de escrever um conto, após "Sinais". Claramente sou atravessado pelo tema, criando o fantástico como fuga para a realidade, quase sempre menos interessante. Espero que gostem, e sejam obsequiosos no julgamento)

Rodrigo Constantino

Era uma noite quente de março, com fortes rajadas de vento e nuvens carregadas prenunciando o temporal iminente. João havia trabalhado até tarde aquele dia, finalizando o relatório sobre sua última viagem de negócios. Seus olhos avermelhados imploravam por descanso, e sua cabeça igualmente solicitava uma parada merecida. Ele olhou o relógio. Já passava das 21:30, e o escritório não tinha mais vivalma. Era tudo um breu só, à exceção de sua mesinha, com o brilho da tela do computador servindo como única fonte de luz no recinto.

João afastou o teclado do computador e reclinou sua cadeira, colocando os pés em cima da mesa. Sem saber ao certo o motivo, colocou-se a pensar em sua avó, já falecida havia um par de décadas. Ficou curioso com estas lembranças, uma vez que levava uma vida tão atarefada que raramente se entregava a estes momentos nostálgicos. Sua avó Nilza, então, dificilmente era tema de suas memórias esporádicas sobre aqueles anos enterrados no passado. Sua infância, na casa 34 da Rua José Bezerra em Grajaú, bairro pobre de São Paulo, não foi fácil, e João não fazia muito esforço para rememorar aquela época. Por isso o espanto.

Após estas estranhas reminiscências, João sorriu, um tanto confuso, e decidiu que já era hora de partir para um justo descanso em sua casa. Desligou o computador, passou a chave na porta e pegou o elevador até a garagem. Lá o aguardava seu novo objeto de gozo fálico, o ícone dos novos tempos em que a pobreza da infância não passava de uma distante lembrança. Tratava-se de seu novo sedã de marca importada, cor prata reluzente, e o mais importante de tudo: com um sistema de multimídia de dar inveja ao melhor home theater da cidade.

Era hábito muito recente de João voltar para casa assistindo a novela em sua enorme televisão estampada bem ao centro do painel de madeira perolizada. Na verdade, esta era sua terceira noite nesse novo esquema, que regozijava João, nunca com tempo para as frivolidades noveleiras que todos comentavam nas horas de almoço do trabalho. Antes ele se sentia excluído, antissocial, mas agora ele podia fazer um ou outro comentário sobre os principais personagens da novela, apesar de não demonstrar apreço sincero pela trama banal.

A novela contava a história boboca de uma menininha que via espíritos bondosos e conversava com eles. João não tinha visto mais que três capítulos, mas inferiu que era o suficiente para conhecer o enredo todo. O mais enfadonho para João era o apelo sensacionalista e religioso. Um ateu convicto, João era cético em relação a tudo, especialmente a estas crenças religiosas que claramente existiam como amuletos e consolos para gente sofrida e desesperada.

Ele não conseguia esconder seu tédio ao ver aquelas cenas tolas, mas insistia heroicamente na tarefa por causa das sonhadas amizades no trabalho. Afinal, João era tido como um solitário estranho, excêntrico até, e sempre teve dificuldade de se entrosar naturalmente com as outras pessoas. Era tempo de mudar isso, e ele estava disposto ao sacrifício. Nem que fosse preciso aguentar alguns minutos daquela baboseira toda.

Distraído com uma das cenas mais estúpidas, em que a menina mediúnica conversava com um espírito todo de branco que emanava uma forte luz, João nem notou quando um carro preto encostou ao seu lado e a motorista, uma mulher na casa dos 40 anos, gesticulou algo na tentativa de chamar sua atenção. Após alguns segundos, aqueles braços em movimento acabaram por formar uma imagem monolítica que o campo de visão de João não podia mais ignorar. Dando-se conta de que era com ele, voltou seus olhos naquela direção, e viu o sinal que a mulher fazia para que ele abaixasse o vidro.

Sempre desconfiado, conhecedor das inúmeras histórias originais de assalto na cidade, ainda mais sendo aquilo o Rio de Janeiro e não uma Suíça, João levou mais alguns segundos pensando no que fazer. Estavam parados no sinal, e ele observou pelo retrovisor que não havia perigo aparente, nenhuma moto se aproximando ou um transeunte perto do carro. Resolveu arriscar e abaixou seus vidros escuros, achando que provavelmente a mulher queria alguma informação de endereço ou algo assim. Foi quando passou pela situação mais inusitada de sua vida.

A mulher simplesmente quis saber se poderia fazer uma pergunta a João, que não soube direito o que dizer. Descendo e subindo a cabeça de forma lenta e automática, bastante desconfiado, João aguardou a pergunta com certa ansiedade. Foi quando a mulher jogou a bomba, ao proferir as seguintes palavras: "Você acredita em Deus?"

Aquilo não fazia o menor sentido! Como assim, alguém travar contato no meio do trânsito só para perguntar uma coisa dessas? João, meio paralisado, com um esboço de sorriso nervoso no rosto, disse que não, sem saber ao certo o que esperar daquele encontro maluco. O que veio em seguida fez daquela experiência uma das mais intensas de sua vida. A mulher, com uma cara séria, fulminou: "Pois eu sou espírita. Tem certeza que não acredita em Deus?"

Totalmente incrédulo com aquela cena absurda, João repetiu que não. O sinal ficou verde, e ele viu o carro preto arrancar, cruzando para o outro lado da larga pista em disparada. Conseguiu identificar a marca, uma BMW, e também pegou a placa do veículo. Foi um ato instintivo, pois João não raciocinava direito. Um arrepio tomou conta de todo seu corpo quando ele percebeu a incrível coincidência, por causa da cena que acabara de assistir na TV do carro. Tudo era surreal demais. Seria aquilo um sinal divino?

O lado cético de João logo se pôs a funcionar. Alguns psicólogos chamam isso de racionalização. Mas o fato é que João queria eliminar qualquer possibilidade paranormal para aquilo que acabara de vivenciar. Ele parecia disposto a comprovar – ou se convencer – que tudo não passava de um acaso, um estranho acaso. Passou por cada hipótese possível, mas sua própria lógica derrubava uma a uma.

Ela poderia ter visto a mesma cena em sua TV, e de alguma forma inferido que ele não apreciava em absoluto aquela baboseira? Não era possível, pelo ângulo do carro dela, e principalmente pela sua película escura colada nos vidros. O que então? Talvez alguma teoria científica de universo paralelo? Não, isso era ainda mais ridículo do que o espiritismo. Quem sabe um fluxo de energia, que pessoas mais sensíveis podem captar? Ou será que ele era um esquizofrênico que via coisas que não existiam?

João ficava mais tenso a cada nova tese patética que sua mente cética criava para fugir daquela experiência nova, onírica, que lhe abria um novo universo à frente. Ele sabia muito bem o que tinha visto. Ele também sabia perfeitamente que era impossível alguém conseguir ver sua TV de fora, e ainda por cima entrar em seus pensamentos para ler sua reprovação. O que tinha ocorrido, afinal? Será que o cético teria de sucumbir ao paranormal, e aceitar que entre o céu e a Terra há mais que nossa vã filosofia pode compreender, como alertava o bardo?

Homem que não se entregava facilmente, João estava determinado a seguir os rastros daquela BMW e averiguar melhor essa história louca. Ele agradecia o instinto que lhe logrou obter aquela placa. Era mais que uma pista: era o que ele precisava para encontrar a mulher misteriosa e passar a coisa toda a limpo.

Mal chegou em casa e foi direto para o computador, sem sequer dar boa noite a sua mulher. Entrou no site do Detran e digitou a placa no espaço de busca. Nada. Deu-se conta então de que a placa não era do Rio. Sem acesso ao Detran de outro estado, teria que aguardar até a manhã do dia seguinte, quando poderia solicitar a sua colega de trabalho, cujo pai trabalhava no Detran, o favor de encontrar o proprietário de um carro. Inventaria alguma desculpa qualquer, diria talvez que o carro em questão tinha batido no seu e fugido, pensaria em algo. Mas a espera é que o mataria. Oito horas até o batente. Era o tempo de sua angústia, até desvendar tudo e retornar à segurança de seu mundo previsível e científico.

Passou a noite sem pregar direito os olhos, naturalmente. Aquele rosto, aquela pergunta, aquela sensação estranha que tomara conta de seu corpo, tudo vinha à tona durante o sono leve, e João acordava suando de hora em hora. Mas se convencia de que logo encontraria uma explicação razoável para aquela maluquice aparente. Só mais algumas horas...

O sol raiou, e João nem precisou do alarme programado no despertador para levantar. Já estava no banho, e em poucos minutos engolia a fatia de pão, bebia o café e tomava o rumo do escritório. Lá chegando, ainda teve que esperar outros 40 intermináveis minutos pela atrasada colega. Assim que esta colocou os pés no escritório, João pediu dois minutinhos de seu tempo, em tom conspiratório, e puxou a colega para uma sala de reuniões.

Deu sua versão mentirosa, explicou que era muito importante saber ao menos o nome da motorista, e que se fosse possível ter também seu endereço, o que ele reconhecia ser um pouco demais para pedir como favor, ele seria eternamente grato. Ela prometeu ajudar, e disse que o faria imediatamente, pois para seu pai isso era moleza, coisa de um clique e pronto. Talvez ela tivesse notado o nervosismo atípico que a voz de João traía. Pediu para ele aguardar alguns minutos, e falou que mandaria os dados solicitados pelo email tão logo os recebesse.

Nos 15 minutos seguintes, João não conseguiu trabalhar. Fingia que lia um relatório, mexia no mouse, mas não tirava os olhos daquela caixa de entrada, obcecado com um único remetente. Foi quando piscou em negrito a mensagem com o título Detran. João mal simulou sua ansiedade, respirou fundo e clicou no email. Ele poderia finalmente encerrar o mistério e regressar ao mundo da razão. Leu cada palavra com total atenção e os músculos do corpo retesados. Precisou reler letra por letra. Seu cérebro não acreditava no que seus olhos enxergavam. A mensagem dizia:

Proprietário: Nilza.
Endereço: Rua José Bezerra 34, Grajaú - SP.
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Published on April 09, 2012 16:53

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Rodrigo Constantino
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