Luiza Frazão's Blog, page 8

April 23, 2020

ENCONTRAR CALAICA



Podes ir pela rua e de repente encontrar a Cale. Mas para isso acontecer é melhor ires à província, descer ao país profundo. A Cale veste-se de negro, porque toda a gente da sua geração, pelo menos, já desencarnou. Resta ela, a resiliente. Lembro-me de umas quantas epifanias de Cale na minha vida. Numa peregrinação à Cova da Iria, por exemplo, na véspera dum dia 13 de Maio, vimo-la passar, magrinha, sequinha, ultrapassando tudo e toda a gente na rapidez desembaraçada e ritmada do seu passo que já vinha assim desde o Norte. Ainda mal refeitas do nosso espanto, ao vermos como, naquela que era a derradeira etapa do nosso percurso, a famosa e dolorosa “recta de Fátima”, ela, a Cale, magrinha e sequinha, vestida de negro, de lenço atado na cabeça, se movia, antes de podermos articular palavra, já a tínhamos perdido de vista. Devia ter perto de 80 anos, e foi um espanto e um profundo respeito e quase embaraço da nossa parte, por sermos muito mais novas e tão mais lentas, pesadas e cansadiças.
Mas a Cale é de outra dimensão. Por onde passa, ela deixa um rasto, ou um borrifo, de profundo reconhecimento, anagnórise, será o melhor termo para o que acaba de nos acontecer. Sabíamos que ela devia existir porque lemos a respeito nas histórias antigas, mas não tínhamos bem ideia de onde procurar, e de repente acontece qualquer coisa, como uma brisa fresca de liberdade, que faz um upgrade na nossa coragem e alarga a nossa visão da vida, da extensão da duração da vida e da excitação de se estar viva, porque lá no fundo pode estar a Cale.
Uma vez encontrei-a do lado de dentro do balcão de um café para os lados dos Amiais de Cima. Vestia de negro, mas não era uma saia e blusa e um avental qualquer. Era um vestido bem feito, marcado na cintura, com um xaile pelas costas. Tinha um olhar frontal e usava cordão e brincos de ouro e todo o conjunto denunciava um atitude de quem é muito senhora de si e não precisa de impressionar ninguém. Mas impressionava, sobretudo ali naquele lugar, numa aldeia onde ninguém se veste nunca assim. Apetecia copiar-lhe o estilo, mas ainda era preciso cultivar muito a Cale em si para aquilo cair como caía nela. Há poucos anos lembrei-me e fui de propósito lá só para a ver de novo, mas já tinha partido para o Jardim das Hespérides.
A Nazaré também é um lugar onde ainda se pode encontrar a Cale. Num dia de sorte, podes encontrá-la ocupada com alguma coisa ou simplesmente com nada, sentada no areal à beira da marginal, já me aconteceu. De xaile cobrindo a cabeça. Ou de lenço. Se o teu olhar se encontrar com o dela, é possível que te aconteça viajares em pânico para algum lugar recôndito e mal cheiroso da tua alma que com tanto cuidado pensavas estar preservado, desinfectado e selado.

No Norte também é provável que a encontres. Mas entre os ambientes onde não se dá, o pior deve ser aquele onde um fluxo televisivo ininterrupto mantém a cabeça numa frequência de idiotice, vazia de qualquer ideia ou pensamento original, observando acontecerem coisas mirabolantes em que não se é tida nem achada.
De resto, a Calaica é muito desconfiada, não vais encontrá-la em nenhuma fila de farmácia, sala de médico de família, lar de terceira idade, onde te tratam de “menina” para baixo e te imbecilizam e te provam que não és capaz e te fazem duvidar de que alguma vez sequer o tenhas sido. A Calaica fenece nesses lugares de pura irrelevância. Ela precisa de vida a acontecer na guelra, de movimento, de desafio, de giro, do ar da madrugada, do pó da estrada nas plantas dos pés, da água dos córregos, do vento e da geada, de gravetos para a fogueira, de ir e de vir, de ser tida e achada. Abençoada.

©Luiza Frazão


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Published on April 23, 2020 17:50

March 17, 2020

MEDITAÇÃO PELA CURA E PELO RESGATE DA DIMENSÃO DO JARDIM DAS HESPÉRIDES


Horário: 21h00
Neste horário, sugiro que te unas a nós acendendo uma vela junto do teu altar - caso tenhas, com a própria Chama do Jardim das Hespérides –, sugiro que encontres o teu centro através da respiração consciente e visualizes a trilogia formada pelas Deusas tutelares do nosso território, Senhoras dos três mundos, do Mundo do Meio, a Anciã Cale; Hespéria/Ibéria, Deusa solar do supramundo; Ophiusa, a Deusa Serpente do inframundo. Visualiza-As emitindo raios da poderosa Luz Dourada do Jardim das Hespérides, a dimensão da Deusa do nosso território,  irradiando puro Amor, Força, Sabedoria, Compaixão, Poder de Transformação, de Transmutação e de Cura. Visualiza essa luz dourada e quente inundando todo o teu corpo, todas as tuas células limpando-as e regenerando-as, e depois sente e visualiza essa energia irradiando para além de ti, indo muito para além de ti e do lugar onde te encontras, limpando, desinfectando, transmutando, curando, regenerando, abrangendo cada vez maiores distâncias até cobrir todo o planeta... Sente o poder do Amor e Compaixão da Deusa e visualiza as pessoas felizes por poderem de novo abraçar-se, festejar em grandes grupos. Sente o alívio e a alegria, vê o sorriso, ouve o riso das pessoas juntas celebrando a vida com prazer, apoiando-se e ajudando-se mutuamente...Junt@s podemos resgatar ou cocriar, neste momento de profunda mudança, a energia do nosso Jardim Dourado das Hespérides, a nossa dimensão da Deusa. Abençoada seja a Deusa e nós tod@s


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Published on March 17, 2020 15:36

February 13, 2020

SOBRE O CURSO MAGNA MATER

Lendo o último dos trabalhos, o Módulo 8, enviado por uma aluna do Brasil. Delícia. Quanto trabalho, entrega, discernimento, profundidade… Amo este curso, sim.Ela diz ”Precisei desse tempo a mais para retirar proveito dos últimos insigths que esse grande estudo pode me proporcionar.Foi realmente mágico. Digo no termo literal da palavra. Pude experimentar em terceira dimensão cada energia da Deusa, da estação, e a poderosa transformação, ou iniciação, que ia causando em mim e em minha vida. Sim somos sacerdotisas... e jamais poderíamos servir se não fôssemos iniciadas nada mais nada menos que pela energia da grande Deusa. Senti fortemente grandes trasnformações.E gostaria de continuar aprofundando os estudos...” 
http://culturaeespiritualidadedadeusa.blogspot.com/
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Published on February 13, 2020 04:42

October 10, 2019

O REGRESSO DAS SACERDOTISAS DA DEUSA DO JARDIM DAS HESPÉRIDES

É muito auspicioso ver que as Sacerdotisas da Grande Deusa ancestral por todo o lado estão a despertar, a regressar, reclamando uma função que foi delas/nossa, por milénios e depois lhes/nos foi usurpada pelo recurso a grande violência e no meio de grande sofrimento. Porém, o tempo é chegado de curarmos essas feridas, as dores e os traumas deixados na nossa alma por esses eventos do passado, cuja memória na verdade está contida nas nossas células, e de, em sororidade e fraternidade, reconstruirmos uma vez mais o Templo da Grande Deusa, sendo o Seu veículo para que sobre o mundo se derramem de novo as Suas bênçãos de Amor, de Abundância, de Paz, de Alegria, de Inclusividade e de Cura. 
O MEU DESPERTAR PARA A DEUSA
Comecei o meu caminho espiritual no final dos anos 90, quando fui estudar Astrologia para o Quíron, com a Astróloga Maria Flávia de Monsaraz. Essa foi a primeira etapa duma longa caminhada, antes de mais de autodescoberta, que acabou por me conduzir até à Deusa. Depois de várias formações no âmbito do Desenvolvimento Pessoas, foi o encontro com a obra de Jean Shinoda Bolen, nomeadamente, Travessia para Avalon, aí por volta de 1997, que me trouxe a conexão com a Deusa e com Glastonbury/Avalon, onde fui pela primeira vez em 2009. De Jean Shinoda Bolen li também As Deusas em cada Mulher, enquanto fazia um curso sobre Arquétipos do Feminino. Criei depois eu mesma outros, inspirada na mesma obra, mas agora olhando já em outras direcções como foi o caso do trabalho da brasileira Mirella Faur, entre outras. E aí, a magia e o poder da Deusa começaram a revelar-se…
Posso dizer que no Templo da Deusa de Glastonbury, em 2009, a Deusa mudou o meu destino para sempre e quatro anos depois fazia a minha dedicação como Sacerdotisa de Avalon nesse mesmo lugar ,onde vivi por dois anos e onde regresso regularmente, conduzindo até grupos de peregrinas e de peregrinos, como foi recentemente o caso.
ABRINDO O PORTAL DO JARDIM DAS HESPÉRIDES
Logo no início da minha formação senti grande entusiasmo pela pesquisa das tradições da Deusa no território nacional, e o resultado desse trabalho deu um livro: A Deusa do Jardim das Hespérides, edição da Zéfiro. Nas minhas buscas e demandas descobri que, tal como Avalon, também nós temos uma dimensão sagrada, ocultada pelas brumas, designada no mundo antigo por Jardim das Hespérides. Hespéride, da Hespéria, termo com origem na palavra grega que significa Ocidente. Aí se contava maravilhas de um Jardim situado no extremo ocidente da Europa onde havia as famosas maçãs de ouro da imortalidade. E a verdade é que havia mesmo muito ouro e outras riquezas, sendo a paz e a harmonia possivelmente a maior de todas elas. A Idade de Ouro matrifocal, aqui nesta zona periférica da Europa, perdurou até mais tarde, dando origem ao mito que chegou até nós pela pena de alguns autores clássicos.
Esse Jardim pertencia à Deusa Hera, proprietária das maçãs de ouro, que as Nove Irmãs do Poente, homólogas das Nove Musas gregas e de outros grupos de nove mulheres míticas presentes na memória de várias culturas do mundo, guardavam. Eram, entre outras coisas, sacerdotisas da Deusa, da Senhora da Terra, ainda o sacerdócio  no feminino não havia sido interditado. Um dos dez mil milhões de nomes dessa mesma Deusa era o de Hera, ou Héspera, a estrela da tarde, que também tem o nome de Vénus, ou Hespéria/Ibéria. Outro desses nomes e faces é Cale, Calaica, Cailícia, Beira, ou Iria, ou Brígida, Brigântia, Trebaruna, Atégina ou Nábia… e muitos mais. A Deusa, conforme podemos descobrir ao investigar os vestígios deixados no território, foi aqui reconhecida por várias denominações que exprimiam as características do Seu território, do Seu povo, da Sua face, mais jovem ou mais anciã, mais invernosa ou estival.
RESGATAR UMA HERANÇA INSPIRADORA PARA O NOSSO FUTURO
O Jardim das Hespérides é pois a nossa Avalon, a nossa dimensão da Deusa, que nos fala duma Idade de Ouro, duma era de paz, inclusividade, sustentabilidade, harmonia e equilíbrio entre o Feminino e o Masculino, próprio das sociedades onde as mulheres detiveram e detêm real poder, da chamada gilania de que nos fala Riane Eisler na sua obra-prima de leitura indispensável O Cálice e a Espada. Termos esta herança cultural é algo de tão precioso e inspirador que não hesitei em dedicar-lhe a Roda do Ano que entretanto criei, inspirada pela minha pesquisa na tradição do território e pelo meu treino de Sacerdotisa de Avalon feito no Templo da Deusa de Glastonbury, com Kathy Jones e Erin McCaulif.
Baseado nessa mesma Roda, com as suas Deusas, Hespérides, Mouras, Árvores sagradas, animais totémicos, símbolos, mitos, lugares sagrados, tradições, vivências e cerimónias, criei um treino de Sacerdotisa e de Sacerdote da Deusa do Jardim das Hespérides que já vai na terceira edição. Já temos até uma Irmã das Hespérides (título que se consegue após a dedicação que acontece como conclusão da Primeira Espiral/ano de estudos) no Brasil, mais propriamente em Florianópolis, onde no próximo Festival da Deusa, que aí terá lugar a 6 e 7 de Dezembro, ela irá apresentar esta nossa Roda do Ano da Deusa do Jardim das Hespérides, reclamando também esta herança céltica como parte do legado português levado pela colonização para esse vasto território do Hemisfério Sul.
SER UMA SACERDOTISA DA DEUSA
Na verdade, este treino permitir-te-á dinamizares oficinas e vivências, dar palestras e criar cerimónias inspiradas na tradição da Deusa, ancoradas na energia do nosso território. Após os dois anos de formação, a tua função de Sacerdotisa e de Cerimonialista da Deusa possibilita-te dinamizar workshops e cerimónias para as mais diversas finalidades e ocasiões, criar ou participar em inúmeros eventos inspirados na Deusa, permitindo-te expandir a tua criatividade e talentos até… ao infinito!
RECONSTRUINDO O SEU TEMPLO
É maravilhoso ver como as Sacerdotisas da Grande Deusa ancestral por todo o lado estão a despertar, a regressar, reclamando uma função que foi nossa, por milénios e depois nos foi usurpada pelo recurso a grande violência e no meio de grande sofrimento. Porém, o tempo é chegado de curarmos essas feridas, dores e traumas deixados na nossa alma por esses eventos do passado, cuja memória na verdade está contida nas nossas células, e de, em sororidade e fraternidade, reconstruirmos uma vez mais o Templo da Grande Deusa, sendo o Seu veículo para que sobre o mundo se derramem de novo as Suas bênçãos de Amor, de Abundância, de Paz, de Alegria, de Inclusividade e de Cura. 

Lembrando que a Primeira Espiral recomeça no próximo dia 2 e 3 de Novembro.
Se sentes o apelo contacta-nos através do email: jardimdashespéridestemplo@gmail.com.Informação 


Abençoada seja!
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Published on October 10, 2019 15:26

A SENHORA DO VERÃO E A ANCIÃ DO INVERNO DO NOSSO TERRITÓRIO

Escrevia  este texto quando um amigo, que se encontrava por acaso na nova basílica da Cova da Iria, me enviou esta imagem...


Ainda hoje fica bem claro quando erguemos o véu do mistério que recobre a dimensão da Deusa entre nós que Ela continua a ser cultuada essencialmente como Deusa Dupla. Ela é a Senhora/Rainha, do Verão, Iria, Aquela que apareceu na sua Cova num certo dia 13 de Maio pela primeira vez, e repetiu a aparição por mais 5 meses até que em Outubro se despediu, ou seja, precisamente seis meses depois, ficando oculta na outra metade do ano, na mais escura, fria e hibernal, como a Anciã do Inverno.
E até temos um mito semelhante àquele que tem a donzela Perséfone e a Sua mãe Deméter, ou Proserpina e Ceres, como protagonistas, que nos conta que a 20 desse mesmo Outubro, que é quando acaba o bom tempo, Ela é morta. Em Tomar. 
A nossa Deusa Donzela, filha quem sabe de Aire, cujo nome é uma inversão do Seu e batizou a serra onde "apareceu", é morta junto ao rio Nabão. O Seu corpo é então levado por este rio até ao Zêzere, descendo depois pelo Tejo onde acaba por ser encontrado no lugar da Ribeira de Santarém. 
Podemos imaginar até - por que não? - que o rapto/morte/martírio de Iria poderia estar no centro de celebrações anuais semelhantes aos Mistérios de Elêusis, na Grécia, que actualizavam o mito do rapto de Perséfone, o mito da alternância das estações, e que aqui envolveriam águas de três rios importantes. O rio da morte era afinal um motivo muito comum às culturas da antiguidade. O mesmo Hades, senhor do inframundo, que rapta a donzela, que em Roma se chama Proserpina, tem uma porta no castelo de Tomar… 
Iria, a que pela Sua semelhança com a Brígida celta, denomino de Iria-Brígida, tem uma mitologia tão rica no nosso território, em particular no triângulo Cova da Iria, Tomar e Santarém, que dói na alma ver como vestígios físicos da Sua manifestação terrena, o que resta daquilo que a lenda diz ter sido o Seu convento, foram entregues a empresários privados para serem transformados em hotel, delapidando-se assim uma riqueza cultural incalculável, como só um povo amnésico e ou ignaro e miserável de espírito se pode dar ao luxo de fazer. É na verdade um bem que pertence a todas e a todos nós, à nossa história e cultura, que foi alienado por quem o deveria proteger e preservar para benefício de toda a gente. Acho muito triste e muito grave, sobretudo pelo grau de atraso endémico e de ignorância que nos é mostrado por acções como estas… E com o convento vai-se o Seu pego ou cisterna de águas sagradas, milagrosas, de cura...
E é agora precisamente quando por todo o lado se investiga e se resgata a herança perdida, obliterada, da Deusa, quando o sagrado feminino é o tema do dia, que acontece este crime de lesa cultura, desvalorizando-se precisamente o espólio da nossa Santa/Deusa mais importante e mais viva na cultura, cantada pelo povo e por poetas como Almeida Garrett, tema de inúmeras teses e investigações, celebrada em cada recanto do país com feiras e romarias... Não, isto não passa pela cabeça de ninguém em seu juízo perfeito... 
E, não, lamento, Ela não é secundária em relação a Fátima, Ela é a própria! Ela é a própria Deusa que todos os anos, meses, dias atrai multidões a um lugar que na verdade não tem o nome de Fátima mas sim de Cova da IRIA! 
"Cova", certo? Alguém aí por acaso já parou para pensar neste topónimo?
Imagens: Basílica da Santíssima Trindade, Cova da Iria
               Cisterna/pego de Santa Iria, Tomar (Google)

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Published on October 10, 2019 13:24

September 3, 2019

A GILANIA DE JESUS



Comentário sobre a gilania de Jesus defendida pela autora Riane Eisler em O CÁLICE E A ESPADA
“Jesus pregava o amor universal, a igualdade entre todos. Ele denunciava as classes dominantes, não apenas os ricos e poderosos, mas também as autoridades religiosas. A autora fala que a partir da nova perspectiva da Teoria da Transformação Cultural é possível discernir um tema espantoso e unificador: a visão da liberação de toda a humanidade através da substituição dos valores androcráticos por valores gilânicos. Em toda a trajectória de Jesus, fica evidente a presença de mulheres como discípulas e líderes cristãs. Não parece que ele tenha feito diferenciação entre homens e mulheres, pelo contrário, para os padrões androcráticos da época em que viveu, ele defendia valores de igualdade entre todos. Como em outras ocasiões de ressurgimento gilânico, a resistência do sistema da época de Jesus foi muito forte. E os patriarcas da Igreja nos deixaram um Novo Testamento, onde essa ideologia pregada por Jesus ficou sufocada pela superposição de dogmas contraditórios, que foram necessários para justificar a posterior estrutura e objectivos androcráticos da igreja. Para conhecermos a verdadeira natureza do cristianismo primitivo é necessário sair das escrituras oficiais e recorrer a outros antigos documentos cristãos. Entre eles, o mais importante e revelador é o conjunto de 52 evangelhos gnósticos desenterrados em 1945. Esses ficaram enterrados por quase 1600 anos e são anteriores aos evangelhos do Novo Testamento. O que de mais importante encontrado nesses evangelhos, é o que fez com que Jesus fosse morto, ou seja, o acesso à divindade não depende de uma hierarquia religiosa encabeçada por um alto rabino, bispo ou papa. Esse contacto divino é possível directamente através do conhecimento divino. Nesses documentos fica claro também que Maria Madalena foi uma das figuras mais importantes para o movimento cristão primitivo. Isso talvez seja o que mais incomodou a igreja ortodoxa hierárquica, o fato de Jesus colocar em posição de igualdade as mulheres. Esses primeiros cristãos e cristãs ameaçavam o poder crescente dos patriarcas da igreja e constituíam um grande desafio à forma como as famílias patriarcais estavam estruturadas: dominadas pelos homens. O que defendiam ameaçava a autoridade do homem sobre a mulher como fruto de ordenamento divino. O cristianismo primitivo era visto como uma ameaça pelas autoridades hebraicas e romanas e não apenas porque esses cristãos se recusavam a adorar o imperador e prestar lealdade ao Estado, mas principalmente porque eles questionavam s tradições das famílias vigentes, considerando as mulheres como pessoas com seus próprios direitos.Como antes e a maioria das que vieram depois, o cristianismo tornou-se uma religião androcrática. E o evangelho do amor do cristianismo original desandou terrivelmente. O Império Romano foi substituído pelo Sagrado Império Romano.”Já no ano 200 d. C o cristianismo estava se tornando exactamente o tipo de sistema hierárquico e calcado na violência que Jesus tanto se rebelou contra. E depois da conversão do Imperador Constantino, o cristianismo se tornou um braço oficial, ou servo, do Estado. Os líderes da igreja passaram a comandar pessoalmente a tortura e execução de todos que não aceitassem a “nova ordem”. Em vez de ser um espírito absoluto, como mãe e pai, Deus tornou-se explicitamente masculino.” JSF
Imagem: Josefa d'Óbidos, Santa Catarina, igreja de Santa Maria, Óbidos
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Published on September 03, 2019 14:29

September 1, 2019

A INSPIRAÇÃO DE CRETA PARA UM JARDIM DAS HESPÉRIDES


Este texto já foi escrito há alguns anos, numa altura em que apenas sonhava com Creta, não sabendo bem como e quando conseguiria concretizar o meu sonho... Ele entretanto concretizou-se em junho de 2015 e estas são as fotos tiradas na altura. Na última, estou deitada sobre a areia da praia de Malia e quando olho sobre a minha esquerda lá está a Deusa recostada na paisagem... pura epifania...
Foi este livro, O Cálice e a Espada, e a sua autora, Riana Eisler, que me ajudaram a perceber por que é que no Movimento da Deusa toda a gente, ou já foi a Creta e a Çatal Hüyük, ou se prepara para ir, ou quer repetir a experiência.Estas sociedades aparecem como o grande momento de glória das sociedades ginocêntricas - muito mais correcto, na perspectiva da autora, do que dizer “matriarcais”. Na verdade não havia domínio das mulheres sobre os homens, mas sim parceria, cooperação, entre os dois géneros, embora os valores que regiam a sociedade tivessem a ver com o feminino e as mulheres detivessem grande autonomia, liberdade e poder. A sociedade cretense é na realidade o tal Eldorado, porque aí se encontraram vestígios dum modelo de organização social que funcionou muito bem, e tudo leva a crer que isso se deveu ao exercício do poder no feminino.Aqui a religião estava altamente ligada à arte a à recreação e ocupava uma parte muito considerável da vida. A alegria de viver é reconhecível em cada objecto de arte, o desenvolvimento económico é grande, a distribuição da riqueza é muito equitativa e o nível de conforto muito elevado. Não se nota que haja ambição pessoal nem o culto da personalidade: nenhum-a autor-a assina as suas obras, nenhum rei regista em crónicas, ou através de estátuas imponentes, os seus feitos heróicos. Daí pensar-se que não seriam reis, mas sim… rainhas!Não se verifica qualquer sinal de idealização da violência masculina nem da força destruidora. Nestas sociedades o poder era interpretado como responsabilidade, como cuidado com o bem comum, que era o mais importante.Estou fascinada com Creta! A nossa Meca! Também quero lá ir logo que possa, ainda por cima, as praias são lindíssimas…
O NOSSO JARDIM DOURADO
Será que também nós aqui poderíamos estar agora a desbravar e a mostrar ao mundo a luz vibrante e inspiradora duma sociedade ginocêntrica florescente do tipo da de Creta ou de Çatal Hüyük? A nossa querida Dalila Lello Pereira da Costa acha que sim. Para ela, nunca nós conhecemos verdadeiro progresso nem desenvolvimento como no Neolítico, em que a sociedade era… ia dizer “matriarcal”, mas não digo, era ginocêntrica.Ginocêntrica, diz a Riane Eisler, é muito mais correcto.
UMA HISTÓRIA QUE NÃO É NOSSA
Qual séc. XVI, qual quê! Como é que nós mulheres podemos enaltecer um tempo em que os homens (não confundir, foram eles!) saíram daqui para impor a outros povos que estavam sossegadinhos no seu canto, a sua Lei da Espada, a escravatura, a conquista, a dominação?!Essa não é a nossa história, queridas irmãs, e precisamos de nos distanciar dela se queremos chegar a algum lado. Não esquecer que primeiro, antes de agirem dessa maneira reprovável em todos os sentidos, tiveram eles de nos dominar e escravizar a nós! Essa história que nos contam na escola é aquilo que inglês se designa por “history” (a história dele), diferente de “herstory” (a história dela).Enquanto mulheres, precisamos de nos dissociar dessa história oficial, da qual mais legítimo seria sentirmos vergonha do que orgulho e voltarmo-nos para a nossa história, aquela de quando éramos nós a dizer como se devia fazer.E é aqui que a Simone de Beauvoir em “O Segundo Sexo”, não tem razão quando afirma que o domínio do homem sobre a mulher sempre foi uma constante na história humana. Não foi. Graças a arqueólogas feministas, como a Marija Gimbutas, e às descobertas de sociedades do passado altamente desenvolvidas e prósperas que cultuavam a Deusa  e em que as mulheres detiveram papéis muito importante, não dominando ninguém nem sendo dominadas, sabemos que nem sempre os homens dominaram as mulheres.
 AS NOSSAS ANTEPASSADAS DO NEOLÍTICO
Então, a Dalila Pereira da Costa, que é muito discreta em relação às reivindicações feministas, diga-se, mas supereficaz na defesa dos valores femininos, dá-nos esta ideia de irmos atrás da nossa glória de mulheres, descobrindo a força e o valor das nossas antepassadas, as mulheres do Neolítico. E onde estão elas? Pois, muito perto… é lerem a Dalila (parece difícil mas ultrapassado o medo de não percebermos nada, torna-se do mais fascinante que já li nesta vida…) é lerem a Dalila, repito, com este objectivo concreto: perceber aonde andam as nossas mulheres poderosas do Neolítico, aquelas que não foram trucidadas, difamadas ou tornadas invisíveis pelos patriarcas (romanos e cristãos e outros igualmente pouco recomendáveis), as nossas Irmãs das Hespérides, que bailam felizes, livres e formosas como na gruta de Cogul, nos vasos de Creta, nos templos de Çatal Hüyük… Aqui, segundo reza a lenda, elas eram tão fortes que, ao mesmo tempo que fiavam, podiam transportar à cabeça as tais “pedras formosas”...
UMA VISÃO QUE VALE A PENA
Algumas pessoas podem dizer que tudo isto é mentira, que nunca existiu, que é pura invenção… Mas seja como for, acho que a uma invenção desta natureza vale a pena darmos toda a nossa atenção e foco!

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Published on September 01, 2019 04:41

August 31, 2019

A GRANDE MÃE PRIMORDIAL - O Continente e o Conteúdo



A masculinização da sociedade conduziu a ignorar aquilo que constitui o próprio fundamento de toda a relação psicossocial, a saber, os laços afetivos que unem os membros duma mesma família, dum mesmo clã. E estes repousam muito particularmente na relação mãe-filh@ (rapaz ou rapariga). Suprimindo a noção de Mãe-Divina, ou submetendo-a à autoridade dum deus-pai, desarticulou-se o mecanismo instintual que estabelecia o primitivo equilíbrio. Daí provêm as neuroses e outros dramas que transtornam as sociedades paternalistas, incluindo aquelas que se consideram mais evoluídas, aquelas que pretendem, com belas palavras, atribuir à mulher um lugar de honra, um lugar escolhido pelo homem. Na verdade, o homem não pode escolher o lugar da mulher nem o seu próprio lugar face à mulher. Ele deve obedecer a uma lei inelutável, que é, para retomar a definição de Montesquieu, uma lei de natura, contra a qual a lei da razão nada pode. Esta lei de natura concretiza-se no instinto, que não é algo que possamos negar. Negá-lo, como fizeram tantos moralistas e psicólogos, antes de Freud, é abrir a via dos desregulamentos psíquicos, porque todo o comportamento se ressente do facto de não estar apoiado na lei natural.
Esta querela entre natureza e razão, que de resto sempre foi uma falsa questão, é responsável pela cegueira desta sociedade que, ao querer corrigir o instinto, cortou o ser humano daquilo que era a sua natureza.
A verdade é que o instinto não se corrige. Sublima-se, transcende-se, e isso graças a uma razão que o dirige, mas que em caso algum o deve encerrar em limites estreitos e negá-lo. E o instinto assusta, porque é forte e porque é inelutável. Este estudo sistemático do princípio feminino na cultura celta tem pelo menos o mérito de trazer à luz da consciência a ideia de que o instinto é primordial, no sentido etimológico do termo, que ele é necessário, que é um fator de progresso e de evolução.
Mas o instinto tem algo de selvagem, de “bárbaro”, mesmo. E é por aí que ele atinge a “grandiosidade”. Ele é o único motor dos nossos sentimentos, da nossa ação. E, tendo em conta os nossos hábitos morais, é por vezes difícil formulá-lo e olhá-lo de frente: a verdade choca-nos. Quando ousamos afirmar que todas as relações entre homens e mulheres, quaisquer que elas sejam (conjugais, filiais ou outras) são necessariamente relações incestuosas entre mãe e filho, atraímos as mais ásperas críticas e somos tidos por obcecados. E no entanto… O homem é, com efeito, um ser incompleto e tem consciência disso. O seu medo e a sua atracção pelo abismo negro (o nada de onde provém), o seu medo e a sua vertigem diante da morte (o nada que o espera) tornam-no um ser frágil que procura a segurança a todo o custo. Essa segurança é a mãe, tanto para o homem como para a mulher. Mas o homem, física e afetivamente, possui um meio de reentrar, pelo menos provisoriamente, na mãe. Não é preciso insistir: qualquer tendência da psicanálise já esclareceu suficientemente bem que o pénis, pequena parte do homem, mas uma parte exterior e suscetível de aumentar, constitui o substituto do próprio homem. Ele pode, portanto, em certas ocasiões, reatualizar de modo fantasmagórico o regresso ao paraíso que a mãe representa.
E toda a mulher é uma mãe, real ou potencial. O homem está portanto biologicamente sujeito à mulher, quer ele queira, quer não. Ele é o conteúdo, enquanto a mulher é o continente: isso constitui um estado de inferioridade muito óbvio para o homem e ele passará depois todo o seu tempo a negar tal realidade para provar a si próprio que é superior. É assim que se explica a ação masculina, o facto dos homens serem dotados para a ação, para a violência e o combate. Esta ação é o único meio que lhes resta para tentarem afirmar-se.
E se o homem é o conteúdo, portanto um ser inferior, ele arroga-se o direito dum ser superior, mostrando que a sua força ativa é a única capaz de proteger a espécie. Até conseguiu persuadir a própria mulher dessa superioridade, simbolizada pelo reconhecimento do pénis do rapazinho no momento do nascimento, feito pela mãe ou por qualquer outra mulher que ajude no parto. O famoso grito: “É um rapaz!”, repetido geração após geração, é bastante eloquente a esse respeito. Quando nasce uma rapariga, aceita-se; mas quando nasce um rapaz, rejubila-se.
No entanto, o continente, a mãe, que é o mesmo que dizer a mulher, é a própria realização do Paraíso. Ela realiza-o sob dois aspectos duma mesma realidade: ela contém o filho e o amante. De resto, como alguns psicanalistas já referiram, a vagina da rapariga não é reconhecida pela mãe, nem pelo pai, no momento do nascimento. Tal reconhecimento far-se-á, no entanto, um dia, e será o homem a efetuá-lo. Assim, para se afirmar, para tomar consciência de quem é e sobretudo do seu poder, a mulher precisa do homem. Traduzido em linguagem mitológica dá: o homem precisa duma deusa, mas a deusa precisa do homem. É esta a razão pela qual se perpetuaram, sob formas diversas, os antigos cultos da divindade feminina.
Na cultura celta, vimo-la sob os seus diferentes aspectos, ou melhor, sob as diferentes máscaras que os homens lhe atribuíram. Todos os nomes que lhe foram dados, entretanto, não nos devem fazer esquecer que se trata dum ser único, da mãe primordial, da primitiva deusa, da grande rainha dos começos.
Jean Markale, “La Femme Celte”
Imagem: Senhora de Avalon, Cheryl Yambrach Rose
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Published on August 31, 2019 15:38

A GRANDE MÃE PRIMORDIAL - O Contentor e o Conteúdo



A masculinização da sociedade conduziu a ignorar aquilo que constitui o próprio fundamento de toda a relação psicossocial, a saber, os laços afetivos que unem os membros duma mesma família, dum mesmo clã. E estes repousam muito particularmente na relação mãe-filh@ (rapaz ou rapariga). Suprimindo a noção de Mãe-Divina, ou submetendo-a à autoridade dum deus-pai, desarticulou-se o mecanismo instintual que estabelecia o primitivo equilíbrio. Daí provêm as neuroses e outros dramas que transtornam as sociedades paternalistas, incluindo aquelas que se consideram mais evoluídas, aquelas que pretendem, com belas palavras, atribuir à mulher um lugar de honra, um lugar escolhido pelo homem. Na verdade, o homem não pode escolher o lugar da mulher nem o seu próprio lugar face à mulher. Ele deve obedecer a uma lei inelutável, que é, para retomar a definição de Montesquieu, uma lei de natura, contra a qual a lei da razão nada pode. Esta lei de natura concretiza-se no instinto, que não é algo que possamos negar. Negá-lo, como fizeram tantos moralistas e psicólogos, antes de Freud, é abrir a via dos desregulamentos psíquicos, porque todo o comportamento se ressente do facto de não estar apoiado na lei natural.
Esta querela entre natureza e razão, que de resto sempre foi uma falsa questão, é responsável pela cegueira desta sociedade que, ao querer corrigir o instinto, cortou o ser humano daquilo que era a sua natureza.
A verdade é que o instinto não se corrige. Sublima-se, transcende-se, e isso graças a uma razão que o dirige, mas que em caso algum o deve encerrar em limites estreitos e negá-lo. E o instinto assusta, porque é forte e porque é inelutável. Este estudo sistemático do princípio feminino na cultura celta tem pelo menos o mérito de trazer à luz da consciência a ideia de que o instinto é primordial, no sentido etimológico do termo, que ele é necessário, que é um fator de progresso e de evolução.
Mas o instinto tem algo de selvagem, de “bárbaro”, mesmo. E é por aí que ele atinge a “grandiosidade”. Ele é o único motor dos nossos sentimentos, da nossa ação. E, tendo em conta os nossos hábitos morais, é por vezes difícil formulá-lo e olhá-lo de frente: a verdade choca-nos. Quando ousamos afirmar que todas as relações entre homens e mulheres, quaisquer que elas sejam (conjugais, filiais ou outras) são necessariamente relações incestuosas entre mãe e filho, atraímos as mais ásperas críticas e somos tidos por obcecados. E no entanto… O homem é, com efeito, um ser incompleto e tem consciência disso. O seu medo e a sua atracção pelo abismo negro (o nada de onde provém), o seu medo e a sua vertigem diante da morte (o nada que o espera) tornam-no um ser frágil que procura a segurança a todo o custo. Essa segurança é a mãe, tanto para o homem como para a mulher. Mas o homem, física e afetivamente, possui um meio de reentrar, pelo menos provisoriamente, na mãe. Não é preciso insistir: qualquer tendência da psicanálise já esclareceu suficientemente bem que o pénis, pequena parte do homem, mas uma parte exterior e suscetível de aumentar, constitui o substituto do próprio homem. Ele pode, portanto, em certas ocasiões, reatualizar de modo fantasmagórico o regresso ao paraíso que a mãe representa.
E toda a mulher é uma mãe, real ou potencial. O homem está portanto biologicamente sujeito à mulher, quer ele queira, quer não. Ele é o conteúdo, enquanto a mulher é o contentor: isso constitui um estado de inferioridade muito óbvio para o homem e ele passará depois todo o seu tempo a negar tal realidade para provar a si próprio que é superior. É assim que se explica a ação masculina, o facto dos homens serem dotados para a ação, para a violência e o combate. Esta ação é o único meio que lhes resta para tentarem afirmar-se.
E se o homem é o conteúdo, portanto um ser inferior, ele arroga-se o direito dum ser superior, mostrando que a sua força ativa é a única capaz de proteger a espécie. Até conseguiu persuadir a própria mulher dessa superioridade, simbolizada pelo reconhecimento do pénis do rapazinho no momento do nascimento, feito pela mãe ou por qualquer outra mulher que ajude no parto. O famoso grito: “É um rapaz!”, repetido geração após geração, é bastante eloquente a esse respeito. Quando nasce uma rapariga, aceita-se; mas quando nasce um rapaz, rejubila-se.
No entanto, o contentor, a mãe, que é o mesmo que dizer a mulher, é a própria realização do Paraíso. Ela realiza-o sob dois aspectos duma mesma realidade: ela contém o filho e o amante. De resto, como alguns psicanalistas já referiram, a vagina da rapariga não é reconhecida pela mãe, nem pelo pai, no momento do nascimento. Tal reconhecimento far-se-á, no entanto, um dia, e será o homem a efetuá-lo. Assim, para se afirmar, para tomar consciência de quem é e sobretudo do seu poder, a mulher precisa do homem. Traduzido em linguagem mitológica dá: o homem precisa duma deusa, mas a deusa precisa do homem. É esta a razão pela qual se perpetuaram, sob formas diversas, os antigos cultos da divindade feminina.
Na cultura celta, vimo-la sob os seus diferentes aspectos, ou melhor, sob as diferentes máscaras que os homens lhe atribuíram. Todos os nomes que lhe foram dados, entretanto, não nos devem fazer esquecer que se trata dum ser único, da mãe primordial, da primitiva deusa, da grande rainha dos começos.
Jean Markale, “La Femme Celte”
Imagem: Senhora de Avalon, Cheryl Yambrach Rose
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Published on August 31, 2019 15:38

August 11, 2019

BORA LÁ SALTAR NO ESCURO - Confissões duma Mulher para lá da Meia-Idade


Sou uma mulher de 67 anos. Fui professora e continuo a sê-lo, embora a estrutura da instituição tenha mudado radicalmente ou já nem exista. Não trabalho com rede, como aconteceu por largos anos. Não tenho rede. Afirmo a minha visão por mim própria, dou a cara por ela, como se diz, embora por outro lado possa dizer que tenho uma vasta rede de apoio, constituída pelas mulheres que me precederam ou que são minhas contemporâneas no Movimento da Deusa, mulheres com as quais comungo da mesma perspectiva das coisas, da mesma devoção à Deusa, da mesma certeza de que sem a Sua representação no panteão divino da humanidade actual, as mulheres nunca poderão aspirar a assumir verdadeiro poder neste mundo (ver Carol Christ “Por que é que as mulheres precisam da Deusa”). Mulheres que comungam do mesmo sonho dum futuro sustentável, para a concretização do qual o papel das mulheres é decisivo. Mulheres que sabem que é preciso resgatar a Deusa antiga, nas Suas várias faces ou arquétipos, que reflectem a nossa humanidade, nas Suas múltiplas denominações e qualidades; que precisamos de refazer a nossa cultura própria, de reinventar as nossas tradições, a nossa forma própria de ser e de estar no mundo, antes da domesticação patriarcal, de levantar do chão e de limpar da ignomínia o nosso poder de dar e de cuidar da vida, de redescobrir e de sacralizar o poder do sangue menstrual, de sacralizar o corpo e toda a natureza de que somos parte.
Sou uma mulher de 67 anos, activista da Deusa, e há partes de mim cansadas, quase esgotadas… Sou uma mulher. Ser uma mulher com uma visão ou ser um homem com uma visão são realidades muito distintas. Na tradição masculina, na androcracia em que vivemos, por trás dum homem, grande ou pequeno, há sempre uma mulher – quanto mais não seja para levar com as culpas – que está lá quando ele chega a casa cansado, que o apoia, que diz ámen à sua visão, que torce por ele e fica orgulhosa quando as coisas correm bem. Ela faz a sopa, mantém o espaço, cuida dos aspectos práticos do quotidiano. Atrás dum homem está uma Esposa, que é uma espécie de extensão ou substituta da mãe, com funções acrescidas. Claro que isto é o quadro clássico, ou seja, já era, hoje em dia em que tudo está mais fluído, o que temos é a Companheira, que poderá ser mais intermitente, descartável, mas eventualmente bem mais talentosa e tecnologicamente funcional. Sempre existe uma ou mais para suprir as necessidades de apoiar, gerir, manter o espaço, dizer ámen, ajudar, torcer, e de forma cada vez mais prática e eficiente.

Embora também existam, são raros, raríssimos, convenhamos, os casos em que estes papéis se invertem. Por norma, atrás duma mulher com uma visão não está ninguém a proteger o seu espaço nem a dar-lhe energia. O mais certo é que aconteça precisamente o contrário. Atrás dela pode estar o próprio marido a disputar a sua atenção e energia, ou o resto da familiar, que não acha a mínima graça à sua originalidade, que a conhece demasiado bem e por isso sabe que é um fake, que sempre foi. “Quem é que pensas que és?”. Óbvio que se ela fosse um homem, sim, aí teria toda a legitimidade para escrever e publicar livros, por exemplo, com toda a família a assistir orgulhosa ao seu lançamento. Já uma mulher sozinha a lançar um livro pode acontecer não ter uma única pessoa da família a assistir e a apoiá-la nesse momento. Ninguém. Não se fala nessa bizarrice, “Mas quem és tu afinal?”.
Pode ser que atrás dela estejam pessoas que continuam a ver nela a mãe, cujo dever é apenas o de dar, e é bem possível até que nem ela própria saiba receber, que tacteie no escuro à procura do mais básico sentimento humano que é a sensação de que a sua existência é legítima, de que tem o direito de existir. E não se pode existir sem ter voz própria. E esta não é uma questão que amadureça saudável à medida que flui o tempo e se sucedem as estações, muito pelo contrário. Duvida sempre quando te disserem que a esperança de vida tem vindo a aumentar...
As suas dúvidas existenciais como mulher são também projectadas sobre pessoas que contestam a sua autoridade, desvalorizando tudo aquilo que com tanto esforço e trabalho, enfrentando tantos desafios, conseguiu, desmontando uma a uma todas as possíveis zonas de conforto. Uma mulher sozinha, recusando um enterro em vida, com a sua visão e voz própria, tem de ser capaz de conviver e de abraçar a Impostora que se lhe colou à pele e à imagem, tem de poder olhar para ela no espelho e sossegá-la: “Bora lá saltar no escuro, segura-te!”. É a impostora em si que tem a coragem para aguentar a parte das mil e uma razões para não, nunca estar à altura daquela Anciã longínqua, duma qualquer cultura exótica, idealizada pelo fotoshop e enquadrada pelas frases prontas a servir do fast food verbal new-age. Uma mulher real a partir de certa idade é por norma suspeita, e se algum poder conquistou com o seu esforço, discernimento e coragem vai ser-lhe pedido que trate de o repartir, pedacinho a pedacinho, até não sobrar mais nada, ou que o use para promover outras pessoas. Afinal se já não és a mãe que se sacrifica como a vela se consome e arde para que haja luz, para que serves?
Contudo nesta escuridão criativa da alma, abençoada seja, a luz da Deusa nítida se recorta: “Pára de resmungar, de lamber as feridas, avança”… Pois… talvez, quem sabe, abrindo caminhos...
Luiza Frazão
Imagem: Imagem e Templo da Deusa Maia, criado pelas alunas da Primeira Espiral do Treino de Sacerdotisa da Deusa do Jardim das Hespérides para a primeira Conferência da Deusa Portugal, realizada em maio de 2019, em Sintra, nos jardins do Almáa Hostel, Quinta dos Lobos
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Published on August 11, 2019 08:01

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Luiza Frazão
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