António Lobo Antunes's Blog

October 10, 2025

Mário Beja Santos: «Leituras Inextinguíveis - O romance de estreia de António Lobo Antunes»

Uma turbilhonante viagem através de um dia e de uma noite Foi graças a um amigo já falecido que veio eufórico dizer-me, em 1979, que tinha uma bela surpresa para mim, uma prenda de Natal que talvez viesse a marcar a minha vida: "Vais ver, é uma literatura que rompe com todos os cânones, uma prosa desabrida, toda feita de imagens surpreendentes, o gajo é um psiquiatra, rompeu a relação com a mulher que ama profundamente, deve ter sido médico na guerra, está ali um bom bocado da nossa geração, e bem redimida numa escrita inconfundível."
E foi assim que Memória de Elefante , de António Lobo Antunes, Editorial Vega, 1979, entrou na minha vida e veio para ficar. Vamos diretos ao autor. Não esconde a sua profissão, era médico psiquiatra no Hospital Miguel Bombarda, assim começa este devaneio que tem momentos alucinantes e o recurso a uma prática literária que se desconhecia:
          O hospital em que trabalhava era o mesmo a que muitas vezes na infância acompanhara o pai: antigo convento de relógio de junta de freguesia na fachada, pátio de plátanos oxidados, doentes de uniforme vagabundeando ao acaso tontos de calmantes, o sorriso gordo do porteiro a arrebitar os beiços para cima como se fosse voar: de tempos a tempos, metamorfoseado em cobrador, aquele Júpiter de sucessivas faces surgia-lhe à esquina da enfermaria de pasta de plástico no sovaco a estender um papelucho imperativo e suplicante:
          – A quotazinha da Sociedade, senhor doutor.

         Puta que pariu os psiquiatras organizados em esquadra de polícia, pensava sempre ao procurar os cem escudos na complicação da carteira, puta que pariu o Grande Oriente da Psichiatria, dos etiquetadores pomposos do sofrimento, dos chonés da única sórdida forma de maluquice que consiste em vigiar e perseguir a liberdade da loucura alheia defendidos pelo Código Penal dos tratados, puta que pariu a Arte Da Catalogação Da Angústia, puta que me pariu a mim, rematava ele ao embolsar o retângulo impresso, que colaboro, pagando, com isto, em lugar de espalhar bombas nos baldes dos pensos e nas gavetas das secretárias dos médicos para fazer explodir, num cogumelo atómico triunfante, cento e vinte cinco anos de idiotia pinamaquinesca.
Escancara-se o mundo hospitalar, encaramos, sem dó nem piedade, sem artifícios de filigrana, com os profissionais de saúde e os doentes, de supetão apercebemo-nos que aquele médico esgravata na dor da separação da mulher amada e vive nos píncaros da solidão, e é manifesto que tem um passo desacertado com a prática da psiquiatria, tece considerações implacáveis aos delegados de propaganda médica, é procurado por um colega seguramente nacionalista, que lhe grita estridente se ele aprovava a entrega do Ultramar aos pretos e o psiquiatra rende-lhe uma catilinária, onde não falta o furor, a extrema zanga:
        Que sabe este tipo de África, interrogou-se o psiquiatra à medida que o outro, padeira de Aljubarrota do patriotismo à Legião, se afastava em gritinhos indignados prometendo reservar-lhe um candeeiro da Avenida, que sabe este caramelo de cinquenta anos da guerra da África onde não morreu nem viu morrer, que sabe este cretino dos administradores de posto que enterravam cubos de gelo no ânus dos negros que lhes desagradavam, que sabe este parvo da angústia de ter de escolher entre o exílio despaisado e a absurda estupidez dos tiros sem razão, que sabe este animal das bombas de napalm, das raparigas grávidas espancadas pela PIDE, das minas a florirem sobre as rodas das camionetas em cogumelos de fogo, da saudade, do medo, da raiva, da solidão e do desespero?
Vamos vê-lo depois nos serviços da Urgência, a atender um caso graúdo, pai e mãe em grande desavença com o filho adolescente, vêm apelar ao seu internamento, o médico faz-lhe frente: Vocês vão levar o garoto para casa, pianinho e na calma, e voltam cá segunda-feira para uma conversa grande, sossegada, e isto é assunto de falas cumpridas e atempadas, sem pressa. E aproveitem o domingo para olhar para dentro um do outro e do pintassilgo da gaiola.
Vai depois almoçar com um amigo, dá-nos uma descrição bem vincada de um daqueles pronto-a-comer da época, desabafa, segue para o dentista, percorre a cidade, as memórias dançam-lhe febrilmente na cabeça, vai bisbilhotar a saída das filhas do colégio, entra depois num bar, mais uma vez relembra a mulher tão profundamente amada:
          Nunca topei corpo para mim como o teu, disse-se o médico vertendo a cerveja na caneca, tão à medida das minhas humanas e desumanas medidas, as autênticas e as inventadas que nem por o serem o são menos, nunca topei uma tão grande e boa capacidade de encontro com outra pessoa, de absoluta coincidência, de ser entendido sem falar e de entender o silêncio e as emoções e os pensamentos alheios, que me foi sempre milagre o termo-nos conhecido na praia onde te conheci, magra, morena, frágil, o teu antiquíssimo perfil sério pousado nos joelhos dobrados, o cigarro que fumavas, a tua perpétua atenção de bicho, os muitos anéis de prata dos teus dedos, minha única mulher, minha lâmpada para o escuro, retrato dos meus olhos, mar de setembro, meu amor.
Segue a viagem numa sessão de análise, frequenta a terapia de grupo, se já teve um discurso de arrasar com o que se passa no Hospital Miguel Bombarda desvela agora o grotesco da sessão:
          O grupo estava completo cinco mulheres, três homens (com ele) e o grupanalista amerzendado no lugar habitual, de olhos fechados, a brincar com o relógio de pulso pousado no braço da poltrona: meu cabrão, pensou o psiquiatra, uma sessão destas prego-te um pontapé nas partes para verificar se estás vivo e, como se o tivesse entendido, o psicanalista levantou para ele a pálpebra sonâmbula e neutra que se desviou de imediato para um quadro na parede da sala que representava aproximadamente uma paisagem de vila.
Cada um fala de si, o médico cogita que vem ali não sabe há quantos anos e não conhece aquela gente não entende o que eles querem da vida ou o que dela esperam, o leitor fica emudecido com o desarrazoado de toda aquela conversa, o médico parte para a noite de Lisboa, segue pela marginal, entra no casino do Estoril, dá consigo num engate com uma senhora bem crescidinha, Lobo Antunes põe nesta mulher uma tirada em monólogo do bom fingimento à portuguesa, o médico leva-a para a sua casa, esta companheira já bem metida nos anos, de nome Dóri, ali está a dormir de barriga para cima de braços abertos crucificados no lençol, e a dentadura postiça, descolada do céu da boca, respira num ritmo húmido de ventosa. São cinco da manhã, e naquele preciso instante o médico não sente a falta da mulher amada. Faz promessas para o dia de amanhã: será o adulto sério e responsável que a família aguarda, pontual e grave na chegada à enfermaria, limpará a linguagem de obscenidades pontiagudas. E diz, sabe-se lá com que grau de convicção, mas falando para a mulher amada, ele precisa de qualquer coisa que o ajude a existir.
Este romance foi um pontapé de saída, um contributo genuíno para a viragem literária que irá explodir na década de 1980, altura em que se anunciarão outros escritores de alto gabarito. A ritmo frenético, Lobo Antunes irá falar da sua experiência como médico em Angola, não esquecendo a profissão rodada em hospital psiquiátrico. Será um ciclo de romances de onde ele partirá para um conjunto de retratos de costumes do Portugal pós 25 de abril.
Memória de Elefante, mesmo reconhecido pelo autor, é uma obra com profundos desequilíbrios, mas tornou-se o marco miliário de uma nova atitude na literatura portuguesa contemporânea. Lê-se e relê-se com muito gosto é a originalidade na lavra da escrita.


por Mário Beja Santos29.09.2025em Mais Ribatejo
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Published on October 10, 2025 07:17

September 20, 2025

«Presidente da República entregou Grã-Cruz da Ordem de Camões a António Lobo Antunes» 04.09.2025, em Observador

Presidente da República entregou Grã-Cruz da Ordem de Camões a António Lobo Antunes
Agência Lusa, 4 de setembro de 2025via Observador
A condecoração foi atribuída a António Lobo Antunes no passado dia 10 de junho e entregue no primeiro dia de setembro. Lobo Antunes é um dos autores mais lidos em Portugal.
foto de Toni Albir - EPA
«O escritor António Lobo Antunes recebeu as insígnias da Grã-Cruz da Ordem de Camões [...] entregues pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. A condecoração foi atribuída ao autor do Auto dos Danados no passado dia 10 de junho, de acordo com o site da Presidência da República, e entregue na altura do seu aniversário.
António Lobo Antunes nasceu em Lisboa, a 1 de setembro de 1942. Licenciou-se em Medicina, pela Universidade de Lisboa em 1969, tendo-se especializado em Psiquiatria, que mais tarde exerceu no Hospital Miguel Bombarda. Optou pela escrita a tempo inteiro em 1985. O seu primeiro livro, Memória de Elefante, surgiu em 1979, logo seguido de Os Cus de Judas, no mesmo ano, sucedendo-se Conhecimento do Inferno, em 1980, e Explicação dos Pássaros, em 1981, obras marcadas pela experiência da guerra e pelo exercício da Psiquiatria, que depressa o tornaram um dos autores mais lidos em Portugal.
A Fado Alexandrino (1983) e Auto dos Danados (1985), Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (APE), sucedeu-se As Naus, em 1988. Vieram depois Tratado das Paixões da Alma (1990), A Ordem Natural das Coisas (1992), A Morte de Carlos Gardel (1994), Manual dos Inquisidores (1996), O Esplendor de Portugal (1997) e Exortação aos Crocodilos (1999), que lhe deu pela segunda vez o Grande Prémio de Romance da APE.
Numa bibliografia com perto de três dezenas de romances, cerca de metade surgiu nos últimos 25 anos, destacando-se títulos como Não Entres Tão depressa Nessa Noite Escura (2000) e Que farei quando tudo arde? (2001), num percurso que culmina em obras como Diccionario da Linguagem das Flores (2020) e O Tamanho do Mundo (2022).
Pelo meio, surgiram vários volumes de Livro de crónicas e ainda o livro para crianças A História do Hidroavião (1994), ilustrado pelo músico e amigo Vitorino.
A correspondência de guerra, organizada por Maria José e Joana Lobo Antunes, deu origem a D’este viver aqui neste papel descripto (2005), que esteve na base do filme de Ivo M. Ferreira “Cartas da guerra” (2016).
Regularmente indicado como um dos mais prováveis vencedores do Nobel da Literatura, António Lobo Antunes acumulou prémios ao longo de todo o percurso literário.
Em Portugal, recebeu ainda o Prémio D. Diniz da Fundação Casa de Mateus (Exortação aos Crocodilos, 1999), o Prémio Fernando Namora (Boa tarde às Coisas Aqui em Baixo, em 2004), o Prémio Alberto Pimenta de carreira, do Clube Literário do Porto (2008), o Prémio Autores (Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?, 2010), o Prémio Literário Fundação Inês de Castro (O tamanho do Mundo, 2023).
Em França teve o Prix France Culture de Littérature Étrangère em 1996 por A Morte de Carlos Gardel, e o Prémio de Melhor Livro Estrangeiro, por Manual dos Inquisidores, em 1997, romance também distinguido em Frankfurt, na Alemanha, como melhor obra traduzida, no mesmo ano.
Na Áustria, onde foi “convidado de honra” do Festival de Música de Salzburgo, recebeu em 2000 o Prémio de Literatura Europeia do Estado Austríaco. Em Espanha, teve os prémios Rosalía de Castro, em 2001, Terence Moix, em 2008, e o da Extremadura para a Criação, em 2009.
Em Itália, recebeu o Prémio Internacional União Latina, em 2003, o Nonino, em 2014, e o Prémio Bottari Lattes Grinzane, em 2018, enquanto na Roménia teve o Prémio Ovídio, em 2003.
O Estado de Israel entregou-lhe o Prémio Jerusalém, em 2004. No Chile recebeu, em 2006, o Prémio Iberoamericano José Donoso. O México deu-lhe o Prémio da Feira do Livro de Guadalajara (Juan Rulfo), em 2008.
A República Portuguesa condecorou-o com a Ordem da Liberdade, em 2019, 15 anos depois do Grande Colar da Ordem de Sant’Iago da Espada. França deu-lhe o grau de Comendador da Ordem das Artes e Letras, em 2008.
O seu mais recente livro, As Outras Crónicas, chegou às livrarias em outubro de 2023.»

Observadoredição online de 04.09.2025
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Published on September 20, 2025 10:43

Reedições em 2025

Apresentamos as novas capas dos livros reeditados pela Dom Quixote em 2025:

à esquerda: A Ordem Natural Das Coisas (1992), à direita: Ontem Não Te Vi Em Babilónia (2006)

– pode adquirir estes e outros livros em LeYa Online
– consulte opinião de leitura sobre cada um, clicando na ligação activa dos títulos:

A Ordem Natural Das Coisas
Sinopse: Várias personagens monologam. Algumas delas pertencem à mesma família, outras estão ligadas por uma razão fortuita. A história que contam nos monólogos, dois por cada uma das partes do livro, é contada por um escritor a um ex-pide. Uma senhora que morrerá sabe a mesma história de perdas, equívocos, enganos, culpas e sofrimento. Forma, com o «Tratado das Paixões da Alma» e «A Morte de Carlos Gardel», um tríptico sobre a paisagem física e urbana do bairro de Benfica na época da infância e da adolescência do Autor, a casa de família, o tempo mítico e por vezes traumático da infância. A linguagem ficcional de Lobo Antunes alcança neste livro um envolvimento poético que se irá manter nos seus mais afortunados momentos de criação.
Ontem Não Te Vi Em Babilónia Sinopse: Uma noite ninguém dorme, e durante a meia-noite a as cinco da manhã, as pessoas sonham acordadas no sono: contam e inventam as suas vidas e as suas histórias, ou as histórias em que transformam as suas vidas, ou as vidas que transformaram em histórias. Podem ser vidas cruéis, de medo, de uma cicatriz interior, de algo que talvez fosse o Estado português de outros tempos. Podem ser vidas de amores passados, de lápides varridas, de um desejo de uma vida inteira, de se poder ser feliz sem pensar. Nestas histórias, nestes silêncios destas falas, nos risos e nas traições, vamos identificando a noite de um país, a noite cheia de vozes de todos nós, e a noite silenciosa que é o isolamento de cada um. Como diz o autor - “porque aquilo que escrevo poder ler-se no escuro”.
Boas leituras com António Lobo Antunes! 
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Published on September 20, 2025 09:52

August 31, 2025

«O meu tempo é hoje» entrevista de 2015 para a RTP


Entrevista de Fátima Campos Ferreira em janeiro de 2015. Teaser:

Para ver a entrevista, siga o link da RTP Arquivos: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/o-meu-tempo-e-hoje-antonio-lobo-antunes/#content-more
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Published on August 31, 2025 09:45

July 6, 2025

Morten Høi Jensen: «Um grande escritor português capta a alegria e a miséria da vida familiar», sobre Não É Meia Noite Quem Quer

Em Midnight Is Not in Everyone’s Reach [Não É Meia Noite Quem Quer, título original], de António Lobo Antunes, uma mulher confronta-se com uma tragédia antiga ao longo de um fim de semana de verão.
edição em inglês Dalkey ArchiveOs romances de António Lobo Antunes são invenções de uma interioridade em ebulição. Recusam-se a ser resumidos com um simples encolher de ombros. Se as nossas vidas interiores não se deixam facilmente resumir, parece dizer-nos Antunes, porque haveria um romance de o fazer? As suas frases, longas e sem pontuação tradicional, albergam frequentemente várias vozes ao mesmo tempo. E, no entanto, essa polifonia desmente a sua legibilidade essencial; nem sempre se percebe claramente o que está a acontecer, ou quem está a falar, mas o efeito é profundamente absorvente. Sim, pensa o leitor, é assim mesmo que funciona a mente: um tumulto de pensamentos, vozes, memórias meio lembradas ou totalmente inventadas, intrusões e evasões.
Lobo Antunes, frequentemente (e com razão) apontado como candidato ao Prémio Nobel, é provavelmente o maior escritor vivo português, autor de mais de 30 romances e admirado por críticos como George Steiner e Harold Bloom. Nascido em Lisboa, em 1942, Lobo Antunes formou-se em Medicina e exerceu Psiquiatria. Pouco depois de concluir o curso, foi mobilizado como médico militar na Guerra Colonial Portuguesa (1961–1974), uma tentativa longa, dispendiosa e, em última instância, fútil do ditador António de Oliveira Salazar de manter as colónias africanas sob domínio português. A experiência marcou profundamente o autor, que regressou repetidamente à guerra na sua ficção — não apenas pela intensidade do vivido, mas pelo silêncio público que se seguiu à queda do regime, em 1974. “Havia uma espécie de culpa indizível em Portugal”, afirmou. “Toda a gente queria apenas esquecer.”
A narradora de Não É Meia Noite Quem Quer, o mais recente romance de António Lobo Antunes traduzido para inglês, também anseia pelo esquecimento — embora de uma forma mais definitiva. Passado ao longo de um único fim de semana no final do verão de 2011, o romance acompanha a narradora, uma professora, até à casa na costa portuguesa onde passava os verões em criança e onde, significativamente, o irmão mais velho se suicidou no mar quarenta anos antes. “Já não tinha onze anos, tinha cinquenta e dois, ou melhor, aqui tinha onze e cinquenta e dois” (*), reflete a narradora. “Vim despedir-me desta casa, ou do meu irmão mais velho, ou de mim própria.” Também poderá ser significativo que 1971, o ano presumível da morte do irmão, tenha sido o mesmo em que Lobo Antunes foi destacado para Angola.
São estes os poucos marcos de que o leitor dispõe para navegar na narrativa tumultuosa do romance. A primeira frase abre com: “Acordei a meio da noite certa de que o mar me chamava através das portadas fechadas”, e só termina, propriamente dita, na página 32, com o fim do primeiro capítulo. (As três partes do romance, uma para cada dia do fim de semana, dividem-se em dez capítulos cada.) Mas ao contrário de solilóquios longos como os de W. G. Sebald ou Javier Marías, Lobo Antunes escreve frases povoadas de ruído e vozes, e a tradutora Elizabeth Lowe acerta ao compará-las ao jazz, “com improvisações que interrompem o fluxo narrativo e refrões que marcam a melodia”, como refere na nota de tradução.
Uma única página de Não É Meia Noite Quem Quer pode conter vozes de três ou mais personagens, situar-se em diferentes tempos e ser interrompida por uma linha de diálogo ou uma reflexão da narradora. Esta ausência de convenções gramaticais e narrativas exige, é certo, atenção constante; as primeiras páginas podem parecer difíceis de seguir, mas, tal como no jazz, a escrita gera ritmos subtis com o tempo — e o leitor acaba por entrar nesse compasso, cada vez mais absorvido.
À medida que o fim de semana na casa da praia se desenrola, percebemos que a narradora está a fazer um balanço da vida, prestes a tentar um último gesto de justiça ou compensação, revelando pouco a pouco os contornos mais precisos da sua biografia. Ficamos a saber que sofreu um aborto espontâneo e foi submetida a uma mastectomia, que o casamento está em ruínas e que há algum tempo mantém uma relação extraconjugal com uma colega mais velha. Mas sobretudo conhecemos a sua família de infância: o pai alcoólico e desempregado, a mãe distante e fria, o irmão mais velho que se suicida, outro irmão mais velho e sádico que nunca recupera da guerra em Angola, e um irmão surdo que repete incessantemente o trava-línguas: “Sheee saaills seeea sheells”. [no original em português o trava-línguas referido é "Ata titi ata a tia atou."]
Há memórias revisitadas obsessivamente, como feridas: o irmão mais velho a deixá-la sentar-se no guarda-lamas da bicicleta; o pai a desaparecer sempre na despensa para beber das suas garrafas; a mãe a queixar-se sempre a alguém: “Vês a cruz que me calhou?” Outras lembranças — “a quantidade de lixo, enterrado dentro de nós, que ressuscita […] trazendo mais ruínas consigo”, medita a narradora — surgem inesperadamente, e outras ainda nem sequer lhe pertencem: cada uma das três partes do romance termina com capítulos narrados por outra personagem.
Ao longo de quase 575 páginas, este escrutínio implacável da memória revela também algo da sua futilidade desesperada. Incapaz de mudar o passado, a narradora duvida e pondera, acusa e argumenta, recorda ofensas e acerta contas: “O que é que eu fiz?”; “porque é que as pessoas se afastam umas das outras”; “foste tu que o mataste, mãe”; “para onde foram todos”. E com que propósito? Apenas para desejar “paz, e um tecto de oceano em que as ondas se mexam sem magoar”.
A prosa de António Lobo Antunes, viscosa, metafórica e barroca nos romances iniciais, adquire aqui uma substância mais leve, mais hesitante, feita de sobressaltos, lampejos e confusões da consciência: “A morte, não tenho medo de morrer, só tenho medo de sofrer, da dor, mentira, tenho medo do Alto da Vigia, e do meu corpo, do meu corpo a cair e não de sofrer ou da dor, é a morte que me apavora, nenhum irmão mais velho à minha espera na água, eu indefesa e mesmo assim tenho de o fazer, não por ele, por mim.”
Nesta elegia por uma família — ou pela família que poderia ter sido — Lobo Antunes evoca magistralmente a força obsessiva da vida familiar, a intensidade peculiar das suas alegrias e misérias. “Tínhamos falhado a felicidade por um triz”, pensa a certa altura a narradora, “o que é que fizemos mal.” Os leitores não devem deixar-se intimidar pela desordem narrativa ou pela escassez de enredo; Não É Meia Noite Quem Quer é ficção da mais alta qualidade.


por Morten Høi Jensen
artigo em The Washington Post
01.07.2025[traduzido do inglês por José Alexandre Ramos]
(*) Notar que as citações são tradução do artigo em inglês, portanto, citações da versão em inglês do livro. Não foram usadas as citações do original em português na tradução do artigo
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Published on July 06, 2025 09:54

June 28, 2025

Diário de Notícias: «O jogo da tradução de Lobo Antunes que se transformou num vício»

Artigo publicado no DNem 9 de Março 2025
Chegou às livrarias holandesas a tradução de Harrie Lemmens de O Tamanho do Mundo, o último romance de António Lobo Antunes.
Após 14 romances publicados na sua editora holandesa, o tradutor de sempre para esta língua, Harrie Lemmens, encontrou um novo editor para a última obra de António Lobo Antunes, O Tamanho do Mundo , a Van Maaskant Haun. O romance é descrito como contendo “todos os principais temas de Lobo Antunes: a infância, a aldeia e a cidade, a memória, a solidão, as carências e a distância intransponível”, e definido como uma “história muito visual e cheia de humor”, fechando com a afirmação de que “com este livro, Lobo Antunes concluiu com dignidade a sua gigantesca obra”.
Lançado há poucos dias, Harrie Lemmens espera pela reação dos leitores e antecipa que a chegada de cada nova obra do escritor português é sempre “apreciada pela crítica e pelos seus leitores habituais”. Considera que, como todos os “escritores do seu nível, o público não é o de um bestseller, mas as opiniões são sempre muito positivas”. Dá como exemplo a reação a um anterior romance, Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura : “Foi de espanto, mesmo que ao início tivesse de explicar como se o deve ler porque os leitores achavam difícil". O conselho era: «Ler em voz alta dentro da cabeça e ouvir as vozes que falam nesses livros dessa forma. É assim a arte dele, sem dúvida magistral, de um escritor que atingiu um nível fantástico no seu trabalho. O leitor só necessita de se deixar levar e dessa maneira conhecer um dos escritores contemporâneos mais importantes e inovadores.”
O próprio tradutor teve essa experiência ao descobrir a obra do escritor português quando veio viver para Lisboa em 1985. O primeiro romance com que teve contacto foi Fado Alexandrino : “Fiquei intrigado com o romance e tentei lê-lo. Como ainda não compreendia a língua portuguesa, ao tentar lê-lo fui aprendendo o português e este conhecimento deve-se na quase totalidade à leitura desse romance”. Também se interessou de imediato por Os Cus de Judas , que completou a sua “entrada no mundo do escritor”. Seis anos depois de chegar a Lisboa, Harrie Lemmens deu início à colaboração com Lobo Antunes no que respeita à tradução para holandês dos seus livros.
Um dos livros que mais marcaram o tradutor foi Os Cus de Judas devido à dificuldade em entrar no texto: “Precisava de descobrir a maneira de penetrar naquela turbulência, num vendaval e numa catarata de imagens e de metáforas. Não era fácil confrontar-me dentro de uma única frase com três ou quatro metáforas”. Resume o desafio assim: “A tradução foi uma espécie de jogo que se tornou num vício”. Uma dificuldade que já não encontrou no último livro que traduziu, O Tamanho do Mundo: “Já estou muito habituado a Lobo Antunes e ao estilo dos últimos livros, que tem vindo a firmar nos últimos vinte anos e que se tornou na forma definitiva da sua escrita. Acho que este livro é uma bela despedida, em que a guerra não aparece mas estão lá todos os temas fundamentais da sua obra, os da memória. Está tudo muito claro, bem como partes autobiográficas”. Dá um exemplo: “Quando fala sobre o mês de setembro de 1942 e diz que foi um ano em que nada aconteceu, mas é o mês do seu nascimento! É uma espécie de resumo sobre o passado, insistindo nos seus temas fundamentais. Contudo, cada livro é sempre um mundo novo”.
O processo de tradução não é mais complicado em António Lobo Antunes do que nos outros autores que tem traduzido para a língua holandesa, por exemplo, José Saramago e José Eduardo Agualusa, entre outros. A razão, explica Harrie Lemmens, é simples: “Não é mais difícil, é diferente. Cada autor cria dificuldades próprias devido ao estilo, no entanto, após ter traduzido tantos livros de Lobo Antunes já sinto de antemão aonde o texto me vai levar. Claro que cada livro é um outro livro e uma outra relação, o que me obriga a reconhecer a originalidade do texto e encontrar uma equivalência para o holandês. A experiência facilita o processo, mas não se pode comparar a dificuldade em traduzir Os Cus de Judas com O Tamanho do Mundo; reconheço a voz do autor, mas o estilo e o formato são outros. Apesar disso, quem lê um novo livro dele reconhece sempre o tom, apesar de ser difícil associar o último romance aos primeiros para quem o começa a ler agora." Se tiver de fazer uma comparação com os romances de Lobo Antunes com alguns pintores, Lemmens não tem dificuldade em as encontrar: “De início, o seu registo era o de Hieronymus Bosch, com o mundo quase surrealista daquelas imagens do inferno; lentamente, foi seguindo em direção a um Francis Bacon. Este é agora o mundo de Lobo Antunes, aquele em que aparece em retratos distorcidos”.
Harrie Lemmens não tinha por hábito levantar muitas dúvidas a cada tradução que fazia dos romances de Lobo Antunes: “Não costumo fazer muitas perguntas; do que gosto é conhecer os escritores que traduzo. Ver a cara, conhecer a pessoa, ouvir a voz e conversar. Essa é a parte importante para mim e foi que aconteceu com ele. Conheço-o desde 1986, muitos anos antes de o começar a traduzir. Isso ajudou-me muito. Somos amigos, sei que às vezes tem uma relação difícil com as pessoas, mas tem um outro lado, o de ser muito caloroso. Por exemplo, nas apresentações públicas comporta-se muitas vezes no início como um adolescente, sem vontade de falar; depois avança e seduz a plateia. Lembro-me de uma vez em Bruxelas ter feito um monólogo de 45 minutos muito forte, no qual disse «Nunca saímos da guerra». A frase que vivia na cabeça dos soldados que lutaram em África ou em qualquer outra guerra. Ou como nas crónicas, em que conseguia em duas páginas contar a vida inteira de alguém. Nunca me esqueço de uma, a melhor para mim, a que descrevia como a morte se aproxima lentamente da pessoa, «como um cachorro atirado para um abismo», uma frase do romance de Malcolm Lowry, Debaixo do Vulcão.”
Quanto às dúvidas nas traduções, Harrie Lemmens considera que o escritor não deve ajudar no processo: “Cabe ao tradutor resolver os problemas com que se confronta, principalmente no caso do holandês, que tem dificuldades muito específicas. Não me lembro de lhe ter feito muitas perguntas, até porque a relação entre escritor e tradutor tem várias modalidades: há os que adoram receber perguntas do tradutor, outros que detestam: os que desconfiam se o tradutor não levanta questões e outros quando são muitas as dúvidas.”
Quanto à próxima tradução da obra de António Lobo Antunes ainda está tudo em suspenso, como Lemmens explica: “Gostaria que fosse o Memória de Elefante , também As Naus , de que gosto muito. São duas possibilidades, mesmo que exijam um certo conhecimento por parte do leitor holandês que este não possui porque têm muitos personagens históricos portugueses. Há outros que merecem ser traduzidos também: A Morte de Carlos Gardel , que é fantástico, o Tratado das Paixões da Alma e o Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo , outro de que gosto muito. Todos eles contêm imagens muito fortes que só Lobo Antunes consegue.”

fonte: Diário de Notícias artigo de João Céu e Silva09.03.2025
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Published on June 28, 2025 04:25

June 18, 2025

António Lobo Antunes entrevistado por Clara Ferreira Alves (1997)

É interessante ouvir (ou voltar a ouvir) António Lobo Antunes aos 54 anos, logo após a publicação de O Esplendor de Portugal (1996). Recupera-se aqui a entrevista conduzida (dificilmente conduzida) por Clara Ferreira Alves no programa da RTP "Falatório" (1997).



fonte: RTP Arquivos
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Published on June 18, 2025 15:26

May 1, 2025

Centro de Investigação António Lobo Antunes na biblioteca municipal de Nelas

O Município de Nelas inaugura este ano o Centro de Investigação António Lobo Antunes, na biblioteca com o seu nome, com espólio doado pelo escritor e em diversas línguas, anunciou o presidente da Câmara.
“Estamos a falar de um centro de investigação nacional, não de Nelas, do maior autor português, António Lobo Antunes que, como todos sabem, se afirma como nelense, o que para nós é um grande orgulho e regozijo”, disse Joaquim Amaral.
O projecto foi ontem (28.04.2025) entregue em mãos à ministra da Cultura, Dalila Rodrigues, e a Cristina Lobo Antunes, esposa do escritor, presentes numa cerimónia no salão nobre da Câmara de Nelas, no distrito de Viseu.
Segundo Joaquim Amaral, o projeto “está consignado em rubrica do orçamento”, mas ficou também assumido o “compromisso de financiamento” por parte da ministra da Cultura, em 50%.
“E depois há também uma outra forma que foi explorada, quer com a senhora ministra, quer com os representantes do Governo, de que poderá haver mais financiamento, porque trata-se de um projeto nacional e não local”, adiantou.
O centro ficará instalado na Biblioteca Municipal António Lobo Antunes, no “espaço central que vai ser reformulado para esse efeito”, num investimento de cerca de 120 mil euros e, com o tempo, “se o projeto assim se justificar poderá a biblioteca ser ampliada para esse efeito ou, quem sabe, ser construído um edifício de raiz”.
Com inauguração prevista para este ano, no feriado municipal (24 de junho) ou, “a pedido do autor, na sua data de nascimento” (1 de setembro), o centro terá um “espólio doado por António Lobo Antunes”.
“Além de todas as obras de António Lobo Antunes, em todas as línguas, teremos tudo o que é investigação produzida sobre o escritor e as suas obras, em todas as línguas também, porque há milhares de obras, trabalhos académicos e artigos de investigação” sobre o autor que passava a infância em Nelas, em casa dos avós.
A esposa do escritor, Cristina Lobo Antunes, presente na cerimónia, disse aos jornalistas que “Nelas é um sítio muito emocional para o António [Lobo Antunes] e a ligação a Nelas é de coração”.
“É para mim especialmente emocionante vir aqui, porque encontro o António de várias idades, algumas das quais não conheci, como a infância, mas encontro em cada esquina e fico a conhecer um bocadinho mais dele e releio as obras, depois de conhecer Nelas e já leio de outra forma”, disse.
Cristina Lobo Antunes acrescentou ainda que o escritor “apoia e incentiva totalmente” esta iniciativa e “só não marcou presença” em Nelas porque “a saúde não permitiu”.
A ministra da Cultura acrescentou que a “obra está traduzida em mais de 40 línguas” e, também por isso, este centro de investigação, no entender de Dalila Rodrigues, permite “colocar numa escala global, um escritor que existe para além de Nelas, mas que tem em Nelas uma referência fundamental”.
Também hoje (29.04.2025), o Município de Nelas inaugurou sete bancos de jardim numa das principais artérias da vila com gravações de frases de António Lobo Antunes. O presidente disse que “o objetivo é alargar a todas as ruas” do centro do município.


fonte: Agência Lusavia Comunidade, Cultura e Arte 29.04.2025
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Published on May 01, 2025 10:02

April 14, 2025

Joaquim Margarido: opinião de leitura sobre A Outra Margem Do Mar

Quem ler António Lobo Antunes pela primeira vez, sentir-se-á, porventura, atraído por um estilo de escrita invulgar e que desperta sentimentos de uma profunda admiração. É deveras fascinante a forma como o autor se mostra capaz de pegar numa história e de a contar numa perspectiva vincadamente pessoal, a narrativa tornada amálgama de emoções, as coisas, os lugares e as pessoas reféns de uma lógica circular onde passado e presente se misturam e confundem. Porém, para todos os outros a quem o universo de Lobo Antunes não é alheio, “A Outra Margem do Mar” traz com ele um gosto a comida requentada, so(m)bras da véspera que perderam o vigor, o sabor e a novidade, que a custo se levam à boca, se mastigam e engolem.
A Outra Margem do Mar é o regresso do autor a Angola, fazendo incidir o seu olhar sobre o 4 de Janeiro de 1961 e o massacre da Baixa de Cassanje, momento crucial na afirmação do nacionalismo angolano moderno e momento zero da chamada Guerra do Ultramar. Resultando na chacina de centenas de trabalhadores negros daquela região algodoeira pelas forças armadas de Portugal, potência colonizadora à data, este episódio precedeu a ameaça de um desembarque do paquete “Santa Maria”, desviado por oposicionistas chefiados pelo capitão Henrique Galvão, os sangrentos assaltos às prisões, Casa de Reclusão e Esquadra da P.S.P de Luanda e, logo de seguida, os ataques perpetrados pela U.P.A. no Norte de Angola.
Com engenho e minúcia, o autor eleva à figura de protagonistas, a par do vento e da vastidão da paisagem, um militar de alta patente e um proprietário agrícola, ambos oriundos “da outra margem do mar”. À sua volta, sob o olhar atento de dezassete gaivotas pousadas no telhado de um armazém, gravitam um conjunto de personagens, dos superiores hierárquicos aos guerrilheiros, dos familiares directos às “damas de companhia”, peças solitárias numa deriva sem rumo nem fim à vista, peões de um jogo sem regras que vão caindo um após outro. Neste recuperar de memórias reside o grande mérito do livro. No demais, “nada diz, nada acrescenta, nem mexe o fundo à panela.”

por Joaquim Margaridoem Erros meus, má fortuna, amor ardente10.05.2020
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Published on April 14, 2025 10:29

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