António Lobo Antunes's Blog, page 7
December 7, 2016
Tamina Šop vence prémio tradução Miloš Đurić 2016 pela sua versão sérvia de O Manual dos Inquisidores
Tamina Šop vence prémio de tradução na Sérvia com obra de Lobo AntunesA tradutora Tamina Šop venceu o prémio Miloš Đurić 2016 pela tradução para sérvio da obra "O Manual dos Inquisidores", de António Lobo Antunes, foi hoje anunciado pelo Camões Instituto da Cooperação e da Língua.
edição sérvia Geopoetika, 2016
tradução de Tamina ŠopO livro [em sérvio "Priručnik za inkvizitore"] foi publicado na Sérvia pela editora Geopoetika, com o apoio do Instituto Camões e da Direção Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas de Portugal.
De acordo com o instituto, pela primeira vez desde 1968, quando este prémio foi criado, um livro de literatura portuguesa vence na categoria de prosa, depois da tradução de uma parte da obra de Fernando Pessoa, por Jasmina Neskovic, ter recebido o mesmo reconhecimento na categoria de poesia, nos anos 1990.
Em "O Manual dos Inquisidores", publicado em 1996, António Lobo Antunes conta o desmoronamento de uma família da alta burguesia do antigo regime, rica e considerada, centrando-se na figura do patriarca, um influente e poderoso governante do regime de Oliveira Salazar.
A acção decorre antes e depois do 25 de Abril de 1974, relatando a mudança drástica na vida da família, com a queda do regime fascista.
A entrega do prémio Miloš Đurić 2016 realiza-se na quarta-feira, às 18:00, na Associação de Tradutores Literários da Sérvia, em Belgrado.
Fonte: Lusa06.12.2016
edição sérvia Geopoetika, 2016tradução de Tamina ŠopO livro [em sérvio "Priručnik za inkvizitore"] foi publicado na Sérvia pela editora Geopoetika, com o apoio do Instituto Camões e da Direção Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas de Portugal.
De acordo com o instituto, pela primeira vez desde 1968, quando este prémio foi criado, um livro de literatura portuguesa vence na categoria de prosa, depois da tradução de uma parte da obra de Fernando Pessoa, por Jasmina Neskovic, ter recebido o mesmo reconhecimento na categoria de poesia, nos anos 1990.
Em "O Manual dos Inquisidores", publicado em 1996, António Lobo Antunes conta o desmoronamento de uma família da alta burguesia do antigo regime, rica e considerada, centrando-se na figura do patriarca, um influente e poderoso governante do regime de Oliveira Salazar.
A acção decorre antes e depois do 25 de Abril de 1974, relatando a mudança drástica na vida da família, com a queda do regime fascista.
A entrega do prémio Miloš Đurić 2016 realiza-se na quarta-feira, às 18:00, na Associação de Tradutores Literários da Sérvia, em Belgrado.
Fonte: Lusa06.12.2016
Published on December 07, 2016 14:16
Tamina Šop vence prémio tradução Miloš Đurić 2016 pela sua versão sérvia de O Manual dos Inquisidores
Tamina Šop vence prémio de tradução na Sérvia com obra de Lobo AntunesA tradutora Tamina Šop venceu o prémio Miloš Đurić 2016 pela tradução para sérvio da obra "O Manual dos Inquisidores", de António Lobo Antunes, foi hoje anunciado pelo Camões Instituto da Cooperação e da Língua.
O livro [em sérvio "Priručnik za inkvizitore"] foi publicado na Sérvia pela editora Geopoetika, com o apoio do Instituto Camões e da Direção Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas de Portugal.
De acordo com o instituto, pela primeira vez desde 1968, quando este prémio foi criado, um livro de literatura portuguesa vence na categoria de prosa, depois da tradução de uma parte da obra de Fernando Pessoa, por Jasmina Neskovic, ter recebido o mesmo reconhecimento na categoria de poesia, nos anos 1990.
Em "O Manual dos Inquisidores", publicado em 1996, António Lobo Antunes conta o desmoronamento de uma família da alta burguesia do antigo regime, rica e considerada, centrando-se na figura do patriarca, um influente e poderoso governante do regime de Oliveira Salazar.
A acção decorre antes e depois do 25 de Abril de 1974, relatando a mudança drástica na vida da família, com a queda do regime fascista.
A entrega do prémio Miloš Đurić 2016 realiza-se na quarta-feira, às 18:00, na Associação de Tradutores Literários da Sérvia, em Belgrado.
Fonte: Lusa06.12.2016
O livro [em sérvio "Priručnik za inkvizitore"] foi publicado na Sérvia pela editora Geopoetika, com o apoio do Instituto Camões e da Direção Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas de Portugal.
De acordo com o instituto, pela primeira vez desde 1968, quando este prémio foi criado, um livro de literatura portuguesa vence na categoria de prosa, depois da tradução de uma parte da obra de Fernando Pessoa, por Jasmina Neskovic, ter recebido o mesmo reconhecimento na categoria de poesia, nos anos 1990.
Em "O Manual dos Inquisidores", publicado em 1996, António Lobo Antunes conta o desmoronamento de uma família da alta burguesia do antigo regime, rica e considerada, centrando-se na figura do patriarca, um influente e poderoso governante do regime de Oliveira Salazar.
A acção decorre antes e depois do 25 de Abril de 1974, relatando a mudança drástica na vida da família, com a queda do regime fascista.
A entrega do prémio Miloš Đurić 2016 realiza-se na quarta-feira, às 18:00, na Associação de Tradutores Literários da Sérvia, em Belgrado.
Fonte: Lusa06.12.2016
Published on December 07, 2016 12:52
November 24, 2016
Crítica de Isabel Lucas a Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera
Quando já se perdeu o nome
“Eu não tenho personagens”, afirmou António Lobo Antunes numa entrevista a este jornal [Público], em 2014, quando publicou Caminho Como uma Casa em Chamas, um romance centrado num prédio de Lisboa e nos seus habitantes. Podia-se acrescentar que também não tem enredos, ou que os livros têm cada vez menos aquilo a que se convenciona chamar uma acção, com princípio meio e fim. São antes deambulações acerca do que é a vida, íntima e de um colectivo, contadas a partir de uma voz interior, quase sempre errática, que recorre a outras vozes convocadas pela memória nas suas falhas ou momentos iluminados, e que preenchem um vazio que vai ganhado sentido(s). Não há início ou epílogo. Há um percurso que o leitor apanha num dado ponto e segue, tantas vezes tacteando, até ele se extinguir. O livro é o que fica entre esses dois momentos.
Como este, o 27º romance de António Lobo Antunes. Para Aquela que Está Sentada no Escuro à Minha Espera acompanha um período que se adivinha derradeiro da memória doente, alterada e muito fragmentada, de uma mulher de 78 anos, ex-actriz com uma carreira mediana que passou a infância em Faro e se mudou para Lisboa porque queria trabalhar no teatro. O nome da doença nunca é revelado, mas é a doença que determina a forma e o conteúdo. “e que doença senhor doutor, nem sequer sou velha, aos setenta e oito anos ninguém é velho ainda, qual velha, sou uma actriz a descansar durante esta peça para, como diz o director do teatro, entrar na próxima num papel à minha medida…”
É esta a voz, a voz que profissionalmente decora outras vozes até esquecer a sua, a que o leitor tem acesso privilegiado. Frágil, mas o único meio para se situar num livro que se passa todo ele no espaço mais privado de uma mulher cuja identidade se vai revelando em espasmos à medida que essa identidade também se dilui. Ela é “Dona Celeste”, “filhinha”, “miúda”, mulher do tio, “minha senhora”. Depende do tempo cronológico ou do interlocutor. Se quem a chama ou se lhe dirige é o médico, o pai, a mãe, o sobrinho do marido, a senhora de idade que vai lá a casa dar-lhe comida, mudar-lhe a fralda, ou um dos dois maridos que lhe suplica afecto. Ela nunca gostou mesmo de nenhum. Com um casou-se por interesse, era familiar do director do teatro, e o outro porque sim. “… de há tempos para cá, começo agora a notar, escapam-me episódios, pessoas, até o meu nome palavra…” E a memória recente a perder para a memória remota num jogo literário que se ajusta ao modo de escrita de Lobo Antunes, cada vez mais próximo do que parece ser a deriva da mente, ele que se diz na literatura uma espécie de mediador ou tradutor de vozes.
Esta mulher, como o homem doente, internado num hospital em Sôbolos Rios Que Vão (2010) é tudo o que temos, numa solidão em véspera de fim, perspectiva única ao contrário do que acontece, por exemplo, no monumental romance anterior, Da Natureza do Deuses (2015), onde em vez de uma voz interior existem várias que se cruzam e revelam o tal colectivo tão comum em Lobo Antunes: um país na sua história, com personagens tipo e modos de o verbalizar; e sempre a linguagem, mesmo quando já resta só silêncio, a dizer mais do que qualquer outra coisa sobre o que se é, o que se pensa, e sente e faz.
Sexo, outro por exemplo, de que se sabe porque há um crucifixo que abana no espaldar da cama. Ela nunca amou. A não ser o pai, que além de filhinha lhe chamava cotomiça. “… uma tarde encontrei o meu marido e simpatizámos, ao segundo ou terceiro encontro levou-me para casa dele, sentia-se sozinho, coitado conforme eu me sentia sozinha, passado tempos casámos e pronto, umas palavras, uns papéis, o foguete de um carimbo a estalar no fim, sem estrelinhas, só tinta…”
A doença avança e o tempo e os espaços encadeiam-se numa vertigem de sentidos. As pessoas de uma vida cruzam-se nas suas falas e sabemos de tudo por isso, pelo modo de dizer que confere identidade e que Lobo Antunes conhece e como ninguém nas suas nuances: a língua portuguesa nas suas múltiplas manifestações, apropriações de classe ou género, urbanas ou rurais. E diz-se que continua cada vez mais próximo da música, pelo modo como tudo soa, do que propriamente da literatura. Sem condescendência para com o leitor que se quiser o acompanha, se estiver para esse exercício de concentração profunda, onde a biografia do escritor aparece muito menos do que nos livros iniciais, mas a metáfora permanece crucial. Entra-se num livro de Lobo Antunes e reconhece-se o lugar onde se está mesmo sem ver a sua assinatura. Neste não é diferente. Há uma toada, ora harmoniosa ora obsessiva, disruptiva, tantas vezes. É uma memória a desfazer-se num livro divido num prólogo e três andamentos — terminologia musical — e uma espécie de dormência onde todas as associações são permitidas. Serve tão bem ao actual Lobo Antunes que explora mais uma vez os limites dessa semi-consciência onde parece situar-se ao escrever, e onde está a tal mão que o guia, como costuma repetir nas entrevistas.
Antunes escreve sempre contra Antunes, já se sublinhou em relação ao romance anterior. Há um livro e a comparação inevitável com os anteriores. Ele falha quando não se supera? Da Natureza dos Deuses foi um livro grande de Antunes. Ele sabe disso. Neste seguinte, confirma que continua a perseguir a perfeição e a retratar um modo de ser português — seja lá isso o que for, nem que seja só uma maneira de dizer — como nenhum outro escritor em português o faz. Também por isso é injusto dizer que não arrisca, que se limita a ir com a tal voz única que parece sempre a mesma, ainda que seja múltipla. Este não será o seu melhor romance, mas é mais um grande romance e se nem todos os leitores estão para Antunes, os que estão sabem nunca sair a perder.
por Isabel Lucas
em Público
23.11.2016
“Eu não tenho personagens”, afirmou António Lobo Antunes numa entrevista a este jornal [Público], em 2014, quando publicou Caminho Como uma Casa em Chamas, um romance centrado num prédio de Lisboa e nos seus habitantes. Podia-se acrescentar que também não tem enredos, ou que os livros têm cada vez menos aquilo a que se convenciona chamar uma acção, com princípio meio e fim. São antes deambulações acerca do que é a vida, íntima e de um colectivo, contadas a partir de uma voz interior, quase sempre errática, que recorre a outras vozes convocadas pela memória nas suas falhas ou momentos iluminados, e que preenchem um vazio que vai ganhado sentido(s). Não há início ou epílogo. Há um percurso que o leitor apanha num dado ponto e segue, tantas vezes tacteando, até ele se extinguir. O livro é o que fica entre esses dois momentos.Como este, o 27º romance de António Lobo Antunes. Para Aquela que Está Sentada no Escuro à Minha Espera acompanha um período que se adivinha derradeiro da memória doente, alterada e muito fragmentada, de uma mulher de 78 anos, ex-actriz com uma carreira mediana que passou a infância em Faro e se mudou para Lisboa porque queria trabalhar no teatro. O nome da doença nunca é revelado, mas é a doença que determina a forma e o conteúdo. “e que doença senhor doutor, nem sequer sou velha, aos setenta e oito anos ninguém é velho ainda, qual velha, sou uma actriz a descansar durante esta peça para, como diz o director do teatro, entrar na próxima num papel à minha medida…”
É esta a voz, a voz que profissionalmente decora outras vozes até esquecer a sua, a que o leitor tem acesso privilegiado. Frágil, mas o único meio para se situar num livro que se passa todo ele no espaço mais privado de uma mulher cuja identidade se vai revelando em espasmos à medida que essa identidade também se dilui. Ela é “Dona Celeste”, “filhinha”, “miúda”, mulher do tio, “minha senhora”. Depende do tempo cronológico ou do interlocutor. Se quem a chama ou se lhe dirige é o médico, o pai, a mãe, o sobrinho do marido, a senhora de idade que vai lá a casa dar-lhe comida, mudar-lhe a fralda, ou um dos dois maridos que lhe suplica afecto. Ela nunca gostou mesmo de nenhum. Com um casou-se por interesse, era familiar do director do teatro, e o outro porque sim. “… de há tempos para cá, começo agora a notar, escapam-me episódios, pessoas, até o meu nome palavra…” E a memória recente a perder para a memória remota num jogo literário que se ajusta ao modo de escrita de Lobo Antunes, cada vez mais próximo do que parece ser a deriva da mente, ele que se diz na literatura uma espécie de mediador ou tradutor de vozes.
Esta mulher, como o homem doente, internado num hospital em Sôbolos Rios Que Vão (2010) é tudo o que temos, numa solidão em véspera de fim, perspectiva única ao contrário do que acontece, por exemplo, no monumental romance anterior, Da Natureza do Deuses (2015), onde em vez de uma voz interior existem várias que se cruzam e revelam o tal colectivo tão comum em Lobo Antunes: um país na sua história, com personagens tipo e modos de o verbalizar; e sempre a linguagem, mesmo quando já resta só silêncio, a dizer mais do que qualquer outra coisa sobre o que se é, o que se pensa, e sente e faz.
Sexo, outro por exemplo, de que se sabe porque há um crucifixo que abana no espaldar da cama. Ela nunca amou. A não ser o pai, que além de filhinha lhe chamava cotomiça. “… uma tarde encontrei o meu marido e simpatizámos, ao segundo ou terceiro encontro levou-me para casa dele, sentia-se sozinho, coitado conforme eu me sentia sozinha, passado tempos casámos e pronto, umas palavras, uns papéis, o foguete de um carimbo a estalar no fim, sem estrelinhas, só tinta…”
A doença avança e o tempo e os espaços encadeiam-se numa vertigem de sentidos. As pessoas de uma vida cruzam-se nas suas falas e sabemos de tudo por isso, pelo modo de dizer que confere identidade e que Lobo Antunes conhece e como ninguém nas suas nuances: a língua portuguesa nas suas múltiplas manifestações, apropriações de classe ou género, urbanas ou rurais. E diz-se que continua cada vez mais próximo da música, pelo modo como tudo soa, do que propriamente da literatura. Sem condescendência para com o leitor que se quiser o acompanha, se estiver para esse exercício de concentração profunda, onde a biografia do escritor aparece muito menos do que nos livros iniciais, mas a metáfora permanece crucial. Entra-se num livro de Lobo Antunes e reconhece-se o lugar onde se está mesmo sem ver a sua assinatura. Neste não é diferente. Há uma toada, ora harmoniosa ora obsessiva, disruptiva, tantas vezes. É uma memória a desfazer-se num livro divido num prólogo e três andamentos — terminologia musical — e uma espécie de dormência onde todas as associações são permitidas. Serve tão bem ao actual Lobo Antunes que explora mais uma vez os limites dessa semi-consciência onde parece situar-se ao escrever, e onde está a tal mão que o guia, como costuma repetir nas entrevistas.
Antunes escreve sempre contra Antunes, já se sublinhou em relação ao romance anterior. Há um livro e a comparação inevitável com os anteriores. Ele falha quando não se supera? Da Natureza dos Deuses foi um livro grande de Antunes. Ele sabe disso. Neste seguinte, confirma que continua a perseguir a perfeição e a retratar um modo de ser português — seja lá isso o que for, nem que seja só uma maneira de dizer — como nenhum outro escritor em português o faz. Também por isso é injusto dizer que não arrisca, que se limita a ir com a tal voz única que parece sempre a mesma, ainda que seja múltipla. Este não será o seu melhor romance, mas é mais um grande romance e se nem todos os leitores estão para Antunes, os que estão sabem nunca sair a perder.
por Isabel Lucas
em Público
23.11.2016
Published on November 24, 2016 12:40
Crítica de Isabel Lucas a Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera
Quando já se perdeu o nome
“Eu não tenho personagens”, afirmou António Lobo Antunes numa entrevista a este jornal [Público], em 2014, quando publicou Caminho Como uma Casa em Chamas, um romance centrado num prédio de Lisboa e nos seus habitantes. Podia-se acrescentar que também não tem enredos, ou que os livros têm cada vez menos aquilo a que se convenciona chamar uma acção, com princípio meio e fim. São antes deambulações acerca do que é a vida, íntima e de um colectivo, contadas a partir de uma voz interior, quase sempre errática, que recorre a outras vozes convocadas pela memória nas suas falhas ou momentos iluminados, e que preenchem um vazio que vai ganhado sentido(s). Não há início ou epílogo. Há um percurso que o leitor apanha num dado ponto e segue, tantas vezes tacteando, até ele se extinguir. O livro é o que fica entre esses dois momentos.
Como este, o 27º romance de António Lobo Antunes. Para Aquela que Está Sentada no Escuro à Minha Espera acompanha um período que se adivinha derradeiro da memória doente, alterada e muito fragmentada, de uma mulher de 78 anos, ex-actriz com uma carreira mediana que passou a infância em Faro e se mudou para Lisboa porque queria trabalhar no teatro. O nome da doença nunca é revelado, mas é a doença que determina a forma e o conteúdo. “e que doença senhor doutor, nem sequer sou velha, aos setenta e oito anos ninguém é velho ainda, qual velha, sou uma actriz a descansar durante esta peça para, como diz o director do teatro, entrar na próxima num papel à minha medida…”
É esta a voz, a voz que profissionalmente decora outras vozes até esquecer a sua, a que o leitor tem acesso privilegiado. Frágil, mas o único meio para se situar num livro que se passa todo ele no espaço mais privado de uma mulher cuja identidade se vai revelando em espasmos à medida que essa identidade também se dilui. Ela é “Dona Celeste”, “filhinha”, “miúda”, mulher do tio, “minha senhora”. Depende do tempo cronológico ou do interlocutor. Se quem a chama ou se lhe dirige é o médico, o pai, a mãe, o sobrinho do marido, a senhora de idade que vai lá a casa dar-lhe comida, mudar-lhe a fralda, ou um dos dois maridos que lhe suplica afecto. Ela nunca gostou mesmo de nenhum. Com um casou-se por interesse, era familiar do director do teatro, e o outro porque sim. “… de há tempos para cá, começo agora a notar, escapam-me episódios, pessoas, até o meu nome palavra…” E a memória recente a perder para a memória remota num jogo literário que se ajusta ao modo de escrita de Lobo Antunes, cada vez mais próximo do que parece ser a deriva da mente, ele que se diz na literatura uma espécie de mediador ou tradutor de vozes.
Esta mulher, como o homem doente, internado num hospital em Sôbolos Rios Que Vão (2010) é tudo o que temos, numa solidão em véspera de fim, perspectiva única ao contrário do que acontece, por exemplo, no monumental romance anterior, Da Natureza do Deuses (2015), onde em vez de uma voz interior existem várias que se cruzam e revelam o tal colectivo tão comum em Lobo Antunes: um país na sua história, com personagens tipo e modos de o verbalizar; e sempre a linguagem, mesmo quando já resta só silêncio, a dizer mais do que qualquer outra coisa sobre o que se é, o que se pensa, e sente e faz.
Sexo, outro por exemplo, de que se sabe porque há um crucifixo que abana no espaldar da cama. Ela nunca amou. A não ser o pai, que além de filhinha lhe chamava cotomiça. “… uma tarde encontrei o meu marido e simpatizámos, ao segundo ou terceiro encontro levou-me para casa dele, sentia-se sozinho, coitado conforme eu me sentia sozinha, passado tempos casámos e pronto, umas palavras, uns papéis, o foguete de um carimbo a estalar no fim, sem estrelinhas, só tinta…”
A doença avança e o tempo e os espaços encadeiam-se numa vertigem de sentidos. As pessoas de uma vida cruzam-se nas suas falas e sabemos de tudo por isso, pelo modo de dizer que confere identidade e que Lobo Antunes conhece e como ninguém nas suas nuances: a língua portuguesa nas suas múltiplas manifestações, apropriações de classe ou género, urbanas ou rurais. E diz-se que continua cada vez mais próximo da música, pelo modo como tudo soa, do que propriamente da literatura. Sem condescendência para com o leitor que se quiser o acompanha, se estiver para esse exercício de concentração profunda, onde a biografia do escritor aparece muito menos do que nos livros iniciais, mas a metáfora permanece crucial. Entra-se num livro de Lobo Antunes e reconhece-se o lugar onde se está mesmo sem ver a sua assinatura. Neste não é diferente. Há uma toada, ora harmoniosa ora obsessiva, disruptiva, tantas vezes. É uma memória a desfazer-se num livro divido num prólogo e três andamentos — terminologia musical — e uma espécie de dormência onde todas as associações são permitidas. Serve tão bem ao actual Lobo Antunes que explora mais uma vez os limites dessa semi-consciência onde parece situar-se ao escrever, e onde está a tal mão que o guia, como costuma repetir nas entrevistas.
Antunes escreve sempre contra Antunes, já se sublinhou em relação ao romance anterior. Há um livro e a comparação inevitável com os anteriores. Ele falha quando não se supera? Da Natureza dos Deuses foi um livro grande de Antunes. Ele sabe disso. Neste seguinte, confirma que continua a perseguir a perfeição e a retratar um modo de ser português — seja lá isso o que for, nem que seja só uma maneira de dizer — como nenhum outro escritor em português o faz. Também por isso é injusto dizer que não arrisca, que se limita a ir com a tal voz única que parece sempre a mesma, ainda que seja múltipla. Este não será o seu melhor romance, mas é mais um grande romance e se nem todos os leitores estão para Antunes, os que estão sabem nunca sair a perder.
por Isabel Lucas
em Público
23.11.2016
“Eu não tenho personagens”, afirmou António Lobo Antunes numa entrevista a este jornal [Público], em 2014, quando publicou Caminho Como uma Casa em Chamas, um romance centrado num prédio de Lisboa e nos seus habitantes. Podia-se acrescentar que também não tem enredos, ou que os livros têm cada vez menos aquilo a que se convenciona chamar uma acção, com princípio meio e fim. São antes deambulações acerca do que é a vida, íntima e de um colectivo, contadas a partir de uma voz interior, quase sempre errática, que recorre a outras vozes convocadas pela memória nas suas falhas ou momentos iluminados, e que preenchem um vazio que vai ganhado sentido(s). Não há início ou epílogo. Há um percurso que o leitor apanha num dado ponto e segue, tantas vezes tacteando, até ele se extinguir. O livro é o que fica entre esses dois momentos.Como este, o 27º romance de António Lobo Antunes. Para Aquela que Está Sentada no Escuro à Minha Espera acompanha um período que se adivinha derradeiro da memória doente, alterada e muito fragmentada, de uma mulher de 78 anos, ex-actriz com uma carreira mediana que passou a infância em Faro e se mudou para Lisboa porque queria trabalhar no teatro. O nome da doença nunca é revelado, mas é a doença que determina a forma e o conteúdo. “e que doença senhor doutor, nem sequer sou velha, aos setenta e oito anos ninguém é velho ainda, qual velha, sou uma actriz a descansar durante esta peça para, como diz o director do teatro, entrar na próxima num papel à minha medida…”
É esta a voz, a voz que profissionalmente decora outras vozes até esquecer a sua, a que o leitor tem acesso privilegiado. Frágil, mas o único meio para se situar num livro que se passa todo ele no espaço mais privado de uma mulher cuja identidade se vai revelando em espasmos à medida que essa identidade também se dilui. Ela é “Dona Celeste”, “filhinha”, “miúda”, mulher do tio, “minha senhora”. Depende do tempo cronológico ou do interlocutor. Se quem a chama ou se lhe dirige é o médico, o pai, a mãe, o sobrinho do marido, a senhora de idade que vai lá a casa dar-lhe comida, mudar-lhe a fralda, ou um dos dois maridos que lhe suplica afecto. Ela nunca gostou mesmo de nenhum. Com um casou-se por interesse, era familiar do director do teatro, e o outro porque sim. “… de há tempos para cá, começo agora a notar, escapam-me episódios, pessoas, até o meu nome palavra…” E a memória recente a perder para a memória remota num jogo literário que se ajusta ao modo de escrita de Lobo Antunes, cada vez mais próximo do que parece ser a deriva da mente, ele que se diz na literatura uma espécie de mediador ou tradutor de vozes.
Esta mulher, como o homem doente, internado num hospital em Sôbolos Rios Que Vão (2010) é tudo o que temos, numa solidão em véspera de fim, perspectiva única ao contrário do que acontece, por exemplo, no monumental romance anterior, Da Natureza do Deuses (2015), onde em vez de uma voz interior existem várias que se cruzam e revelam o tal colectivo tão comum em Lobo Antunes: um país na sua história, com personagens tipo e modos de o verbalizar; e sempre a linguagem, mesmo quando já resta só silêncio, a dizer mais do que qualquer outra coisa sobre o que se é, o que se pensa, e sente e faz.
Sexo, outro por exemplo, de que se sabe porque há um crucifixo que abana no espaldar da cama. Ela nunca amou. A não ser o pai, que além de filhinha lhe chamava cotomiça. “… uma tarde encontrei o meu marido e simpatizámos, ao segundo ou terceiro encontro levou-me para casa dele, sentia-se sozinho, coitado conforme eu me sentia sozinha, passado tempos casámos e pronto, umas palavras, uns papéis, o foguete de um carimbo a estalar no fim, sem estrelinhas, só tinta…”
A doença avança e o tempo e os espaços encadeiam-se numa vertigem de sentidos. As pessoas de uma vida cruzam-se nas suas falas e sabemos de tudo por isso, pelo modo de dizer que confere identidade e que Lobo Antunes conhece e como ninguém nas suas nuances: a língua portuguesa nas suas múltiplas manifestações, apropriações de classe ou género, urbanas ou rurais. E diz-se que continua cada vez mais próximo da música, pelo modo como tudo soa, do que propriamente da literatura. Sem condescendência para com o leitor que se quiser o acompanha, se estiver para esse exercício de concentração profunda, onde a biografia do escritor aparece muito menos do que nos livros iniciais, mas a metáfora permanece crucial. Entra-se num livro de Lobo Antunes e reconhece-se o lugar onde se está mesmo sem ver a sua assinatura. Neste não é diferente. Há uma toada, ora harmoniosa ora obsessiva, disruptiva, tantas vezes. É uma memória a desfazer-se num livro divido num prólogo e três andamentos — terminologia musical — e uma espécie de dormência onde todas as associações são permitidas. Serve tão bem ao actual Lobo Antunes que explora mais uma vez os limites dessa semi-consciência onde parece situar-se ao escrever, e onde está a tal mão que o guia, como costuma repetir nas entrevistas.
Antunes escreve sempre contra Antunes, já se sublinhou em relação ao romance anterior. Há um livro e a comparação inevitável com os anteriores. Ele falha quando não se supera? Da Natureza dos Deuses foi um livro grande de Antunes. Ele sabe disso. Neste seguinte, confirma que continua a perseguir a perfeição e a retratar um modo de ser português — seja lá isso o que for, nem que seja só uma maneira de dizer — como nenhum outro escritor em português o faz. Também por isso é injusto dizer que não arrisca, que se limita a ir com a tal voz única que parece sempre a mesma, ainda que seja múltipla. Este não será o seu melhor romance, mas é mais um grande romance e se nem todos os leitores estão para Antunes, os que estão sabem nunca sair a perder.
por Isabel Lucas
em Público
23.11.2016
Published on November 24, 2016 05:05
November 22, 2016
Melina Balcazar Moreno sobre Da Natureza Dos Deuses
António Lobo Antunes ou o núcleo das trevas
«O mundo foi feito ao contrário», proferiu um dia um velho, num hospital psiquiátrico, a António Lobo Antunes. Um homem a quem «os médicos chamavam esquizofrénico» e que, atormentado por tais palavras que o torturavam, ofereceu ao jovem escritor a mais simples lição de escrita de sempre: não se pode escrever senão a partir do que antecede as palavras. Ou seja, as emoções, as pulsões que lhe conferem forma e, ao mesmo tempo, deformam a memória. Assim, em «Receita para me lerem: «as palavras não passam de signos das nossas emoções, e as personagens, as situações, e as intrigas, pretextos aparentes para atingir o avesso escondido da alma. A verdadeira aventura que persigo é a de que narrador e leitor partilhem as entranhas do inconsciente, sede da alma humana» (Livre des chroniques III *). Uma vez que, e tal como Lobo Antunes faz questão de nos lembrar, não há nada de mais contigente, mais imprevisível, que o passado.
Em Da Natureza Dos Deuses , o seu último romance – ou talvez devessemos antes dizer um longo poema, já que a fronteira entre os géneros parece tão frágil –, o escritor aborda o destino de uma importante família portuguesa, com fortes ligações ao poder e ao dinheiro. Uma história repleta de incertezas, lacunas, de sombras, contada de modo fragmentário por um cruzamento de vozes, tempos e de níveis de consciência. O leitor vê-se, por conseguinte, confrontado com frases sincopadas, marcadas pela ausência de vírgula ou de maiúscula, arrastado por esta sucessão de vozes, atormentadas por outras vozes, que se interrompem e permanecem frequentemente em suspensão. Estes monólogos tendem, todavia, a dirigir-se à figura de um homem, que nunca será designado senão por «senhor doutor», detendo, porém, um poder de decisão sobre a sua vida, quer na qualidade de patrão, dono, marido, amante ou pai. Aliás, o próprio Senhor acabará, por sua vez, por tomar a palavra, deixando emergir a sua própria angústia perante a solidão e a morte: «se para além dos bancos tivesse também o domínio sobre a vida das pessoas, proibi-las-ía de morrer». Mais do que uma reflexão sobre os mecanismos do poder, Lobo Antunes explora [neste romance] de forma magistral o seu avesso, a sua fragilidade, até mesmo a sua impotência.
Sobre a infância e o medo do escuro
A escrita de Lobo Antunes procura, pois, situar-se para além da narrativa, para se concentrar no modo como as recordações, em particular as da infância, se apoderam do presente, a ponto de o fazer vacilar. «veja um pouco o poder que a infância tem, esconde-se [aninha-se] nas nossas entranhas e, sem que estejamos à espera, paf, ela [a infância] renasce». Da Natureza Dos Deuses apresenta-se, assim, como «um espelho no qual nos vimos [reflectidos] tal qual somos, nus e sem defesa». É sem sombra de dúvida o desafio mais importante lançado por este romance ao leitor, que se encontra incessantemente confrontado com as suas lembranças, com o seu (próprio) «núcleo de trevas», com a sua solidão: o que se encontra no âmago das personages, no centro da sua fala, é evidentemente o ferrete que a infância neles deixou e que se prolonga pela sua vida adulta. Apesar dos conflitos e da violência patente nos seus relacionamentos, a hierarquia que rege a sua existência, esta infância continua a fermentar, a amadurecer, acabando mesmo por juntá-los. As alegrias e as feridas da infância emergem e minam silenciosamente o papel que (eles) desempenham nas representações sociais. É o caso do senhor doutor que, na intimidade, com a sua mulher, torna-se uma criança:
O poder do sofrimento da infância e o medo do escuro é com efeito imenso. Toma de assalto o sujeito, fazendo-o regredir à vulnerabilidade própria desta idade: crianças submetidas ao domínio dos adultos, vítimas da sua indiferença, da sua violência, testemunhas silenciosas dos seus fracassos.
A infância tem também uma ligação única com a linguagem, que actua em profundidade com a questão da rememoração de que são feitas as personagens. São palavras que se «colam à pele, que se entranham e que nunca mais vos largam», como aquela que o pai do senhor doutor lhe dirigia, «sevandija», e a que regressa incessantemente, pontuando a injustiça e a violência dos seus actos, cometidos apesar dele, como se nada mais fizesse que submeter-se, de algum modo, à infâmia do mundo.
Da ferida secreta de todo o ser
Por ocasião de uma entrevista, António Lobo Antunes evoca um diálogo na obra de Dickens que lhe terá provocado uma forte impressão: um homem pergunta à sua mãe moribunda, «tens dores mamã?»; ao que ela responde: «tenho a impressão de que há uma dor no quarto, mas não sei se sou eu que a sinto». O mesmo parece ser uma das questões principais que atravessa este romance. A quem pertence, afinal, a dor que se sente? Porquanto se trata de uma dor que ultrapassa o sujeito, uma dor que se estende aos lugares, aos animais, e cuja presença se encontra tão impressa ao longo do livro: “há bestas que choram imenso, estilhaçam-se provocando o mesmo barulho que as pedras, agonizam em silêncio”. Homens, animais, crianças se parecem assim pela sua vulnerabilidade, pelo abandono e indiferença a que estão sujeitos: “a gaivota na estrada sem uma alma que a salve”.
Os fluxos de falas das personagens cristalizam-se então à volta de um núcleo de sofrimento, cuja origem remonta a um tempo ancestral que poderíamos descrever, com Georges Didi-Huberman, enquanto «jogo impuro, tenso, este debate das latências e das violências» que mina desde o interior a tirania da ordem social. E é sem dúvida o que a figura silenciosa, mais persistente, do sem abrigo que atravessa as narrativas das personagens e tenta fazer-nos compreender. Parece lembrar-nos esta solidão, esta lassidão originárias que, a exemplo dessas vozes do romance, tentamos ocultar por falsas aparências: «não poderia tocar no sem abrigo se por ventura ele tivesse passado diante de mim, nem verificar se era un anjo como o Senhor o havia sugerido uma vez, examinando as suas costas à procura de asas ainda que nunca se aproximasse de quem quer que fosse, desviava-se sempre, da mesma maneira que Deus nunca junto de mim em nenhum momento da minha vida, eis outro de quem me pergunto o que Lhe fiz para que se esteja a lixar para mim a este ponto»
Que permanece pois neste mundo abadonado pelos deuses?
Permanece, apesar de tudo, este livro, que nos é aconselhado, entretanto, a deitar fora, de o «atirar para o caixote do lixo», uma vez que foi obscurecido pela «sombra do voo dos pássaros lá fora». É certamente uma grande lição de trevas que Lobo Antunes nos oferece aqui, neste romance, e que finalmente nos deixa escutar o rumor dos mortos.
por Melina Balcazar Morenoem Diacritik16.06.2016
[traduzido do francês por Olga Maria Carvalho Santos Fonseca; revisão por José Alexandre Ramos]
Notas da tradução:* refere-se ao terceiro volume de crónicas publicado em França pela Christian Bourgois, cuja compilação de textos não corresponde ao volume Terceiro Livro de Crónicas editado pela Dom Quixote em Portugal.** os excertos de De la nature des dieux utilizados pela autora foram traduzidos para português a partir do artigo original, por si citados da versão em francês do livro Da Natureza Dos Deuses.
«O mundo foi feito ao contrário», proferiu um dia um velho, num hospital psiquiátrico, a António Lobo Antunes. Um homem a quem «os médicos chamavam esquizofrénico» e que, atormentado por tais palavras que o torturavam, ofereceu ao jovem escritor a mais simples lição de escrita de sempre: não se pode escrever senão a partir do que antecede as palavras. Ou seja, as emoções, as pulsões que lhe conferem forma e, ao mesmo tempo, deformam a memória. Assim, em «Receita para me lerem: «as palavras não passam de signos das nossas emoções, e as personagens, as situações, e as intrigas, pretextos aparentes para atingir o avesso escondido da alma. A verdadeira aventura que persigo é a de que narrador e leitor partilhem as entranhas do inconsciente, sede da alma humana» (Livre des chroniques III *). Uma vez que, e tal como Lobo Antunes faz questão de nos lembrar, não há nada de mais contigente, mais imprevisível, que o passado.Em Da Natureza Dos Deuses , o seu último romance – ou talvez devessemos antes dizer um longo poema, já que a fronteira entre os géneros parece tão frágil –, o escritor aborda o destino de uma importante família portuguesa, com fortes ligações ao poder e ao dinheiro. Uma história repleta de incertezas, lacunas, de sombras, contada de modo fragmentário por um cruzamento de vozes, tempos e de níveis de consciência. O leitor vê-se, por conseguinte, confrontado com frases sincopadas, marcadas pela ausência de vírgula ou de maiúscula, arrastado por esta sucessão de vozes, atormentadas por outras vozes, que se interrompem e permanecem frequentemente em suspensão. Estes monólogos tendem, todavia, a dirigir-se à figura de um homem, que nunca será designado senão por «senhor doutor», detendo, porém, um poder de decisão sobre a sua vida, quer na qualidade de patrão, dono, marido, amante ou pai. Aliás, o próprio Senhor acabará, por sua vez, por tomar a palavra, deixando emergir a sua própria angústia perante a solidão e a morte: «se para além dos bancos tivesse também o domínio sobre a vida das pessoas, proibi-las-ía de morrer». Mais do que uma reflexão sobre os mecanismos do poder, Lobo Antunes explora [neste romance] de forma magistral o seu avesso, a sua fragilidade, até mesmo a sua impotência.
Sobre a infância e o medo do escuro
A escrita de Lobo Antunes procura, pois, situar-se para além da narrativa, para se concentrar no modo como as recordações, em particular as da infância, se apoderam do presente, a ponto de o fazer vacilar. «veja um pouco o poder que a infância tem, esconde-se [aninha-se] nas nossas entranhas e, sem que estejamos à espera, paf, ela [a infância] renasce». Da Natureza Dos Deuses apresenta-se, assim, como «um espelho no qual nos vimos [reflectidos] tal qual somos, nus e sem defesa». É sem sombra de dúvida o desafio mais importante lançado por este romance ao leitor, que se encontra incessantemente confrontado com as suas lembranças, com o seu (próprio) «núcleo de trevas», com a sua solidão: o que se encontra no âmago das personages, no centro da sua fala, é evidentemente o ferrete que a infância neles deixou e que se prolonga pela sua vida adulta. Apesar dos conflitos e da violência patente nos seus relacionamentos, a hierarquia que rege a sua existência, esta infância continua a fermentar, a amadurecer, acabando mesmo por juntá-los. As alegrias e as feridas da infância emergem e minam silenciosamente o papel que (eles) desempenham nas representações sociais. É o caso do senhor doutor que, na intimidade, com a sua mulher, torna-se uma criança:
«despindo-se no extremo oposto do quarto e eu surpreendida com homens assim, não os imaginava a esse ponto sem defesa, julgava-os mais fortes e dei-me então conta que não é connosco que eles estão, é com a Infância que eles estiveram, deitados ao meu lado não ousando tocar-me
— Não vais fazer- me mal pois não ?
sou tão pequenino, protege-me, cuida de mim, o meu marido, proprietário de bancos, de sociedades, de toas as empresas do mundo
— Não cresci
[…] e o meu marido a pouco e pouco meu marido à medida que se vestia, quando apertou [o nó] da sua gravata autoritário, feroz» **
O poder do sofrimento da infância e o medo do escuro é com efeito imenso. Toma de assalto o sujeito, fazendo-o regredir à vulnerabilidade própria desta idade: crianças submetidas ao domínio dos adultos, vítimas da sua indiferença, da sua violência, testemunhas silenciosas dos seus fracassos.
A infância tem também uma ligação única com a linguagem, que actua em profundidade com a questão da rememoração de que são feitas as personagens. São palavras que se «colam à pele, que se entranham e que nunca mais vos largam», como aquela que o pai do senhor doutor lhe dirigia, «sevandija», e a que regressa incessantemente, pontuando a injustiça e a violência dos seus actos, cometidos apesar dele, como se nada mais fizesse que submeter-se, de algum modo, à infâmia do mundo.
Da ferida secreta de todo o ser
Por ocasião de uma entrevista, António Lobo Antunes evoca um diálogo na obra de Dickens que lhe terá provocado uma forte impressão: um homem pergunta à sua mãe moribunda, «tens dores mamã?»; ao que ela responde: «tenho a impressão de que há uma dor no quarto, mas não sei se sou eu que a sinto». O mesmo parece ser uma das questões principais que atravessa este romance. A quem pertence, afinal, a dor que se sente? Porquanto se trata de uma dor que ultrapassa o sujeito, uma dor que se estende aos lugares, aos animais, e cuja presença se encontra tão impressa ao longo do livro: “há bestas que choram imenso, estilhaçam-se provocando o mesmo barulho que as pedras, agonizam em silêncio”. Homens, animais, crianças se parecem assim pela sua vulnerabilidade, pelo abandono e indiferença a que estão sujeitos: “a gaivota na estrada sem uma alma que a salve”.
Os fluxos de falas das personagens cristalizam-se então à volta de um núcleo de sofrimento, cuja origem remonta a um tempo ancestral que poderíamos descrever, com Georges Didi-Huberman, enquanto «jogo impuro, tenso, este debate das latências e das violências» que mina desde o interior a tirania da ordem social. E é sem dúvida o que a figura silenciosa, mais persistente, do sem abrigo que atravessa as narrativas das personagens e tenta fazer-nos compreender. Parece lembrar-nos esta solidão, esta lassidão originárias que, a exemplo dessas vozes do romance, tentamos ocultar por falsas aparências: «não poderia tocar no sem abrigo se por ventura ele tivesse passado diante de mim, nem verificar se era un anjo como o Senhor o havia sugerido uma vez, examinando as suas costas à procura de asas ainda que nunca se aproximasse de quem quer que fosse, desviava-se sempre, da mesma maneira que Deus nunca junto de mim em nenhum momento da minha vida, eis outro de quem me pergunto o que Lhe fiz para que se esteja a lixar para mim a este ponto»
Que permanece pois neste mundo abadonado pelos deuses?
Permanece, apesar de tudo, este livro, que nos é aconselhado, entretanto, a deitar fora, de o «atirar para o caixote do lixo», uma vez que foi obscurecido pela «sombra do voo dos pássaros lá fora». É certamente uma grande lição de trevas que Lobo Antunes nos oferece aqui, neste romance, e que finalmente nos deixa escutar o rumor dos mortos.
por Melina Balcazar Morenoem Diacritik16.06.2016
[traduzido do francês por Olga Maria Carvalho Santos Fonseca; revisão por José Alexandre Ramos]
Notas da tradução:* refere-se ao terceiro volume de crónicas publicado em França pela Christian Bourgois, cuja compilação de textos não corresponde ao volume Terceiro Livro de Crónicas editado pela Dom Quixote em Portugal.** os excertos de De la nature des dieux utilizados pela autora foram traduzidos para português a partir do artigo original, por si citados da versão em francês do livro Da Natureza Dos Deuses.
Published on November 22, 2016 13:52
Melina Balcazar Moreno sobre Da Natureza Dos Deuses
António Lobo Antunes ou o núcleo das trevas
«O mundo foi feito ao contrário», proferiu um dia um velho, num hospital psiquiátrico, a António Lobo Antunes. Um homem a quem «os médicos chamavam «esquizofrénico» e que, atormentado por tais palavras que o torturavam, ofereceu ao jovem escritor a mais simples lição de escrita de sempre: não se pode escrever senão a partir do que antecede as palavras. Ou seja, as emoções, as pulsões que lhe conferem forma e, ao mesmo tempo, deformam a memória. Assim, em «Receita para me lerem: «as palavras não passam de signos das nossas emoções, e as personagens, as situações, e as intrigas, pretextos aparentes para atingir o avesso escondido da alma. A verdadeira aventura que persigo é a de que narrador e leitor partilhem as entranhas do inconsciente, sede da alma humana» (Livre de chroniques III *). Uma vez que, e tal como Lobo Antunes faz questão de nos lembrar, não há nada de mais contingente, mais imprevisível, que o passado.
Em Da Natureza Dos Deuses , o seu último romance – ou talvez devêssemos antes dizer um longo poema, já que a fronteira entre os géneros parece tão frágil –, o escritor aborda o destino de uma importante família portuguesa, com fortes ligações ao poder e ao dinheiro. Uma história repleta de incertezas, lacunas, de sombras, contada de modo fragmentário por um cruzamento de vozes, tempos e de níveis de consciência. O leitor vê-se, por conseguinte, confrontado com frases sincopadas, marcadas pela ausência de vírgula ou de maiúscula, arrastado por esta sucessão de vozes, atormentadas por outras vozes, que se interrompem e permanecem frequentemente em suspensão. Estes monólogos tendem, todavia, a dirigir-se à figura de um homem, que nunca será designado senão por «senhor doutor», detendo, porém, um poder de decisão sobre a sua vida, quer na qualidade de patrão, dono, marido, amante ou pai. Aliás, o próprio Senhor acabará, por sua vez, por tomar a palavra, deixando emergir a sua própria angústia perante a solidão e a morte: «se além dos bancos mandasse na vida das pessoas proibia-as de morrer». Mais do que uma reflexão sobre os mecanismos do poder, Lobo Antunes explora [neste romance] de forma magistral o seu avesso, a sua fragilidade, até mesmo a sua impotência.
Sobre a infância e o medo do escuro
A escrita de Lobo Antunes procura, pois, situar-se para além da narrativa, para se concentrar no modo como as recordações, em particular as da infância, se apoderam do presente, a ponto de o fazer vacilar. «veja-se o poder que a infância tem, enfia-se no interior da gente e, sem que se espere, zás, salta». Da Natureza Dos Deuses apresenta-se, assim, como «um espelho no qual nos vimos [reflectidos] tal qual somos, nus e sem defesa». É sem sombra de dúvida o desafio mais importante lançado por este romance ao leitor, que se encontra incessantemente confrontado com as suas lembranças, com o seu (próprio) «núcleo de trevas», com a sua solidão: o que se encontra no âmago das personagens, no centro da sua fala, é evidentemente o ferrete que a infância neles deixou e que se prolonga pela sua vida adulta. Apesar dos conflitos e da violência patente nos seus relacionamentos, a hierarquia que rege a sua existência, esta infância continua a fermentar, a amadurecer, acabando mesmo por juntá-los. As alegrias e as feridas da infância emergem e minam silenciosamente o papel que (eles) desempenham nas representações sociais. É o caso do senhor doutor que, na intimidade, com a sua mulher, torna-se uma criança:
O poder do sofrimento da infância e o medo do escuro é com efeito imenso. Toma de assalto o sujeito, fazendo-o regredir à vulnerabilidade própria desta idade: crianças submetidas ao domínio dos adultos, vítimas da sua indiferença, da sua violência, testemunhas silenciosas dos seus fracassos.
A infância tem também uma ligação única com a linguagem, que actua em profundidade com a questão da rememoração de que são feitas as personagens. São palavras que se «pegam, entranham-se, não nos deixam jamais», como aquela que o pai do senhor doutor lhe dirigia, «sevandija», e a que regressa incessantemente, pontuando a injustiça e a violência dos seus actos, cometidos apesar dele, como se nada mais fizesse que submeter-se, de algum modo, à infâmia do mundo.
Da ferida secreta de todo o ser
Por ocasião de uma entrevista, António Lobo Antunes evoca um diálogo na obra de Dickens que lhe terá provocado uma forte impressão: um homem pergunta à sua mãe moribunda, «tens dores mamã?»; ao que ela responde: «tenho a impressão de que há uma dor no quarto, mas não sei se sou eu que a sinto». O mesmo parece ser uma das questões principais que atravessa este romance. A quem pertence, afinal, a dor que se sente? Porquanto se trata de uma dor que ultrapassa o sujeito, uma dor que se estende aos lugares, aos animais, e cuja presença se encontra tão impressa ao longo do livro: “muito choram alguns bichos, quebram-se no mesmo ruído do que as pedras, agonizam calados”. Homens, animais, crianças se parecem assim pela sua vulnerabilidade, pelo abandono e indiferença a que estão sujeitos: “a gaivota na estrada sem uma alma que a salvasse”.
Os fluxos de falas das personagens cristalizam-se então à volta de um núcleo de sofrimento, cuja origem remonta a um tempo ancestral que poderíamos descrever, com Georges Didi-Huberman, enquanto «jogo impuro, tenso, este debate das latências e das violências» que mina desde o interior a tirania da ordem social. E é sem dúvida o que a figura silenciosa, mais persistente, do sem abrigo que atravessa as narrativas das personagens e tenta fazer-nos compreender. Parece lembrar-nos esta solidão, esta lassidão originárias que, a exemplo dessas vozes do romance, tentamos ocultar por falsas aparências: «não podia tocar no sem abrigo no caso de ele passar por mim e verificar se era um anjo conforme o senhor doutor sugeriu uma vez, examinando-lhe as costas à procura de asas apesar de ele nunca próximo de ninguém, desviava-se sempre, da mesma forma que Deus nunca perto de mim em nenhuma época da vida, ora aí está outro que não calculo o que Lhe fiz para não me ligar».
Que permanece pois neste mundo abandonado pelos deuses?
Permanece, apesar de tudo, este livro, que nos é aconselhado, entretanto, a deitar fora: «larguem o livro no lixo já que a sombra do voo dos pássaros lá fora escureceu as páginas». É certamente uma grande lição de trevas que Lobo Antunes nos oferece aqui, neste romance, e que finalmente nos deixa escutar o rumor dos mortos.
por Melina Balcazar Morenoem Diacritik16.06.2016
tradução do francês por Olga Maria Carvalho Santos Fonseca revista por Dominique Nédellec
texto final traduzido revisto por José Alexandre Ramos
Nota da tradução:* refere-se ao terceiro volume de crónicas publicado em França pela Christian Bourgois (Livre de chroniques III, traduzido por Carlos Batista), cuja compilação de textos não corresponde ao volume Terceiro Livro de Crónicas editado pela Dom Quixote em Portugal.
«O mundo foi feito ao contrário», proferiu um dia um velho, num hospital psiquiátrico, a António Lobo Antunes. Um homem a quem «os médicos chamavam «esquizofrénico» e que, atormentado por tais palavras que o torturavam, ofereceu ao jovem escritor a mais simples lição de escrita de sempre: não se pode escrever senão a partir do que antecede as palavras. Ou seja, as emoções, as pulsões que lhe conferem forma e, ao mesmo tempo, deformam a memória. Assim, em «Receita para me lerem: «as palavras não passam de signos das nossas emoções, e as personagens, as situações, e as intrigas, pretextos aparentes para atingir o avesso escondido da alma. A verdadeira aventura que persigo é a de que narrador e leitor partilhem as entranhas do inconsciente, sede da alma humana» (Livre de chroniques III *). Uma vez que, e tal como Lobo Antunes faz questão de nos lembrar, não há nada de mais contingente, mais imprevisível, que o passado.Em Da Natureza Dos Deuses , o seu último romance – ou talvez devêssemos antes dizer um longo poema, já que a fronteira entre os géneros parece tão frágil –, o escritor aborda o destino de uma importante família portuguesa, com fortes ligações ao poder e ao dinheiro. Uma história repleta de incertezas, lacunas, de sombras, contada de modo fragmentário por um cruzamento de vozes, tempos e de níveis de consciência. O leitor vê-se, por conseguinte, confrontado com frases sincopadas, marcadas pela ausência de vírgula ou de maiúscula, arrastado por esta sucessão de vozes, atormentadas por outras vozes, que se interrompem e permanecem frequentemente em suspensão. Estes monólogos tendem, todavia, a dirigir-se à figura de um homem, que nunca será designado senão por «senhor doutor», detendo, porém, um poder de decisão sobre a sua vida, quer na qualidade de patrão, dono, marido, amante ou pai. Aliás, o próprio Senhor acabará, por sua vez, por tomar a palavra, deixando emergir a sua própria angústia perante a solidão e a morte: «se além dos bancos mandasse na vida das pessoas proibia-as de morrer». Mais do que uma reflexão sobre os mecanismos do poder, Lobo Antunes explora [neste romance] de forma magistral o seu avesso, a sua fragilidade, até mesmo a sua impotência.
Sobre a infância e o medo do escuro
A escrita de Lobo Antunes procura, pois, situar-se para além da narrativa, para se concentrar no modo como as recordações, em particular as da infância, se apoderam do presente, a ponto de o fazer vacilar. «veja-se o poder que a infância tem, enfia-se no interior da gente e, sem que se espere, zás, salta». Da Natureza Dos Deuses apresenta-se, assim, como «um espelho no qual nos vimos [reflectidos] tal qual somos, nus e sem defesa». É sem sombra de dúvida o desafio mais importante lançado por este romance ao leitor, que se encontra incessantemente confrontado com as suas lembranças, com o seu (próprio) «núcleo de trevas», com a sua solidão: o que se encontra no âmago das personagens, no centro da sua fala, é evidentemente o ferrete que a infância neles deixou e que se prolonga pela sua vida adulta. Apesar dos conflitos e da violência patente nos seus relacionamentos, a hierarquia que rege a sua existência, esta infância continua a fermentar, a amadurecer, acabando mesmo por juntá-los. As alegrias e as feridas da infância emergem e minam silenciosamente o papel que (eles) desempenham nas representações sociais. É o caso do senhor doutor que, na intimidade, com a sua mulher, torna-se uma criança:
«despindo-se no outro canto do quarto e eu surpreendida de que os homens assim, imaginava-os menos indefesos, mais fortes e então dei-me conta de que não é connosco que estão, é a criança que foram, estendida ao meu lado sem se atrever a agarrar-me
– Não vais fazer-me mal pois não?
sou tão pequeno, protege-me, toma conta de mim, o meu marido, dono de bancos, de companhias, das empresas todas do mundo
– Não cresci
(…)
e o meu marido meu marido a pouco e pouco enquanto se vestia, ao apertar a gravata autoritário, feroz»
O poder do sofrimento da infância e o medo do escuro é com efeito imenso. Toma de assalto o sujeito, fazendo-o regredir à vulnerabilidade própria desta idade: crianças submetidas ao domínio dos adultos, vítimas da sua indiferença, da sua violência, testemunhas silenciosas dos seus fracassos.
A infância tem também uma ligação única com a linguagem, que actua em profundidade com a questão da rememoração de que são feitas as personagens. São palavras que se «pegam, entranham-se, não nos deixam jamais», como aquela que o pai do senhor doutor lhe dirigia, «sevandija», e a que regressa incessantemente, pontuando a injustiça e a violência dos seus actos, cometidos apesar dele, como se nada mais fizesse que submeter-se, de algum modo, à infâmia do mundo.
Da ferida secreta de todo o ser
Por ocasião de uma entrevista, António Lobo Antunes evoca um diálogo na obra de Dickens que lhe terá provocado uma forte impressão: um homem pergunta à sua mãe moribunda, «tens dores mamã?»; ao que ela responde: «tenho a impressão de que há uma dor no quarto, mas não sei se sou eu que a sinto». O mesmo parece ser uma das questões principais que atravessa este romance. A quem pertence, afinal, a dor que se sente? Porquanto se trata de uma dor que ultrapassa o sujeito, uma dor que se estende aos lugares, aos animais, e cuja presença se encontra tão impressa ao longo do livro: “muito choram alguns bichos, quebram-se no mesmo ruído do que as pedras, agonizam calados”. Homens, animais, crianças se parecem assim pela sua vulnerabilidade, pelo abandono e indiferença a que estão sujeitos: “a gaivota na estrada sem uma alma que a salvasse”.
Os fluxos de falas das personagens cristalizam-se então à volta de um núcleo de sofrimento, cuja origem remonta a um tempo ancestral que poderíamos descrever, com Georges Didi-Huberman, enquanto «jogo impuro, tenso, este debate das latências e das violências» que mina desde o interior a tirania da ordem social. E é sem dúvida o que a figura silenciosa, mais persistente, do sem abrigo que atravessa as narrativas das personagens e tenta fazer-nos compreender. Parece lembrar-nos esta solidão, esta lassidão originárias que, a exemplo dessas vozes do romance, tentamos ocultar por falsas aparências: «não podia tocar no sem abrigo no caso de ele passar por mim e verificar se era um anjo conforme o senhor doutor sugeriu uma vez, examinando-lhe as costas à procura de asas apesar de ele nunca próximo de ninguém, desviava-se sempre, da mesma forma que Deus nunca perto de mim em nenhuma época da vida, ora aí está outro que não calculo o que Lhe fiz para não me ligar».
Que permanece pois neste mundo abandonado pelos deuses?
Permanece, apesar de tudo, este livro, que nos é aconselhado, entretanto, a deitar fora: «larguem o livro no lixo já que a sombra do voo dos pássaros lá fora escureceu as páginas». É certamente uma grande lição de trevas que Lobo Antunes nos oferece aqui, neste romance, e que finalmente nos deixa escutar o rumor dos mortos.
por Melina Balcazar Morenoem Diacritik16.06.2016
tradução do francês por Olga Maria Carvalho Santos Fonseca revista por Dominique Nédellec
texto final traduzido revisto por José Alexandre Ramos
Nota da tradução:* refere-se ao terceiro volume de crónicas publicado em França pela Christian Bourgois (Livre de chroniques III, traduzido por Carlos Batista), cuja compilação de textos não corresponde ao volume Terceiro Livro de Crónicas editado pela Dom Quixote em Portugal.
Published on November 22, 2016 13:08
October 17, 2016
Crítica de Bruno Vieira Amaral a Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera
Que voz é esta, Lobo Antunes?
Em várias entrevistas no início da sua carreira literária, António Lobo Antunes afirmou que só publicou o primeiro livro quando encontrou uma maneira pessoal de dizer as coisas. Ao longo dessa carreira, que conta com vinte e sete romances e cinco livros de crónicas, a concepção que o escritor tinha da literatura e do seu ofício sofreu alterações. Na década de 80, dizia, por exemplo, que as suas referências eram os escritores norte-americanos, que sabiam contar uma história. Longe vão esses tempos. No entanto, aquela afirmação inicial não perdeu relevância. Lendo os livros – chamemos-lhes romances ou, como o autor, “exercícios de ambição” – torna-se claro que o escritor foi apurando – e também depurando – aquela maneira pessoal de dizer as coisas. Uma maneira pessoalíssima, única e, no entanto, contagiosa, ao ponto de uma geração inteira ter contraído, a certa altura, uma espécie de lobo-antunite, a olhar para o mundo da perspetiva de Lobo Antunes e a tentar descrevê-lo através daquela forma de expressão muito pessoal e, aparentemente, muito transmissível.
Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera , vigésimo-sétimo romance de Lobo Antunes, é mais um capítulo desse labor contínuo. A certa altura, generalizou-se a ideia de que o escritor se repete e, no fundo, está a escrever o mesmo livro há muito tempo. É uma ideia popular, sobretudo junto daqueles leitores que se apegaram aos primeiros livros e, depois, desistiram ou não conseguiram acompanhar o ritmo de publicação de Lobo Antunes. Havendo um fundo de verdade nessa ideia – e lá chegaremos – o certo é que nenhum outro escritor contemporâneo trouxe tanto Portugal e tantos Portugais para os seus romances. Obedecendo à máxima de Balzac, que o próprio Lobo Antunes por várias vezes citou, segundo a qual o verdadeiro romancista tem de ter vasculhado toda a vida social porque o romance é a história privada das nações, o escritor português vasculhou e escreveu sobre o Portugal suburbano, a burguesia lisboeta das Avenidas Novas, a classe média urbana, a velha fidalguia rural, os esquecidos dos bairros periféricos, os pornograficamente ricos das moradias de luxo, os banqueiros e os delinquentes menores, os deslocados do campo para a cidade, os deslocados das colónias para a metrópole, as cabeleireiras e os empregados de balcão, os políticos, os enfermos, os traficantes de diamantes e de influências. Portanto, quer se fale dos temas ou do meio social retratado, a acusação de repetição não tem fundamento.
Aquela dicção inconfundível
Veja-se o caso deste romance. A protagonista da história (e estes termos têm de ser utilizados com cautela) é uma ex-actriz de setenta e oito anos que na juventude veio de Faro para Lisboa, onde conheceu um moderado sucesso nos palcos e foi casada por duas vezes, a primeira por conveniência económica e a segunda, digamos, por desinteresse. Agora, num processo de degenerescência mental, aos cuidados do sobrinho do marido e de uma senhora de idade, recorda o que lhe aconteceu, os tempos de infância no Algarve, os passeios com o pai, a carreira no teatro, os casamentos e olha para o mundo com a confusão de um cérebro devastado, incapaz de se lembrar onde é o quarto e com as memórias antigas mais vivas e luminosas do que nunca, como o pavio de uma vela que se aproxima do fim.
Então, a protagonista é esta, o cenário é este, a história é esta. O livro, bem, o livro é outra coisa. Porque aquelas coisas estão no interior do livro, mas são tanto o livro como um ser humano é o seu esqueleto. Estão no seu interior, mas não são a sua essência. Estão dentro mas, para o que interessa, são exteriores ao livro. O romance olha para muitas coisas lá fora, mas avança às ordens da voz que o constrói. Essa voz está no centro do romance e, ao mesmo tempo, paira sobre ele, organiza-o e, ao mesmo tempo, flui, arrastando para si as outras vozes – das personagens, da narradora, do autor – tornando-a uma só. Porque aqui não há polifonia, no sentido em que As Ondas, de Virginia Woolf, ou Na Minha Morte, de William Faulkner, são romances polifónicos. O que há é uma monofonia em vários tons em que a mesma voz atravessa todo o romance e atrai para si tudo o que encontra pelo caminho: os detritos e as pérolas, os trejeitos linguísticos que assinalam uma personagem e as imagens poéticas que denunciam o criador.
Por isso a narradora que numa página diz “derivado à doença” noutra fala de “uma casita de madeira onde me dava a impressão de ferver uma colmeia de horas”; numa, “o avental de não me sujar”, noutra, “a gravata um nó de suicida hesitante”; a certa altura diz “não entendo o motivo de se haver encrençado por mim” e, mais à frente, “um rafeiro parecia conversar erguendo uma pata traseira em confidências de pingos” sendo esta construção aquilo a que poderemos chamar de lobo-antunismo, uma forma peculiar de dizer, uma dicção inconfundível que, apesar de menos recorrente do que os excessos de virtuosismo metafórico das primeiras obras, continua a pontuar os romances do escritor, como uma assinatura. Há vários exemplos:
Essa voz dobra o tempo, relativiza-o, amachuca-o, traz o passado para a porta de casa, intromete fiapos de diálogos nas frestas do discurso, faz assomar as recordações à janela da memória, sendo que a memória devastada da velha actriz torna credível o caos cronológico pois ela logo de início nos avisa que há muito que o tempo se fixou, “dá a ideia que se altera mas é o mesmo sempre e é no interior desse tempo que continuo a esmorecer devagar”. A voz, como tal, constrói o tempo e é também ela feita de tempo, um tempo que não é o tempo real (se é que tal coisa existe) nem é o tempo da ficção, não é o tempo da sanidade nem o da loucura, é uma amálgama de todos esses tempos derretidos. Essa voz que, mais do que construir um edifício narrativo, compõe um movimento musical (embora às palavras falte o rigor matemático das notas musicais), sustenta-se em motivos ou repetições. No caso deste livro, há o motivo do galgo do avental, do “motor” do gato, do comprimido, do relógio de cucos e do crucifixo a bater na parede como sinalizador do sexo, todos a marcar o compasso da voz e do tempo.
A realidade nos pormenores
Os romances de Lobo Antunes são, portanto, gestos radicais que não obedecem a nada que lhes seja exterior, apenas às exigências da voz, dessa forma voraz de ver, apreender e devolver o mundo. O maior problema dessa condição – e a razão de se acusar o escritor de escrever sempre o mesmo livro e de se repetir – é que, por muito diferentes que sejam as realidades que lhe servem de ponto de partida, todas elas são sacrificadas no altar da voz que as assimila e depois recita como se fossem idênticas. É como se a cada romance Lobo Antunes olhasse para diferentes realidades e as submetesse ao mesmo tratamento indistinto. É aqui que se trava o combate decisivo do escritor e, diria, de toda a literatura. Partindo do princípio que há uma realidade fora dos romances, realidade da qual eles partem (e é inegável que os romances de Lobo Antunes partem de realidades históricas e sociais concretas), até que ponto os romances se devem organizar em função dessa realidade? Nos romances de Lobo Antunes encontramos o Portugal real, com os naperons e os bibelôs, as Cátias do Seixal e as mulheres que tratam o marido pelo apelido, ou uma construção literária autónoma, um país de linguagem a que, por conveniência, chamamos de “Portugal”?
Sobre os romances, diria que o país neles retratado é uma construção daquela voz, embora semeada de pormenores colhidos na realidade e que, pela forma como são distribuídos pelo texto, dão a impressão de resultarem mais de um cruzamento do instinto, da capacidade de observação e da memória com a imaginação do que de uma investigação aturada, digamos, sobre os teatros de Lisboa ou sobre as ruas de Faro em meados do século XX, como acontece em Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera. Nos romances de Lobo Antunes, o real – o das personagens, o do país, o da humanidade – manifesta-se nos pormenores, nos pequenos gestos, objectos e frases que permitem que o leitor vislumbre o mundo que tem por realidade:
Não se trata meramente de um artifício literário para assegurar a verosimilhança, para que o leitor diga “isto é mesmo assim”, é a prova de que a voz que arrasta tudo consegue, ainda assim, reparar nas pequenas coisas, segurá-las com delicadeza e oferecê-las generosamente. É, pois, uma questão de atenção, de vasculhar toda a vida social e trazer à superfície os fragmentos aparentemente insignificantes que a revelam.
Com este gesto, a voz que devora e anula as realidades que se propõe descrever, redime-se. Sem início, sem enredo e sem desfecho, o romance é uma voz que se acende e que, lida a última página, se extingue, deixando o leitor abandonado ao silêncio a que aquela voz, mais do que a qualquer tradição literária, mais do que a qualquer realidade, pertence. “A minha casa ergue-se no cruzamento de dois silêncios”, escreveu Antoine Blondin, escritor que Lobo Antunes já apontou como uma das suas grandes influências. O que está neste livro não é uma história – o autor já renunciou a essa missão – mas uma voz que se ergue entre dois silêncios, uma casa de sombra entre duas escuridões profundas. Nesse sentido, consideremo-los mais ou menos realistas, os romances de Lobo Antunes parecem-se muito com a vida.
por Bruno Vieira Amaralem Observador17.10.2016
Em várias entrevistas no início da sua carreira literária, António Lobo Antunes afirmou que só publicou o primeiro livro quando encontrou uma maneira pessoal de dizer as coisas. Ao longo dessa carreira, que conta com vinte e sete romances e cinco livros de crónicas, a concepção que o escritor tinha da literatura e do seu ofício sofreu alterações. Na década de 80, dizia, por exemplo, que as suas referências eram os escritores norte-americanos, que sabiam contar uma história. Longe vão esses tempos. No entanto, aquela afirmação inicial não perdeu relevância. Lendo os livros – chamemos-lhes romances ou, como o autor, “exercícios de ambição” – torna-se claro que o escritor foi apurando – e também depurando – aquela maneira pessoal de dizer as coisas. Uma maneira pessoalíssima, única e, no entanto, contagiosa, ao ponto de uma geração inteira ter contraído, a certa altura, uma espécie de lobo-antunite, a olhar para o mundo da perspetiva de Lobo Antunes e a tentar descrevê-lo através daquela forma de expressão muito pessoal e, aparentemente, muito transmissível.Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera , vigésimo-sétimo romance de Lobo Antunes, é mais um capítulo desse labor contínuo. A certa altura, generalizou-se a ideia de que o escritor se repete e, no fundo, está a escrever o mesmo livro há muito tempo. É uma ideia popular, sobretudo junto daqueles leitores que se apegaram aos primeiros livros e, depois, desistiram ou não conseguiram acompanhar o ritmo de publicação de Lobo Antunes. Havendo um fundo de verdade nessa ideia – e lá chegaremos – o certo é que nenhum outro escritor contemporâneo trouxe tanto Portugal e tantos Portugais para os seus romances. Obedecendo à máxima de Balzac, que o próprio Lobo Antunes por várias vezes citou, segundo a qual o verdadeiro romancista tem de ter vasculhado toda a vida social porque o romance é a história privada das nações, o escritor português vasculhou e escreveu sobre o Portugal suburbano, a burguesia lisboeta das Avenidas Novas, a classe média urbana, a velha fidalguia rural, os esquecidos dos bairros periféricos, os pornograficamente ricos das moradias de luxo, os banqueiros e os delinquentes menores, os deslocados do campo para a cidade, os deslocados das colónias para a metrópole, as cabeleireiras e os empregados de balcão, os políticos, os enfermos, os traficantes de diamantes e de influências. Portanto, quer se fale dos temas ou do meio social retratado, a acusação de repetição não tem fundamento.
Aquela dicção inconfundível
Veja-se o caso deste romance. A protagonista da história (e estes termos têm de ser utilizados com cautela) é uma ex-actriz de setenta e oito anos que na juventude veio de Faro para Lisboa, onde conheceu um moderado sucesso nos palcos e foi casada por duas vezes, a primeira por conveniência económica e a segunda, digamos, por desinteresse. Agora, num processo de degenerescência mental, aos cuidados do sobrinho do marido e de uma senhora de idade, recorda o que lhe aconteceu, os tempos de infância no Algarve, os passeios com o pai, a carreira no teatro, os casamentos e olha para o mundo com a confusão de um cérebro devastado, incapaz de se lembrar onde é o quarto e com as memórias antigas mais vivas e luminosas do que nunca, como o pavio de uma vela que se aproxima do fim.
Então, a protagonista é esta, o cenário é este, a história é esta. O livro, bem, o livro é outra coisa. Porque aquelas coisas estão no interior do livro, mas são tanto o livro como um ser humano é o seu esqueleto. Estão no seu interior, mas não são a sua essência. Estão dentro mas, para o que interessa, são exteriores ao livro. O romance olha para muitas coisas lá fora, mas avança às ordens da voz que o constrói. Essa voz está no centro do romance e, ao mesmo tempo, paira sobre ele, organiza-o e, ao mesmo tempo, flui, arrastando para si as outras vozes – das personagens, da narradora, do autor – tornando-a uma só. Porque aqui não há polifonia, no sentido em que As Ondas, de Virginia Woolf, ou Na Minha Morte, de William Faulkner, são romances polifónicos. O que há é uma monofonia em vários tons em que a mesma voz atravessa todo o romance e atrai para si tudo o que encontra pelo caminho: os detritos e as pérolas, os trejeitos linguísticos que assinalam uma personagem e as imagens poéticas que denunciam o criador.
Por isso a narradora que numa página diz “derivado à doença” noutra fala de “uma casita de madeira onde me dava a impressão de ferver uma colmeia de horas”; numa, “o avental de não me sujar”, noutra, “a gravata um nó de suicida hesitante”; a certa altura diz “não entendo o motivo de se haver encrençado por mim” e, mais à frente, “um rafeiro parecia conversar erguendo uma pata traseira em confidências de pingos” sendo esta construção aquilo a que poderemos chamar de lobo-antunismo, uma forma peculiar de dizer, uma dicção inconfundível que, apesar de menos recorrente do que os excessos de virtuosismo metafórico das primeiras obras, continua a pontuar os romances do escritor, como uma assinatura. Há vários exemplos:
o meu cabeleireiro apagado com os capacetes de astronauta à espera das viajantes interplanetárias da manhã”; “as cadeiras de alumínio encaixadas umas nas outras numa procissão de vértebras”; “os uivos de bebé de uma ambulância na rua”; “tudo aquilo se despenhava num rebuliço de folhas”; “escolhia entre cápsulas em gestos de açucareiro com a pinça de dois dedos e engolia numa delicadeza de comunhão”.
Essa voz dobra o tempo, relativiza-o, amachuca-o, traz o passado para a porta de casa, intromete fiapos de diálogos nas frestas do discurso, faz assomar as recordações à janela da memória, sendo que a memória devastada da velha actriz torna credível o caos cronológico pois ela logo de início nos avisa que há muito que o tempo se fixou, “dá a ideia que se altera mas é o mesmo sempre e é no interior desse tempo que continuo a esmorecer devagar”. A voz, como tal, constrói o tempo e é também ela feita de tempo, um tempo que não é o tempo real (se é que tal coisa existe) nem é o tempo da ficção, não é o tempo da sanidade nem o da loucura, é uma amálgama de todos esses tempos derretidos. Essa voz que, mais do que construir um edifício narrativo, compõe um movimento musical (embora às palavras falte o rigor matemático das notas musicais), sustenta-se em motivos ou repetições. No caso deste livro, há o motivo do galgo do avental, do “motor” do gato, do comprimido, do relógio de cucos e do crucifixo a bater na parede como sinalizador do sexo, todos a marcar o compasso da voz e do tempo.
A realidade nos pormenores
Os romances de Lobo Antunes são, portanto, gestos radicais que não obedecem a nada que lhes seja exterior, apenas às exigências da voz, dessa forma voraz de ver, apreender e devolver o mundo. O maior problema dessa condição – e a razão de se acusar o escritor de escrever sempre o mesmo livro e de se repetir – é que, por muito diferentes que sejam as realidades que lhe servem de ponto de partida, todas elas são sacrificadas no altar da voz que as assimila e depois recita como se fossem idênticas. É como se a cada romance Lobo Antunes olhasse para diferentes realidades e as submetesse ao mesmo tratamento indistinto. É aqui que se trava o combate decisivo do escritor e, diria, de toda a literatura. Partindo do princípio que há uma realidade fora dos romances, realidade da qual eles partem (e é inegável que os romances de Lobo Antunes partem de realidades históricas e sociais concretas), até que ponto os romances se devem organizar em função dessa realidade? Nos romances de Lobo Antunes encontramos o Portugal real, com os naperons e os bibelôs, as Cátias do Seixal e as mulheres que tratam o marido pelo apelido, ou uma construção literária autónoma, um país de linguagem a que, por conveniência, chamamos de “Portugal”?
Sobre os romances, diria que o país neles retratado é uma construção daquela voz, embora semeada de pormenores colhidos na realidade e que, pela forma como são distribuídos pelo texto, dão a impressão de resultarem mais de um cruzamento do instinto, da capacidade de observação e da memória com a imaginação do que de uma investigação aturada, digamos, sobre os teatros de Lisboa ou sobre as ruas de Faro em meados do século XX, como acontece em Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera. Nos romances de Lobo Antunes, o real – o das personagens, o do país, o da humanidade – manifesta-se nos pormenores, nos pequenos gestos, objectos e frases que permitem que o leitor vislumbre o mundo que tem por realidade:
uma Nossa Senhora fosforescente numa prateleirinha”, “uma mulher de roupão a apanhar lençóis de um estendal guardando as molas no bolso”; o “carrito de rodas de pano de xadrez que vai saltando no passeio na sensação de quando era pequena e puxava um pato de brinquedo pelo cordel”; “a maneira de coçar uma perna com o tornozelo da outra”; “o interruptor junto à porta que deitava sempre faíscas”; “um tubo de pastilhas para a garganta destinado aos alfinetes”; o pai a correr e “a segurar as algibeiras do casaco com as palmas”; “uma capela onde se guardavam batatas” (diz a narradora de uma capela que, no entanto, só vê de passagem); “um albino de bicicleta com pinças de estendal a apertarem as calças”; “duas alianças na mão esquerda e portanto viúva”; “o peixe de baquelite que me punha na banheira”.
Não se trata meramente de um artifício literário para assegurar a verosimilhança, para que o leitor diga “isto é mesmo assim”, é a prova de que a voz que arrasta tudo consegue, ainda assim, reparar nas pequenas coisas, segurá-las com delicadeza e oferecê-las generosamente. É, pois, uma questão de atenção, de vasculhar toda a vida social e trazer à superfície os fragmentos aparentemente insignificantes que a revelam.
Com este gesto, a voz que devora e anula as realidades que se propõe descrever, redime-se. Sem início, sem enredo e sem desfecho, o romance é uma voz que se acende e que, lida a última página, se extingue, deixando o leitor abandonado ao silêncio a que aquela voz, mais do que a qualquer tradição literária, mais do que a qualquer realidade, pertence. “A minha casa ergue-se no cruzamento de dois silêncios”, escreveu Antoine Blondin, escritor que Lobo Antunes já apontou como uma das suas grandes influências. O que está neste livro não é uma história – o autor já renunciou a essa missão – mas uma voz que se ergue entre dois silêncios, uma casa de sombra entre duas escuridões profundas. Nesse sentido, consideremo-los mais ou menos realistas, os romances de Lobo Antunes parecem-se muito com a vida.
por Bruno Vieira Amaralem Observador17.10.2016
Published on October 17, 2016 13:36
Crítica de Bruno Vieira Amaral a Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera
Que voz é esta, Lobo Antunes?
Em várias entrevistas no início da sua carreira literária, António Lobo Antunes afirmou que só publicou o primeiro livro quando encontrou uma maneira pessoal de dizer as coisas. Ao longo dessa carreira, que conta com vinte e sete romances e cinco livros de crónicas, a concepção que o escritor tinha da literatura e do seu ofício sofreu alterações. Na década de 80, dizia, por exemplo, que as suas referências eram os escritores norte-americanos, que sabiam contar uma história. Longe vão esses tempos. No entanto, aquela afirmação inicial não perdeu relevância. Lendo os livros – chamemos-lhes romances ou, como o autor, “exercícios de ambição” – torna-se claro que o escritor foi apurando – e também depurando – aquela maneira pessoal de dizer as coisas. Uma maneira pessoalíssima, única e, no entanto, contagiosa, ao ponto de uma geração inteira ter contraído, a certa altura, uma espécie de lobo-antunite, a olhar para o mundo da perspetiva de Lobo Antunes e a tentar descrevê-lo através daquela forma de expressão muito pessoal e, aparentemente, muito transmissível.
Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera , vigésimo-sétimo romance de Lobo Antunes, é mais um capítulo desse labor contínuo. A certa altura, generalizou-se a ideia de que o escritor se repete e, no fundo, está a escrever o mesmo livro há muito tempo. É uma ideia popular, sobretudo junto daqueles leitores que se apegaram aos primeiros livros e, depois, desistiram ou não conseguiram acompanhar o ritmo de publicação de Lobo Antunes. Havendo um fundo de verdade nessa ideia – e lá chegaremos – o certo é que nenhum outro escritor contemporâneo trouxe tanto Portugal e tantos Portugais para os seus romances. Obedecendo à máxima de Balzac, que o próprio Lobo Antunes por várias vezes citou, segundo a qual o verdadeiro romancista tem de ter vasculhado toda a vida social porque o romance é a história privada das nações, o escritor português vasculhou e escreveu sobre o Portugal suburbano, a burguesia lisboeta das Avenidas Novas, a classe média urbana, a velha fidalguia rural, os esquecidos dos bairros periféricos, os pornograficamente ricos das moradias de luxo, os banqueiros e os delinquentes menores, os deslocados do campo para a cidade, os deslocados das colónias para a metrópole, as cabeleireiras e os empregados de balcão, os políticos, os enfermos, os traficantes de diamantes e de influências. Portanto, quer se fale dos temas ou do meio social retratado, a acusação de repetição não tem fundamento.
Aquela dicção inconfundível
Veja-se o caso deste romance. A protagonista da história (e estes termos têm de ser utilizados com cautela) é uma ex-actriz de setenta e oito anos que na juventude veio de Faro para Lisboa, onde conheceu um moderado sucesso nos palcos e foi casada por duas vezes, a primeira por conveniência económica e a segunda, digamos, por desinteresse. Agora, num processo de degenerescência mental, aos cuidados do sobrinho do marido e de uma senhora de idade, recorda o que lhe aconteceu, os tempos de infância no Algarve, os passeios com o pai, a carreira no teatro, os casamentos e olha para o mundo com a confusão de um cérebro devastado, incapaz de se lembrar onde é o quarto e com as memórias antigas mais vivas e luminosas do que nunca, como o pavio de uma vela que se aproxima do fim.
Então, a protagonista é esta, o cenário é este, a história é esta. O livro, bem, o livro é outra coisa. Porque aquelas coisas estão no interior do livro, mas são tanto o livro como um ser humano é o seu esqueleto. Estão no seu interior, mas não são a sua essência. Estão dentro mas, para o que interessa, são exteriores ao livro. O romance olha para muitas coisas lá fora, mas avança às ordens da voz que o constrói. Essa voz está no centro do romance e, ao mesmo tempo, paira sobre ele, organiza-o e, ao mesmo tempo, flui, arrastando para si as outras vozes – das personagens, da narradora, do autor – tornando-a uma só. Porque aqui não há polifonia, no sentido em que As Ondas, de Virginia Woolf, ou Na Minha Morte, de William Faulkner, são romances polifónicos. O que há é uma monofonia em vários tons em que a mesma voz atravessa todo o romance e atrai para si tudo o que encontra pelo caminho: os detritos e as pérolas, os trejeitos linguísticos que assinalam uma personagem e as imagens poéticas que denunciam o criador.
Por isso a narradora que numa página diz “derivado à doença” noutra fala de “uma casita de madeira onde me dava a impressão de ferver uma colmeia de horas”; numa, “o avental de não me sujar”, noutra, “a gravata um nó de suicida hesitante”; a certa altura diz “não entendo o motivo de se haver encrençado por mim” e, mais à frente, “um rafeiro parecia conversar erguendo uma pata traseira em confidências de pingos” sendo esta construção aquilo a que poderemos chamar de lobo-antunismo, uma forma peculiar de dizer, uma dicção inconfundível que, apesar de menos recorrente do que os excessos de virtuosismo metafórico das primeiras obras, continua a pontuar os romances do escritor, como uma assinatura. Há vários exemplos:
Essa voz dobra o tempo, relativiza-o, amachuca-o, traz o passado para a porta de casa, intromete fiapos de diálogos nas frestas do discurso, faz assomar as recordações à janela da memória, sendo que a memória devastada da velha actriz torna credível o caos cronológico pois ela logo de início nos avisa que há muito que o tempo se fixou, “dá a ideia que se altera mas é o mesmo sempre e é no interior desse tempo que continuo a esmorecer devagar”. A voz, como tal, constrói o tempo e é também ela feita de tempo, um tempo que não é o tempo real (se é que tal coisa existe) nem é o tempo da ficção, não é o tempo da sanidade nem o da loucura, é uma amálgama de todos esses tempos derretidos. Essa voz que, mais do que construir um edifício narrativo, compõe um movimento musical (embora às palavras falte o rigor matemático das notas musicais), sustenta-se em motivos ou repetições. No caso deste livro, há o motivo do galgo do avental, do “motor” do gato, do comprimido, do relógio de cucos e do crucifixo a bater na parede como sinalizador do sexo, todos a marcar o compasso da voz e do tempo.
A realidade nos pormenores
Os romances de Lobo Antunes são, portanto, gestos radicais que não obedecem a nada que lhes seja exterior, apenas às exigências da voz, dessa forma voraz de ver, apreender e devolver o mundo. O maior problema dessa condição – e a razão de se acusar o escritor de escrever sempre o mesmo livro e de se repetir – é que, por muito diferentes que sejam as realidades que lhe servem de ponto de partida, todas elas são sacrificadas no altar da voz que as assimila e depois recita como se fossem idênticas. É como se a cada romance Lobo Antunes olhasse para diferentes realidades e as submetesse ao mesmo tratamento indistinto. É aqui que se trava o combate decisivo do escritor e, diria, de toda a literatura. Partindo do princípio que há uma realidade fora dos romances, realidade da qual eles partem (e é inegável que os romances de Lobo Antunes partem de realidades históricas e sociais concretas), até que ponto os romances se devem organizar em função dessa realidade? Nos romances de Lobo Antunes encontramos o Portugal real, com os naperons e os bibelôs, as Cátias do Seixal e as mulheres que tratam o marido pelo apelido, ou uma construção literária autónoma, um país de linguagem a que, por conveniência, chamamos de “Portugal”?
Sobre os romances, diria que o país neles retratado é uma construção daquela voz, embora semeada de pormenores colhidos na realidade e que, pela forma como são distribuídos pelo texto, dão a impressão de resultarem mais de um cruzamento do instinto, da capacidade de observação e da memória com a imaginação do que de uma investigação aturada, digamos, sobre os teatros de Lisboa ou sobre as ruas de Faro em meados do século XX, como acontece em Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera. Nos romances de Lobo Antunes, o real – o das personagens, o do país, o da humanidade – manifesta-se nos pormenores, nos pequenos gestos, objectos e frases que permitem que o leitor vislumbre o mundo que tem por realidade:
Não se trata meramente de um artifício literário para assegurar a verosimilhança, para que o leitor diga “isto é mesmo assim”, é a prova de que a voz que arrasta tudo consegue, ainda assim, reparar nas pequenas coisas, segurá-las com delicadeza e oferecê-las generosamente. É, pois, uma questão de atenção, de vasculhar toda a vida social e trazer à superfície os fragmentos aparentemente insignificantes que a revelam.
Com este gesto, a voz que devora e anula as realidades que se propõe descrever, redime-se. Sem início, sem enredo e sem desfecho, o romance é uma voz que se acende e que, lida a última página, se extingue, deixando o leitor abandonado ao silêncio a que aquela voz, mais do que a qualquer tradição literária, mais do que a qualquer realidade, pertence. “A minha casa ergue-se no cruzamento de dois silêncios”, escreveu Antoine Blondin, escritor que Lobo Antunes já apontou como uma das suas grandes influências. O que está neste livro não é uma história – o autor já renunciou a essa missão – mas uma voz que se ergue entre dois silêncios, uma casa de sombra entre duas escuridões profundas. Nesse sentido, consideremo-los mais ou menos realistas, os romances de Lobo Antunes parecem-se muito com a vida.
por Bruno Vieira Amaralem Observador17.10.2016
Em várias entrevistas no início da sua carreira literária, António Lobo Antunes afirmou que só publicou o primeiro livro quando encontrou uma maneira pessoal de dizer as coisas. Ao longo dessa carreira, que conta com vinte e sete romances e cinco livros de crónicas, a concepção que o escritor tinha da literatura e do seu ofício sofreu alterações. Na década de 80, dizia, por exemplo, que as suas referências eram os escritores norte-americanos, que sabiam contar uma história. Longe vão esses tempos. No entanto, aquela afirmação inicial não perdeu relevância. Lendo os livros – chamemos-lhes romances ou, como o autor, “exercícios de ambição” – torna-se claro que o escritor foi apurando – e também depurando – aquela maneira pessoal de dizer as coisas. Uma maneira pessoalíssima, única e, no entanto, contagiosa, ao ponto de uma geração inteira ter contraído, a certa altura, uma espécie de lobo-antunite, a olhar para o mundo da perspetiva de Lobo Antunes e a tentar descrevê-lo através daquela forma de expressão muito pessoal e, aparentemente, muito transmissível.Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera , vigésimo-sétimo romance de Lobo Antunes, é mais um capítulo desse labor contínuo. A certa altura, generalizou-se a ideia de que o escritor se repete e, no fundo, está a escrever o mesmo livro há muito tempo. É uma ideia popular, sobretudo junto daqueles leitores que se apegaram aos primeiros livros e, depois, desistiram ou não conseguiram acompanhar o ritmo de publicação de Lobo Antunes. Havendo um fundo de verdade nessa ideia – e lá chegaremos – o certo é que nenhum outro escritor contemporâneo trouxe tanto Portugal e tantos Portugais para os seus romances. Obedecendo à máxima de Balzac, que o próprio Lobo Antunes por várias vezes citou, segundo a qual o verdadeiro romancista tem de ter vasculhado toda a vida social porque o romance é a história privada das nações, o escritor português vasculhou e escreveu sobre o Portugal suburbano, a burguesia lisboeta das Avenidas Novas, a classe média urbana, a velha fidalguia rural, os esquecidos dos bairros periféricos, os pornograficamente ricos das moradias de luxo, os banqueiros e os delinquentes menores, os deslocados do campo para a cidade, os deslocados das colónias para a metrópole, as cabeleireiras e os empregados de balcão, os políticos, os enfermos, os traficantes de diamantes e de influências. Portanto, quer se fale dos temas ou do meio social retratado, a acusação de repetição não tem fundamento.
Aquela dicção inconfundível
Veja-se o caso deste romance. A protagonista da história (e estes termos têm de ser utilizados com cautela) é uma ex-actriz de setenta e oito anos que na juventude veio de Faro para Lisboa, onde conheceu um moderado sucesso nos palcos e foi casada por duas vezes, a primeira por conveniência económica e a segunda, digamos, por desinteresse. Agora, num processo de degenerescência mental, aos cuidados do sobrinho do marido e de uma senhora de idade, recorda o que lhe aconteceu, os tempos de infância no Algarve, os passeios com o pai, a carreira no teatro, os casamentos e olha para o mundo com a confusão de um cérebro devastado, incapaz de se lembrar onde é o quarto e com as memórias antigas mais vivas e luminosas do que nunca, como o pavio de uma vela que se aproxima do fim.
Então, a protagonista é esta, o cenário é este, a história é esta. O livro, bem, o livro é outra coisa. Porque aquelas coisas estão no interior do livro, mas são tanto o livro como um ser humano é o seu esqueleto. Estão no seu interior, mas não são a sua essência. Estão dentro mas, para o que interessa, são exteriores ao livro. O romance olha para muitas coisas lá fora, mas avança às ordens da voz que o constrói. Essa voz está no centro do romance e, ao mesmo tempo, paira sobre ele, organiza-o e, ao mesmo tempo, flui, arrastando para si as outras vozes – das personagens, da narradora, do autor – tornando-a uma só. Porque aqui não há polifonia, no sentido em que As Ondas, de Virginia Woolf, ou Na Minha Morte, de William Faulkner, são romances polifónicos. O que há é uma monofonia em vários tons em que a mesma voz atravessa todo o romance e atrai para si tudo o que encontra pelo caminho: os detritos e as pérolas, os trejeitos linguísticos que assinalam uma personagem e as imagens poéticas que denunciam o criador.
Por isso a narradora que numa página diz “derivado à doença” noutra fala de “uma casita de madeira onde me dava a impressão de ferver uma colmeia de horas”; numa, “o avental de não me sujar”, noutra, “a gravata um nó de suicida hesitante”; a certa altura diz “não entendo o motivo de se haver encrençado por mim” e, mais à frente, “um rafeiro parecia conversar erguendo uma pata traseira em confidências de pingos” sendo esta construção aquilo a que poderemos chamar de lobo-antunismo, uma forma peculiar de dizer, uma dicção inconfundível que, apesar de menos recorrente do que os excessos de virtuosismo metafórico das primeiras obras, continua a pontuar os romances do escritor, como uma assinatura. Há vários exemplos:
o meu cabeleireiro apagado com os capacetes de astronauta à espera das viajantes interplanetárias da manhã”; “as cadeiras de alumínio encaixadas umas nas outras numa procissão de vértebras”; “os uivos de bebé de uma ambulância na rua”; “tudo aquilo se despenhava num rebuliço de folhas”; “escolhia entre cápsulas em gestos de açucareiro com a pinça de dois dedos e engolia numa delicadeza de comunhão”.
Essa voz dobra o tempo, relativiza-o, amachuca-o, traz o passado para a porta de casa, intromete fiapos de diálogos nas frestas do discurso, faz assomar as recordações à janela da memória, sendo que a memória devastada da velha actriz torna credível o caos cronológico pois ela logo de início nos avisa que há muito que o tempo se fixou, “dá a ideia que se altera mas é o mesmo sempre e é no interior desse tempo que continuo a esmorecer devagar”. A voz, como tal, constrói o tempo e é também ela feita de tempo, um tempo que não é o tempo real (se é que tal coisa existe) nem é o tempo da ficção, não é o tempo da sanidade nem o da loucura, é uma amálgama de todos esses tempos derretidos. Essa voz que, mais do que construir um edifício narrativo, compõe um movimento musical (embora às palavras falte o rigor matemático das notas musicais), sustenta-se em motivos ou repetições. No caso deste livro, há o motivo do galgo do avental, do “motor” do gato, do comprimido, do relógio de cucos e do crucifixo a bater na parede como sinalizador do sexo, todos a marcar o compasso da voz e do tempo.
A realidade nos pormenores
Os romances de Lobo Antunes são, portanto, gestos radicais que não obedecem a nada que lhes seja exterior, apenas às exigências da voz, dessa forma voraz de ver, apreender e devolver o mundo. O maior problema dessa condição – e a razão de se acusar o escritor de escrever sempre o mesmo livro e de se repetir – é que, por muito diferentes que sejam as realidades que lhe servem de ponto de partida, todas elas são sacrificadas no altar da voz que as assimila e depois recita como se fossem idênticas. É como se a cada romance Lobo Antunes olhasse para diferentes realidades e as submetesse ao mesmo tratamento indistinto. É aqui que se trava o combate decisivo do escritor e, diria, de toda a literatura. Partindo do princípio que há uma realidade fora dos romances, realidade da qual eles partem (e é inegável que os romances de Lobo Antunes partem de realidades históricas e sociais concretas), até que ponto os romances se devem organizar em função dessa realidade? Nos romances de Lobo Antunes encontramos o Portugal real, com os naperons e os bibelôs, as Cátias do Seixal e as mulheres que tratam o marido pelo apelido, ou uma construção literária autónoma, um país de linguagem a que, por conveniência, chamamos de “Portugal”?
Sobre os romances, diria que o país neles retratado é uma construção daquela voz, embora semeada de pormenores colhidos na realidade e que, pela forma como são distribuídos pelo texto, dão a impressão de resultarem mais de um cruzamento do instinto, da capacidade de observação e da memória com a imaginação do que de uma investigação aturada, digamos, sobre os teatros de Lisboa ou sobre as ruas de Faro em meados do século XX, como acontece em Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera. Nos romances de Lobo Antunes, o real – o das personagens, o do país, o da humanidade – manifesta-se nos pormenores, nos pequenos gestos, objectos e frases que permitem que o leitor vislumbre o mundo que tem por realidade:
uma Nossa Senhora fosforescente numa prateleirinha”, “uma mulher de roupão a apanhar lençóis de um estendal guardando as molas no bolso”; o “carrito de rodas de pano de xadrez que vai saltando no passeio na sensação de quando era pequena e puxava um pato de brinquedo pelo cordel”; “a maneira de coçar uma perna com o tornozelo da outra”; “o interruptor junto à porta que deitava sempre faíscas”; “um tubo de pastilhas para a garganta destinado aos alfinetes”; o pai a correr e “a segurar as algibeiras do casaco com as palmas”; “uma capela onde se guardavam batatas” (diz a narradora de uma capela que, no entanto, só vê de passagem); “um albino de bicicleta com pinças de estendal a apertarem as calças”; “duas alianças na mão esquerda e portanto viúva”; “o peixe de baquelite que me punha na banheira”.
Não se trata meramente de um artifício literário para assegurar a verosimilhança, para que o leitor diga “isto é mesmo assim”, é a prova de que a voz que arrasta tudo consegue, ainda assim, reparar nas pequenas coisas, segurá-las com delicadeza e oferecê-las generosamente. É, pois, uma questão de atenção, de vasculhar toda a vida social e trazer à superfície os fragmentos aparentemente insignificantes que a revelam.
Com este gesto, a voz que devora e anula as realidades que se propõe descrever, redime-se. Sem início, sem enredo e sem desfecho, o romance é uma voz que se acende e que, lida a última página, se extingue, deixando o leitor abandonado ao silêncio a que aquela voz, mais do que a qualquer tradição literária, mais do que a qualquer realidade, pertence. “A minha casa ergue-se no cruzamento de dois silêncios”, escreveu Antoine Blondin, escritor que Lobo Antunes já apontou como uma das suas grandes influências. O que está neste livro não é uma história – o autor já renunciou a essa missão – mas uma voz que se ergue entre dois silêncios, uma casa de sombra entre duas escuridões profundas. Nesse sentido, consideremo-los mais ou menos realistas, os romances de Lobo Antunes parecem-se muito com a vida.
por Bruno Vieira Amaralem Observador17.10.2016
Published on October 17, 2016 13:12
October 14, 2016
Artigo de Norberto do Vale Cardoso sobre Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera (publicado no Jornal de Letras)
António Lobo Antunes:Os misteriosos matusaléns do escritor
O novo romance de António Lobo Antunes, Para Aquela Que Está Sentada No Escuro à Minha Espera , realça um tema sobejamente importante na obra deste autor: a memória. Numa linha de continuidade, este romance retoma aspectos de obras anteriores, em constantes reenvios e alusões que devem ter em conta o corpus textual antuniano (constituído hoje por 27 romances publicados). Alguns desses aspectos passam por: referência a cantilenas («– Pico pico sardanico quem te deu tamanho bico» ou «– Dança o cão dança o gato dança o feijão carrapato», que é título de uma crónica) e passagens bíblicas (a parábola do grão de mostarda, a título de exemplo), bem como intertextualidades (citação de excertos do poema “A lua de Londres”, de João de Lemos, autor do século XIX); e, acima de tudo, uma profusão de temas e lateralizações, quase sempre presentes nos romances de Lobo Antunes, tais como: o suicídio (de que encontramos, em Para Aquela…, três situações); a casa (lugar matricial, também aqui presente através da casa dos pais da protagonista, em Faro); alusões onomásticas (a prima da protagonista chama-se ‘Antonina’; o pai da personagem principal teria tido uma relação extra-conjugal com a ‘filha do Antunes’); a exclusão social (a homossexualidade, o travestismo e a miséria); a importância do voar (a entidade feminina recorda como a mãe lhe dava de comer enquanto ela voava) e da figura paterna (o pai era o único que a tratava por «- Filhinha» e não pelo nome próprio); as menções ao mundo do espectáculo (a protagonista foi actriz; o pai parece-se a um ‘Charlot’; um amigo do pai pertence a uma companhia de teatro ambulante); e a doença (a irmã chamava-se Corália e faleceu de difteria, o que intensificou a responsabilidade de viver da narradora que, aliás, também padece de uma doença).Não obstante todos esses temas e micro-narrativas, é em torno da memória que gira a temporalidade da narrativa de Para Aquela Que Está Sentada No Escuro à Minha Espera, romance que não é estruturado apenas em narrativas descontínuas ou emaranhados, mas especialmente numa fruição da própria memória, feita, afinal, de descontinuidades, incertezas, interditos, elipses, avanços, recuos, esquecimentos e recordações. A protagonista e narradora do romance é de facto alguém que sofre de perdas de memória que a incapacitam para a vida profissional (era actriz e principia a esquecer-se das falas, tendo ‘brancas’ quando procura as palavras) e – paulatinamente - para a vida pessoal, o que a impede de viver sem o auxílio de alguém, aguardando-se, em última análise, o seu falecimento. A memória, como os três andamentos em que o romance se estrutura (tendo cada um deles oito capítulos), tem graus de velocidade e a personagem recorda, a partir da doença que a assola no presente, a infância passada em Faro, a relação entre os pais (com destaque para o ‘crucifixo’ que ora se move ora se silencia), um amigo que andara com o pai na tropa e que augurava para ela um futuro promissor nas artes dramáticas, os ex-maridos e uma coterie de objectos (animados e inanimados, mudando e suspendendo-se de forma a meio da noite, como a estatueta de uma rapariga agarrada a um cisne) que, entre a luz e as sombras da recordação, vai cruzando o mundo do espectáculo com o da memória. A memória é, pois, o compasso que controla o ritmo do presente, tendo em conta que a ex-actriz padece de Alzheimer (palavra não pronunciada, sempre subentendida), oscilando entre perdas de memória e espantosas recordações. Podemos dizer que essa situação conduz ao que William Faulkner diz numa passagem de Uma Luz Em Agosto: «A memória acredita antes de o conhecimento recordar. Acredita por mais tempo que recorda, por mais tempo até que o conhecimento se interroga (…)» (ed. D. Quixote, 2016, p. 107). Assim, em Lisboa, ao cuidado de uma senhora de idade, sob a supervisão do sobrinho do marido já falecido, a voz feminina recorda todos os que estão mortos, mas, ainda assim, vivos dentro dela, como se constata: «que estranha forma de viver têm os mortos» (Para Aquela…, p. 74). Ora essa capacidade de a memória acreditar antes de o conhecimento recordar, leva a mulher a pensar que os seus pais (mortos há anos) tocam à campainha e se regozijam por ela estar prestes fazer setenta e oito anos. Estabelece-se aqui uma ligação entre a memória do que aconteceu e a memória do que se imaginou acontecer, potencializando-se, na escrita ficcional, um abalo na fronteira entre o mundo dos vivos e o dos mortos:
[…] a senhora de idade para a minha mãe– Não lhe pergunte seja o que for que ela para além de não falarnão se recorda de nadao meu pai para a senhora de idade espantado– Não se recorda de nada?mortos há tanto tempo e no entanto aqui, como deram comigo em Lisboa no apartamento que não conhecem de uma rua que não conhecem também […] (Para Aquela…, p. 263)
Esse esbatimento torna-se evidente quando se refere que a própria actriz faleceu antes dos pais (Para Aquela…, p. 311), o que coloca o leitor perante a impossibilidade de toda a narrativa memorialística. As fugas da memória conduzem a deslizamentos da verdade. A referência central poderá ser Pedro Páramo, de Juan Rulfo, que nos revela como a fronteira entre a vida e a morte é ténue na literatura. Em Pedro Páramo, a procura da mãe há-de traduzir-se num encontro insólito, para, no final, tudo ser colocado em dúvida. Ora em Para Aquela Que Está Sentada No Escuro à Minha Espera, é a filha quem procura o pai, partindo da doença, que – não o descuremos – metaforiza o processo da criação romanesca, ligado à memória. Daí também a importância da noite ou do escuro, pois a entidade feminina procura o seu quarto no escuro da casa, acorda de manhã e apercebe-se de que as coisas mudam durante a noite, desde o olhar do gato (símbolo heterogéneo da ligação entre o terreno e o além) ao rosnar do galgo (o que lembra a raposa de A Ordem Natural das Coisas). Não há apenas rememoração, mas uma construção imagística. Escrita, espectáculo e memória – três motivos interligados e centrais no romance. Ora a actriz foi perdendo as palavras até ficar muda, mesmo que no seu interior ela não acredite nessas perdas. Como em Pedro Páramo, o silêncio permite que se apaguem de nós os ruídos e as vozes dos outros para escutarmos a nossa própria voz, o que sucede com a entidade feminina que deixa de verbalizar o que, afinal, passa a falar interiormente. O sobrinho do marido e o médico acham que ela não fala, mas essa (in)aptidão para usar as palavras liga-se ao ofício da escrita como uma criação inquietante. Não deixa, pois, de ser curioso que, no romance de Lobo Antunes seja aquela que duvida e se esquece das coisas (a irmã existe e não existe; o gato morreu com uma injecção dada pelo veterinário; o galgo que desaparece e é apenas uma imagem num avental) quem se ocupe da escrita do livro (p. 193).A escrita-espectáculo-memória aparece-nos em todo o seu esplendor quando Lobo Antunes encontra ligações entre elementos díspares. A título de exemplo, a mulher doente que vai ao cabeleireiro, que se pinta, que se reinventa para parecer e se sentir sã, é comparada ao travestismo; os aplausos do público no teatro são comparados aos do médico e do sobrinho por afinidade quando ela se lembra de algo que a doença parecia ter apagado em definitivo. Isto sem esquecermos que ela desejava que «as pessoas» aplaudissem o pai «ao aplaudirem-me» (Para Aquela…, p. 60), e também que, no final do romance, o pai é referido como um ‘palhaço’ e um ‘pateta’ na direcção de quem ela corre, pois deverá ser ele quem a espera no escuro. O jogo burlesco faz parte da mundividência antuniana, servindo de base para o entendimento do que é a memória:
– Há meses que não a via assim bem disposta a falar do teatro afalar dos pais dá ideia que recuperou a memória lembra-se das traineiras das gaivotaslembra-se de praticamente tudo o estafermo, que misteriosos os matusaléns, dão ideia que a cair e quando menos se espera arrebitam (Para Aquela…, p. 231)
Eis que a memória, definida como misteriosos matusaléns (recordando aqui o Livro do Génesis, onde se afirma que Matusalém viveu novecentos e sessenta e nove anos), será, afinal, a palavra que se deseja longeva, ou seja, a sobrevivência da literatura à passagem do tempo, às brancasque a memória possa ter no espectáculoda vida.
por Norberto do Vale Cardoso
em Jornal de Letras nº 1201 (ano XXXVI)
Outubro de 2016
Este texto foi disponibilizado para o acervo de antonioloboantunes.pt por cortesia do seu autor.
Published on October 14, 2016 13:31
October 7, 2016
Bruno Carriço sobre Da Natureza dos Deuses
Quando estamos a dias do lançamento de mais um livro da já longa bibliografia de António Lobo Antunes (Para aquela que está sentada no escuro à minha espera, 18 de Outubro), acabo de ler o seu mais recente romance editado,
Da Natureza dos Deuses
. Admirador confesso da escrita deste autor, admito que os últimos títulos que lhe li, com uma ou outra excepção, pareciam caminhar para uma espécie de autismo, para um universo cada vez mais fechado. Ia lá cabendo Lobo Antunes e iam-se apertando conforme possível os seus mais devotos leitores, aqueles que já dominam as particularidades da sua escrita, as suas vozes dispersas e sobreposições temporais. É o próprio escritor quem melhor define os seus livros, quando diz que estes não são para ser lidos, que são para se apanhar, como se apanha uma doença. É também ele o primeiro a afirmar que não lhe interessa contar uma história, que quer, isso sim, enfiar a vida entra a capa e a contracapa. E é por estes motivos que eu, mesmo apaixonado por esta escrita (com um ou outro desgosto, como em qualquer paixão), não recomende livros de Lobo Antunes a quem me pede sugestões de leitura. Simplesmente porque é preciso estar disposto a mais do que ler. Avançando até este Da Natureza dos Deuses, não há surpresa na prosa poética com que este se enche, não há surpresa no rendilhado de frases e pensamentos que o autor cria e interrompe a qualquer momento, para concluir adiante. A técnica narrativa é a que vem evoluindo ao longo de toda a obra do autor, com as palavras escolhidas a dedo e as metáforas a alcançarem, quase sempre, o espanto. A vida volta a caber toda num livro. Da pobreza ao triunfo, da solidão às relações, da infância ao envelhecimento e à doença. Do que parece ser aos olhos dos outros até ao que realmente é, ao mais profundo de cada personagem. O que poderá haver de surpreendente neste Da Natureza dos Deuses é a facilidade com que, apesar das inúmeras vozes que o compõem, dos muitos tempos em que é narrado, se segue com clareza a história (sim, aquela que nem sequer é pedra basilar das ideias do autor), feita das muitas histórias individuais (essas sim, uma preocupação de Lobo Antunes) das personagens. Este será, ao contrário dos últimos títulos do autor, um livro mais aberto, mais à feição de leitores que não dispensem um fio condutor na narrativa. Lobo Antunes continua a explorar o poder da palavra, mas deixa bem visível o retrato de um país e de um tempo. A admirável galeria de personagens deste Da Natureza dos Deuses é, salvo raras excepções, desprovida de nomes próprios. Portugal está nas mãos do senhor doutor, que representa o poder económico, e do senhor presidente, que será Salazar sem que em algum momento se diga que é Salazar. É um tempo em que o volfrâmio se negoceia com ingleses e alemães. Também procuram o poder o adjunto do senhor doutor, a secretária do senhor doutor e a secretária do adjunto do senhor doutor. Neste romance quase sem nomes, entre as raras excepções encontra-se Marçal, o empregado do casaco branco, único homem da confiança do senhor doutor. As personagens são muitas, mas todas elas se apresentam de forma única. Sobra uma sobre quem pouco se afirma e tudo se questiona, o enigmático sem abrigo, que eu tomei como a figura do leitor a surgir no livro, mas que pode muito bem ser apenas o sem abrigo, alguém que passa ao lado dos jogos de poder, despojado de haveres, um contraste. Sem revelar mais, por ter já revelado mais do que queria, afirmo que António Lobo Antunes tem, neste livro, um dos melhores livros que lhe li. Um livro Da Natureza dos Deuses. Dos Deuses que só poucos autores conseguem ser.por Bruno Carriçoem Fragmagens03.10.2016
Published on October 07, 2016 14:09
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