M. Barreto Condado's Blog, page 5
October 24, 2019
ÁREA 51, de MBarreto Condado
Foi com surpresa que esta madrugada vi chegar ao Terreiro do Paço “A Liberdade”, mais conhecida internacionalmente por Estátua da Liberdade, trazia como bagagem somente a sua tocha e coroa que me garantiu nunca ter sido recebida num concurso de miss universo. Sendo ela filha de pai francês, amiga de um número incontável de imigrantes e nunca tendo requerido cidadania americana resolveu partir para o velho continente que a viu nascer com receio de represálias devido ao facto de ser imigrante, mulher, gorda e vestir-se de forma esquisita.
Contou-me como numa noite toda a sua existência bem como a de tantos tinha sido colocada em causa. Temia pela construção do prometido muro que seria pago por terceiros, pelo “drenar do pântano” podia dar-se o caso de ser construído um casino no seu lugar, a mudança de Obamacare para Trumpcare, o ensino nas universidades da cadeira de fuga aos impostos, a retirada das tropas americanas de locais de guerra para a possível colocação de mão de obra treinada na extração de gás e de xisto, a transformação da Casa Branca na casa da Barbie e do Ken, o ensinar o filho Barron a carregar no botão vermelho para iniciar os “jogos de guerra” mas principalmente temia pela desagregação dos Estados Unidos para Estados Desunidos.
E antes de se despedir e continuar a sua viagem ainda deixou no ar a confirmação à dúvida que nos persegue a todos desde 2016, o significado da fantástica cor laranja da pele.
É verdade que eles estão entre nós e agora até nos governam.
“Beam me up Scotty”
Contou-me como numa noite toda a sua existência bem como a de tantos tinha sido colocada em causa. Temia pela construção do prometido muro que seria pago por terceiros, pelo “drenar do pântano” podia dar-se o caso de ser construído um casino no seu lugar, a mudança de Obamacare para Trumpcare, o ensino nas universidades da cadeira de fuga aos impostos, a retirada das tropas americanas de locais de guerra para a possível colocação de mão de obra treinada na extração de gás e de xisto, a transformação da Casa Branca na casa da Barbie e do Ken, o ensinar o filho Barron a carregar no botão vermelho para iniciar os “jogos de guerra” mas principalmente temia pela desagregação dos Estados Unidos para Estados Desunidos.
E antes de se despedir e continuar a sua viagem ainda deixou no ar a confirmação à dúvida que nos persegue a todos desde 2016, o significado da fantástica cor laranja da pele.
É verdade que eles estão entre nós e agora até nos governam.
“Beam me up Scotty”
Published on October 24, 2019 06:00
October 23, 2019
HA MOCE MARAFADE!, de MBarreto Condado
Esperava calmamente na estação dos caminhos de ferro em Entrecampos pelo Alfa Pendular que me levaria até à cidade de Faro. Avançava para o sul com o intuito de conquistar corações em terras de temperaturas inóspitas e gentes corajosas.
Foi uma viagem como sempre muito agradável, ar condicionado, serviço a bordo tudo o que necessitava antes de enfrentar o calor seco a sul.
“Próxima paragem Faro”
Acordava com uma calorosa voz a dar-me as boas-vindas a uma cidade que conheço tão bem. Contudo, quando o comboio parou e a porta se abriu fui recebida por um bafo que instantaneamente me fez lembrar Dante e o seu “vestíbulo do inferno”, também eu me encontrava como aquelas pobres almas, indecisa, porém ficar dentro da carruagem com o ar condicionado naquele momento deixara de ser uma opção.
“Atão moce, na t’espachas?”
A voz impaciente do senhor atrás de mim que queria ir à sua vida vez, fez com que me virasse para o encarar. Será que não conseguia perceber o meu dilema naquele momento?
“Está muito calor, estou a tentar ganhar coragem” – sorri-lhe
“Meceia tén calor? Iste né nada miga”
“Óme, pra quê tamanh’ademora”
Lá fora esperava-o uma mulher a olhar-nos curiosa, afastei-me para que o senhor passasse, sempre ganhava uns preciosos segundos.
O senhor ainda se virou para se despedir de mim.
“Adés moça, pr’ond’é que vás?”
“Vou para a ilha”
“A caminéte é já além” – apontou na direcção da minha já tão conhecida paragem da Eva, onde deixei e fui buscar muitos amigos que durante anos passaram férias comigo na casa da ilha.
A maneira como aquele homem falara relembrou-me do diversificado léxico algarvio.
“Obrigada!”- sorri e ganhei a coragem que não tinha para sair daquele pedaço de paraíso onde me encontrara nas últimas horas.
Sentia o sol queimar-me.
Caminhei até à doca procurando as sombras, o mesmo local onde tantas vezes atracámos os nossos barcos todos eles com nomes inesquecíveis: o “Hupylas”, o “Hukarassas”, o “Kesselyxe” e o último e mais potente “Kesselyxethudo”. Tinha muitas boas lembranças de toda a minha infância e adolescência e continuava a criar novas memórias sempre que o tempo me permitia usufruir da casa da ilha.
Tirara a primeira selfie para aborrecer os amigos que sabiam estar a trabalhar àquelas horas, ainda dentro do comboio enquanto usufruía de um chá de camomila e lia a última crónica de António Lobo Antunes na revista Visão, também ela um regresso às suas origens onde dividia o quarto com o seu irmão João.
A minha segunda foto já mostrava um pouco do meu ar e de como me começava a sentir debaixo daquele calor abrasador, não corria uma única aragem. Mostrava-me através das redes sociais em todo o meu esplendor, despenteada, sequiosa, encalorada e esfomeada ou como se diz cá e baixo: “o mé cabele tava cá d’um jête, sentia-me descabide com us olhes desbugalhades, estava cum muta fome tava na hora da bucha. já só queria quemer, e naquele momente até podiam ser alcagoitas, minduins, pitaxios, sarvejas geladinhas ou até mesme auga. Sentia-me marafade”. Infelizmente não podemos ser todas a Sara Sampaio (para grande infelicidade minha).
Não me vou alongar mais, antes que me gritem desse lado “Ah moça maldeçoade, tira-te já daqui pra qu’é na te veja na minha frente!” posso somente dizer-vos que o ponto alto da minha manhã seguinte foi tomar o pequeno-almoço (ou como se diz aqui em baixo o “quebra-jejum”) na pastelaria Gardy, desde sempre local de eleição do meu pai e ainda consegui arranjar uns minutinhos para me despedir da sereia da doca (que me confirmou nesse dia ser prima da sereia de Copenhaga e da sereia de Varsóvia).
Qualquer coisa me chama a atenção e me faz sonhar, o facto de gostar de viajar nos transportes públicos dá-me muito material de escrita, inúmeras ideias, por exemplo, o facto de na minha carruagem não existir o lugar número 13, de um jovem casal apaixonado à beira mar com a particularidade dele ter uns óculos espelhados vermelhos e ela uns iguais mas verdes (mal comparado futebolisticamente uma relação promissora entre os grandes de Lisboa), dois idosos a passear com as suas bengalas com a singularidade de terem a borracha do fundo das bengalas mais gasta do que a própria sola dos sapatos, os autocarros de giro do Algarve terem escrito “otokar”, a maneira despreocupada como as pessoas se vestem ignorando a idade, corpos estendidos na areia tentando ganhar um pouco mais de cor apesar de alguns já se encontrarem cinzentos, os baloiços a mexerem-se sozinhos sem se sentir nenhuma aragem, os viveiros com alguns vultos mergulhando no seu lodo, os diversos pássaros que voam para local incerto no imenso e protegido estuário da bela ria Formosa, as desertas pelejadas de gaivotas (tenho quase a certeza que Hitchcock se inspirou nelas) até mesmo os “camones” semi-nús sempre de cerveja nas mãos . Na realidade sou influenciada por tudo o que me rodeia, todos com quem me cruzo venham da cidade, da praia ou até mesmo do monte serão certamente um dia motivo alvo da minha atenção. Pelo que fica aqui ainda tanto por dizer.
Regresso sempre com a nostalgia dos momentos que ficaram por viver.
E como se diz aqui em baixo ”Amódes q’iste é assim, é acardito, tenhe aportelência, arreata, na stou a baldear, tou-m’a barimbar, na tenhe caguifa, n’inveja, na gosto de mogas, de patochadas, na falejo, odeio bichaninhas, na consigo patiar. Prontes, adés tipe, táza ver? Cagande e andande”.
Foi uma viagem como sempre muito agradável, ar condicionado, serviço a bordo tudo o que necessitava antes de enfrentar o calor seco a sul.
“Próxima paragem Faro”
Acordava com uma calorosa voz a dar-me as boas-vindas a uma cidade que conheço tão bem. Contudo, quando o comboio parou e a porta se abriu fui recebida por um bafo que instantaneamente me fez lembrar Dante e o seu “vestíbulo do inferno”, também eu me encontrava como aquelas pobres almas, indecisa, porém ficar dentro da carruagem com o ar condicionado naquele momento deixara de ser uma opção.
“Atão moce, na t’espachas?”
A voz impaciente do senhor atrás de mim que queria ir à sua vida vez, fez com que me virasse para o encarar. Será que não conseguia perceber o meu dilema naquele momento?
“Está muito calor, estou a tentar ganhar coragem” – sorri-lhe
“Meceia tén calor? Iste né nada miga”
“Óme, pra quê tamanh’ademora”
Lá fora esperava-o uma mulher a olhar-nos curiosa, afastei-me para que o senhor passasse, sempre ganhava uns preciosos segundos.
O senhor ainda se virou para se despedir de mim.
“Adés moça, pr’ond’é que vás?”
“Vou para a ilha”
“A caminéte é já além” – apontou na direcção da minha já tão conhecida paragem da Eva, onde deixei e fui buscar muitos amigos que durante anos passaram férias comigo na casa da ilha.
A maneira como aquele homem falara relembrou-me do diversificado léxico algarvio.
“Obrigada!”- sorri e ganhei a coragem que não tinha para sair daquele pedaço de paraíso onde me encontrara nas últimas horas.
Sentia o sol queimar-me.
Caminhei até à doca procurando as sombras, o mesmo local onde tantas vezes atracámos os nossos barcos todos eles com nomes inesquecíveis: o “Hupylas”, o “Hukarassas”, o “Kesselyxe” e o último e mais potente “Kesselyxethudo”. Tinha muitas boas lembranças de toda a minha infância e adolescência e continuava a criar novas memórias sempre que o tempo me permitia usufruir da casa da ilha.
Tirara a primeira selfie para aborrecer os amigos que sabiam estar a trabalhar àquelas horas, ainda dentro do comboio enquanto usufruía de um chá de camomila e lia a última crónica de António Lobo Antunes na revista Visão, também ela um regresso às suas origens onde dividia o quarto com o seu irmão João.
A minha segunda foto já mostrava um pouco do meu ar e de como me começava a sentir debaixo daquele calor abrasador, não corria uma única aragem. Mostrava-me através das redes sociais em todo o meu esplendor, despenteada, sequiosa, encalorada e esfomeada ou como se diz cá e baixo: “o mé cabele tava cá d’um jête, sentia-me descabide com us olhes desbugalhades, estava cum muta fome tava na hora da bucha. já só queria quemer, e naquele momente até podiam ser alcagoitas, minduins, pitaxios, sarvejas geladinhas ou até mesme auga. Sentia-me marafade”. Infelizmente não podemos ser todas a Sara Sampaio (para grande infelicidade minha).
Não me vou alongar mais, antes que me gritem desse lado “Ah moça maldeçoade, tira-te já daqui pra qu’é na te veja na minha frente!” posso somente dizer-vos que o ponto alto da minha manhã seguinte foi tomar o pequeno-almoço (ou como se diz aqui em baixo o “quebra-jejum”) na pastelaria Gardy, desde sempre local de eleição do meu pai e ainda consegui arranjar uns minutinhos para me despedir da sereia da doca (que me confirmou nesse dia ser prima da sereia de Copenhaga e da sereia de Varsóvia).
Qualquer coisa me chama a atenção e me faz sonhar, o facto de gostar de viajar nos transportes públicos dá-me muito material de escrita, inúmeras ideias, por exemplo, o facto de na minha carruagem não existir o lugar número 13, de um jovem casal apaixonado à beira mar com a particularidade dele ter uns óculos espelhados vermelhos e ela uns iguais mas verdes (mal comparado futebolisticamente uma relação promissora entre os grandes de Lisboa), dois idosos a passear com as suas bengalas com a singularidade de terem a borracha do fundo das bengalas mais gasta do que a própria sola dos sapatos, os autocarros de giro do Algarve terem escrito “otokar”, a maneira despreocupada como as pessoas se vestem ignorando a idade, corpos estendidos na areia tentando ganhar um pouco mais de cor apesar de alguns já se encontrarem cinzentos, os baloiços a mexerem-se sozinhos sem se sentir nenhuma aragem, os viveiros com alguns vultos mergulhando no seu lodo, os diversos pássaros que voam para local incerto no imenso e protegido estuário da bela ria Formosa, as desertas pelejadas de gaivotas (tenho quase a certeza que Hitchcock se inspirou nelas) até mesmo os “camones” semi-nús sempre de cerveja nas mãos . Na realidade sou influenciada por tudo o que me rodeia, todos com quem me cruzo venham da cidade, da praia ou até mesmo do monte serão certamente um dia motivo alvo da minha atenção. Pelo que fica aqui ainda tanto por dizer.
Regresso sempre com a nostalgia dos momentos que ficaram por viver.
E como se diz aqui em baixo ”Amódes q’iste é assim, é acardito, tenhe aportelência, arreata, na stou a baldear, tou-m’a barimbar, na tenhe caguifa, n’inveja, na gosto de mogas, de patochadas, na falejo, odeio bichaninhas, na consigo patiar. Prontes, adés tipe, táza ver? Cagande e andande”.
Published on October 23, 2019 06:00
October 22, 2019
LAR DOCE LAR, de MBarreto Condado
Lembro-me da casa dos meus avós em Lisboa, numa rua com frondosas árvores que nos protegiam da chuva no inverno e do calor no verão. Acordar com o chilrear dos pássaros a receberem cada novo dia. Mas lembro-me principalmente dos vizinhos, eram uma extensão da nossa própria família. Pedir um balde de gelo, meia dúzia de ovos ou uma xícara de açúcar era mais do que um esquecimento nas mercearias, era uma oportunidade para conversarmos sobre tudo e sobre nada.
Depois mudei para um prédio impessoal também em Lisboa, onde cedo me habituei que os simples gestos de boa cidadania eram quase como jogar “roleta russa”.
E quando julgamos que já nos habituámos a esta indiferença os vizinhos que se tinham inicialmente resignado à nossa presença acabando por nos aceitar. Envelhecem, partem. A verdade é que os tempos mudam e nem sempre essas mudanças são para melhor.
Por isso quando leio que a sonda Schiaparell embateu no solo de Marte lembro-me das vezes em que a meio da noite ouço estranhos ruídos o que me deixa a pensar se alguns dos meus vizinhos serão abduzidos e substituídos por marcianos. Da maneira como agem no dia seguinte posso garantir que não são humanos.
Quando vejo imagens da frota russa a passar na nossa costa fico satisfeita por já não ter a garagem inundada pois ainda me arriscava a ir para o meu carro e acabar por entrar no Dmitry Donskoy.
As contas desta administração parecem um apêndice do Orçamento de Estado do próximo ano, pelo que ficarei à espera que o senhor Moscovici se manifeste.
Temo ainda que alguns vizinhos não tenham aceite o protocolo de Quioto pela maneira como deixam após a sua passagem os elevadores transformados em verdadeiras câmaras de gases tóxicos e corrosivos. Outros tantos continuam a transportar os seus sacos de lixo desde a sua casa até ao contentor geral deixando atrás de si líquidos dignos de tratamento numa ETAR.
Uma pequena informação reciclar não significa baralhar e deitar fora.
Por tudo isto sinto que talvez tenha chegado a altura de mudar de casa.
Mas principalmente por saber que a minha casa é algo do outro mundo gostava de informar que a coloquei à venda nas seguintes agências: NASA, ESA, SETI e Steven Spielberg.
Depois mudei para um prédio impessoal também em Lisboa, onde cedo me habituei que os simples gestos de boa cidadania eram quase como jogar “roleta russa”.
E quando julgamos que já nos habituámos a esta indiferença os vizinhos que se tinham inicialmente resignado à nossa presença acabando por nos aceitar. Envelhecem, partem. A verdade é que os tempos mudam e nem sempre essas mudanças são para melhor.
Por isso quando leio que a sonda Schiaparell embateu no solo de Marte lembro-me das vezes em que a meio da noite ouço estranhos ruídos o que me deixa a pensar se alguns dos meus vizinhos serão abduzidos e substituídos por marcianos. Da maneira como agem no dia seguinte posso garantir que não são humanos.
Quando vejo imagens da frota russa a passar na nossa costa fico satisfeita por já não ter a garagem inundada pois ainda me arriscava a ir para o meu carro e acabar por entrar no Dmitry Donskoy.
As contas desta administração parecem um apêndice do Orçamento de Estado do próximo ano, pelo que ficarei à espera que o senhor Moscovici se manifeste.
Temo ainda que alguns vizinhos não tenham aceite o protocolo de Quioto pela maneira como deixam após a sua passagem os elevadores transformados em verdadeiras câmaras de gases tóxicos e corrosivos. Outros tantos continuam a transportar os seus sacos de lixo desde a sua casa até ao contentor geral deixando atrás de si líquidos dignos de tratamento numa ETAR.
Uma pequena informação reciclar não significa baralhar e deitar fora.
Por tudo isto sinto que talvez tenha chegado a altura de mudar de casa.
Mas principalmente por saber que a minha casa é algo do outro mundo gostava de informar que a coloquei à venda nas seguintes agências: NASA, ESA, SETI e Steven Spielberg.
Published on October 22, 2019 06:00
October 21, 2019
E VIVERAM FELIZES PARA SEMPRE, de MBarreto Condado
Eram oito horas da manhã quando cheguei a Alcobaça a convite da Câmara Municipal para participar no festival Books & Movies. Dirigi-me à Biblioteca Municipal atravessando a pequena ponte sobre o rio Alcoa.
Almocei no restaurante Frei Bernardo em excelente companhia onde entre diversas iguarias pude degustar alguns dos tentadores doces conventuais. E onde fui simpaticamente convidada para um final de noite que se veio a comprovar deveras reconfortante à lareira a ouvir falar bom português.Mas foi naquele final de tarde sentada na esplanada da pastelaria Alcoa defronte para o Mosteiro enquanto bebericava um sumo de laranja natural e comia uma torrada que dividi com uma pomba, duas…três não paravam de chegar. Passado pouco tempo perdi-lhes a conta, mas a minha mesa parecia a escadaria da catedral de S. Paul, só lá faltava a Mary Poppins a cantar “feed the birds” e da minha torrada tão estoicamente dividida não sobraram migalhas para me reconfortar o queixoso estômago.
Pude reparar que os últimos turistas abandonavam o Mosteiro quando pouco passava das dezoito horas, descendo a escadaria principal caminhando na direcção de um falso rei que se passeia por ali tentando cativar a atenção e possivelmente algumas moedas em troca da sua imagem.Levantara-se uma leve brisa outonal que me parecia querer beijar como se de um velho amigo se tratasse e nesse momento como que enxotadas por uma mão invisível as pombas levantaram voo na direcção do campanário desaparecendo. O falso rei prostrou-se de frente para a velha escadaria do Mosteiro, levantou a sua espada e fez uma vénia em sinal de reverência também ele se despedindo com o respeito que aquele local inspira. Mas foi quando o véu da noite começou a descer lentamente sobre as suas frias paredes de pedra que reparei que lá de dentro alguém observava. Abri e fechei os olhos só podia ser aquela parca luz a pregar-me partidas. Quando voltei a olhar lá estavam pequenos vultos por detrás das janelas do andar superior olhavam sem ser vistos ou assim julgavam. Pareciam querer garantir a calma daquela noite.
Olhei em volta todos pareciam ignorar o que ali se passava, aparentemente só eu os via.
Levantei-me da minha cadeira e caminhei na direcção do solar da cerca do Mosteiro, nesse momento vi-os colocarem os fortes capuzes e desaparecerem tão misteriosamente como tinham aparecido. Sei que não imaginei, que não era a minha fervilhante imaginação a inspirar-me para outra história com seres imortais, tenho a certeza que os vira e apesar de saber que quem me observava estava vivo sem viver sabia que podiam já não se ouvir o bater dos seus corações, mas continuava-se a sentir o calor das suas almas.
No final da noite voltei a fazer o caminho de volta atravessando aquele longo terreno de terra batida àquela hora quase deserta. Parei perto da escadaria olhando para as janelas onde antes vira os misteriosos vultos e nada. Voltei-me para partir quando pelo canto do olho me pareceu ver algo mover. Desta vez e bem nítido pude vislumbrar uma linda mulher loira que me saudava sorridente, aproximou-se por detrás dela um homem que a abraçou protector enquanto também ele me olhava. Soube quem eram mesmo sem se terem apresentado. Baixei a cabeça discreta, mas respeitosamente e recomecei a andar.
Senti passos seguirem-me a uma distância segura, mas nunca me voltei, sabia que quem o fazia não estava realmente ali e que vinha a mando do seu Senhor para garantir que chegava em segurança ao meu destino.
Só quando me sentei dentro do carro e liguei a ignição soube que me encontrava só. E ao sair de Alcobaça voltei a atravessar um espesso nevoeiro sabendo que deixava para trás algo que era só meu, aquele momento.
Lembrei-me de uma frase do escritor alemão Heinz Konsalik: “O Amor é mais forte do que a Morte” e Pedro e Inês eram prova disso afinal continuavam a viver e na sua morte tinham encontrado o seu “viveram felizes para sempre”.
Almocei no restaurante Frei Bernardo em excelente companhia onde entre diversas iguarias pude degustar alguns dos tentadores doces conventuais. E onde fui simpaticamente convidada para um final de noite que se veio a comprovar deveras reconfortante à lareira a ouvir falar bom português.Mas foi naquele final de tarde sentada na esplanada da pastelaria Alcoa defronte para o Mosteiro enquanto bebericava um sumo de laranja natural e comia uma torrada que dividi com uma pomba, duas…três não paravam de chegar. Passado pouco tempo perdi-lhes a conta, mas a minha mesa parecia a escadaria da catedral de S. Paul, só lá faltava a Mary Poppins a cantar “feed the birds” e da minha torrada tão estoicamente dividida não sobraram migalhas para me reconfortar o queixoso estômago.
Pude reparar que os últimos turistas abandonavam o Mosteiro quando pouco passava das dezoito horas, descendo a escadaria principal caminhando na direcção de um falso rei que se passeia por ali tentando cativar a atenção e possivelmente algumas moedas em troca da sua imagem.Levantara-se uma leve brisa outonal que me parecia querer beijar como se de um velho amigo se tratasse e nesse momento como que enxotadas por uma mão invisível as pombas levantaram voo na direcção do campanário desaparecendo. O falso rei prostrou-se de frente para a velha escadaria do Mosteiro, levantou a sua espada e fez uma vénia em sinal de reverência também ele se despedindo com o respeito que aquele local inspira. Mas foi quando o véu da noite começou a descer lentamente sobre as suas frias paredes de pedra que reparei que lá de dentro alguém observava. Abri e fechei os olhos só podia ser aquela parca luz a pregar-me partidas. Quando voltei a olhar lá estavam pequenos vultos por detrás das janelas do andar superior olhavam sem ser vistos ou assim julgavam. Pareciam querer garantir a calma daquela noite.
Olhei em volta todos pareciam ignorar o que ali se passava, aparentemente só eu os via.
Levantei-me da minha cadeira e caminhei na direcção do solar da cerca do Mosteiro, nesse momento vi-os colocarem os fortes capuzes e desaparecerem tão misteriosamente como tinham aparecido. Sei que não imaginei, que não era a minha fervilhante imaginação a inspirar-me para outra história com seres imortais, tenho a certeza que os vira e apesar de saber que quem me observava estava vivo sem viver sabia que podiam já não se ouvir o bater dos seus corações, mas continuava-se a sentir o calor das suas almas.
No final da noite voltei a fazer o caminho de volta atravessando aquele longo terreno de terra batida àquela hora quase deserta. Parei perto da escadaria olhando para as janelas onde antes vira os misteriosos vultos e nada. Voltei-me para partir quando pelo canto do olho me pareceu ver algo mover. Desta vez e bem nítido pude vislumbrar uma linda mulher loira que me saudava sorridente, aproximou-se por detrás dela um homem que a abraçou protector enquanto também ele me olhava. Soube quem eram mesmo sem se terem apresentado. Baixei a cabeça discreta, mas respeitosamente e recomecei a andar.
Senti passos seguirem-me a uma distância segura, mas nunca me voltei, sabia que quem o fazia não estava realmente ali e que vinha a mando do seu Senhor para garantir que chegava em segurança ao meu destino.
Só quando me sentei dentro do carro e liguei a ignição soube que me encontrava só. E ao sair de Alcobaça voltei a atravessar um espesso nevoeiro sabendo que deixava para trás algo que era só meu, aquele momento.
Lembrei-me de uma frase do escritor alemão Heinz Konsalik: “O Amor é mais forte do que a Morte” e Pedro e Inês eram prova disso afinal continuavam a viver e na sua morte tinham encontrado o seu “viveram felizes para sempre”.
Published on October 21, 2019 06:00
October 20, 2019
PORQUE TAMBÉM DE NÓS REZA A HISTÓRIA, de MBarreto Condado
Não somos ninguém e somos toda a gente. Somos filhas, mães, avós. Somos quem somos. Nada nos liga e tudo nos atrai. Somos sonhadoras. Perdemos umas vezes e ganhamos outras tantas. Mas acima de tudo não deixamos de acreditar. Acreditamos que o amanhã será melhor do que o hoje, levamos os nossos sonhos sempre mais além, entramos numa corrida de obstáculos e sabemos que alcançámos a nossa meta quando olhamos à nossa volta e sentimos que o nosso trabalho importa não é somente mais um entre tantos. Afinal somos novas autoras, mas com tanto para contar.
Para nós que continuamos a gostar de ter um livro nas mãos, de o folhear, de cheirar as suas páginas, de mergulhar nesses mundos fantásticos onde somos sempre de alguma forma surpreendidos. É um dia de sentimentos dispares sabemos que uns vão amar a nova criação pelo que comporta e outros vão odiá-la pela mesma razão. Mas para o seu criador é sempre mais, um bocado de si que tão amavelmente oferece.
Acabaram os meses de escrita onde em cada página fica tanto, uma lágrima, um sorriso, um nome, um momento, um local, uma saudade que nunca acaba. E já no final surge aquela capa pois não poderia ser outra.
E não é que faz todo o sentido, afinal quando escrevemos fazemo-lo porque temos o apoio incondicional das pessoas mais importantes na nossa vida e elas correspondem-nos com a mesma intensidade.
Para nós que continuamos a gostar de ter um livro nas mãos, de o folhear, de cheirar as suas páginas, de mergulhar nesses mundos fantásticos onde somos sempre de alguma forma surpreendidos. É um dia de sentimentos dispares sabemos que uns vão amar a nova criação pelo que comporta e outros vão odiá-la pela mesma razão. Mas para o seu criador é sempre mais, um bocado de si que tão amavelmente oferece.
Acabaram os meses de escrita onde em cada página fica tanto, uma lágrima, um sorriso, um nome, um momento, um local, uma saudade que nunca acaba. E já no final surge aquela capa pois não poderia ser outra.
E não é que faz todo o sentido, afinal quando escrevemos fazemo-lo porque temos o apoio incondicional das pessoas mais importantes na nossa vida e elas correspondem-nos com a mesma intensidade.
Published on October 20, 2019 06:00
October 19, 2019
SEXTO SENTIDO, de MBarreto Condado
Dizem que vivemos várias vidas e que nunca nos lembramos delas para que possamos de alguma forma corrigir o que deixámos inacabado. Mas como será possível garantir que desta vez agiremos de acordo com os nossos desígnios? Que desta feita será a última vez que percorreremos o nosso atribulado percurso sem falhar, fazendo desta a nossa última passagem?
Será que as pessoas que nos acompanham agora foram as mesmas que já o fizeram nas nossas vidas passadas?
Gosto de pensar que das vezes que o meu sexto sentido me disse que de alguma forma já as conhecia, que não me tivesse enganado.
Será esta a minha última passagem?
A minha intuição diz-me que não.
Deito-me e fecho os olhos, quero viajar, quero que a minha memória me leve para lá do véu das minhas lembranças, que me permita atravessar a névoa dos tempos e independentemente de quem possa ter sido ter sempre a certeza que estou aqui novamente para acabar o que deixei inacabado.
Sigo por um estreito e escuro caminho, estico as mãos, mas não toco em nada. Tudo à minha volta é vazio, consigo senti-lo.
Fecho os olhos com maior intensidade quero deixar-me levar para lá desse nevoeiro. Quero que se abra para mim e me mostre o que se esconde na infinitude dessas Eras passadas.Sinto que me vai ser dada a oportunidade de ver o que tanto procuro.
Sou banhada por uma luz forte e quente que me embala no meu caminho. Ofuscada por um calor tão humano e no entanto tão ausente, estou só. Ou não estarei?
Tenho a apurada percepção de que alguém me acompanha, inundada por um amor que não consigo abraçar. Deixo-me levar. Sei que ali estou protegida, cheguei a uma casa há muito abandonada.
Abro os meus sentidos. A minha acutilante perspicácia que sempre me deu conselhos certeiros. Sinto-me segura porém não sei onde.
Fisicamente continuo deitada no meu sofá de olhos bem cerrados.
Pressinto o que vai acontecer mesmo antes que aconteça. Continuo rodeada daquela luz quente e protectora. Sinto que estou perto muito perto de saber quem fui. Deixo-me guiar.E quando as cerradas névoas se abrem um pouco é-me permitido ver que fui várias pessoas, fui vilã, vivi em reclusão afastada de olhares curiosos, ajudei com o gado, cultivei terras, fui neta, filha, irmã, mãe. Fui amante, esposa. Morri, vi morrer, matei. Fui cobiçada, cobicei. Fui rica, fui pobre. Ajudei, maltratei.
Vivi várias vidas e morri outras tantas.
Vi tudo em flashes.
E antes que me pudesse aperceber fui novamente conduzida para o meio daquela névoa que me afastava da luz quente que de mim se despedia com a promessa de um até já.”
E sempre guiada pelo meu instinto quase sempre infalível e certeiro, abri a medo os olhos. Continuava deitada no meu sofá.
E do fundo das minhas memórias soube que a minha passagem ainda não estava terminada, uma voz persistia na minha cabeça dizendo-me para confiar no meu sexto sentido pois seria ele a levar-me de volta a casa, ao calor das suas almas e à ausência de incertezas.
Sei que elas me esperam.
E quando acabar esta minha nova e não derradeira passagem reencontrarei quem tanto me ama e protege.
O sexto véu dos sentidos.
Será que as pessoas que nos acompanham agora foram as mesmas que já o fizeram nas nossas vidas passadas?
Gosto de pensar que das vezes que o meu sexto sentido me disse que de alguma forma já as conhecia, que não me tivesse enganado.
Será esta a minha última passagem?
A minha intuição diz-me que não.
Deito-me e fecho os olhos, quero viajar, quero que a minha memória me leve para lá do véu das minhas lembranças, que me permita atravessar a névoa dos tempos e independentemente de quem possa ter sido ter sempre a certeza que estou aqui novamente para acabar o que deixei inacabado.
Sigo por um estreito e escuro caminho, estico as mãos, mas não toco em nada. Tudo à minha volta é vazio, consigo senti-lo.
Fecho os olhos com maior intensidade quero deixar-me levar para lá desse nevoeiro. Quero que se abra para mim e me mostre o que se esconde na infinitude dessas Eras passadas.Sinto que me vai ser dada a oportunidade de ver o que tanto procuro.
Sou banhada por uma luz forte e quente que me embala no meu caminho. Ofuscada por um calor tão humano e no entanto tão ausente, estou só. Ou não estarei?
Tenho a apurada percepção de que alguém me acompanha, inundada por um amor que não consigo abraçar. Deixo-me levar. Sei que ali estou protegida, cheguei a uma casa há muito abandonada.
Abro os meus sentidos. A minha acutilante perspicácia que sempre me deu conselhos certeiros. Sinto-me segura porém não sei onde.
Fisicamente continuo deitada no meu sofá de olhos bem cerrados.
Pressinto o que vai acontecer mesmo antes que aconteça. Continuo rodeada daquela luz quente e protectora. Sinto que estou perto muito perto de saber quem fui. Deixo-me guiar.E quando as cerradas névoas se abrem um pouco é-me permitido ver que fui várias pessoas, fui vilã, vivi em reclusão afastada de olhares curiosos, ajudei com o gado, cultivei terras, fui neta, filha, irmã, mãe. Fui amante, esposa. Morri, vi morrer, matei. Fui cobiçada, cobicei. Fui rica, fui pobre. Ajudei, maltratei.
Vivi várias vidas e morri outras tantas.
Vi tudo em flashes.
E antes que me pudesse aperceber fui novamente conduzida para o meio daquela névoa que me afastava da luz quente que de mim se despedia com a promessa de um até já.”
E sempre guiada pelo meu instinto quase sempre infalível e certeiro, abri a medo os olhos. Continuava deitada no meu sofá.
E do fundo das minhas memórias soube que a minha passagem ainda não estava terminada, uma voz persistia na minha cabeça dizendo-me para confiar no meu sexto sentido pois seria ele a levar-me de volta a casa, ao calor das suas almas e à ausência de incertezas.
Sei que elas me esperam.
E quando acabar esta minha nova e não derradeira passagem reencontrarei quem tanto me ama e protege.
O sexto véu dos sentidos.
Published on October 19, 2019 06:00
October 18, 2019
O TIO JAZIGO, de MBarreto Condado
Há muitos, muitos anos, num lindo dia de primavera nascia em Lisboa um menino enfesadinho, filho mais velho de um homem que já na altura tinha idade para ser seu avô com uma jovem mulher conformada com o que a sorte lhe reservara na vida.
Fez os estudos de liceu que não se sabe se terá terminado pois o pequeno tinha tanto de cabeça quanto de envergadura. Era, contudo, dotado de um exagerado ego complementado por uma assumida presunção. Aprendeu a viver de biscates e do charme aplicado a senhoras de avançada idade que além de falta de vista, felizmente para ele, já se contentavam com pouco.
Exigia que todos os que com ele privavam o tratassem por "Tio", sentia que dessa forma atingia o tão almejado estatuto social pelo que ansiava há tanto tempo. Dizia que tinha cursado engenharia e até frequentara direito, algo que nunca se viria a confirmar. A única certeza comprovada por fotografias é que tinha feito o serviço militar em cavalaria, pois essa era a única forma de no alto da sua garupa poder mostrar o porte altivo que lhe faltava no alto do seu parco metro e meio.
Casou-se com a filha do comandante. Ganhando além de um sogro poderoso o ódio de todos aqueles que lutavam por aquela merecida graduação sem terem que se vender.
Mas também aqui não se sentiu completo, o que o levaria de volta aos seus velhos truques para com as velhas herdeiras.
Seria delas que viria a "herdar" as casas e o seu recheio, sempre em detrimento das suas verdadeiras famílias. O melhor dos respectivos espólios era delapidado ainda durante a parca vida das velhas senhoras. O que lhe interessava chamava-lhe herança familiar, o que não pretendia manter, vendia e chamava-lhe "antiques". Sim porque com o tempo veio a ficar muito refinado na maneira de vestir e falar. Não saia de casa sem o seu plastron a envolver-lhe o pescoço. E não dispensava a utilização de vocabulário francês, como “restaurant”. Viria a tornar-se num verdadeiro "connaisseur" de todos os aspectos da doação em vida e de heranças.
Tornou-se detentor da maioria dos jazigos no cemitério do Alto de São João. Local onde passava horas tentando decidir em qual deles quereria ser colocado quando o seu momento chegasse. Sim, porque era muito importante manter as aparências mesmo para além da vida, tinha que ter em conta a vista privilegiada de cada um deles bem como os seus futuros vizinhos.
Gostava de afirmar aos poucos que o quisessem ainda ouvir que até o próprio Eça de Queirós, que tratava por tu, teria baseado uma das suas melhores obras se não a melhor, na sua linhagem familiar, tal era a fanfarronice.
Os jantares de natal, esses, eram sempre requintados e inesquecíveis, língua de vaca estufada bem regada com a única garrafa de vinho, também essa oferecida, tudo para dividir pela família contando que ainda tinham que sobrar “les restes” para o almoço do dia seguinte que seria soberbamente acompanhado de muito pão duro e fome.
As férias, essas eram sempre em casa de outros, onde fazia questão de ficar hospedado o tempo que achasse necessário para se recompor de tanta soberba. E era por principio que partia sempre sem se despedir. Afinal era um favor que lhes fazia ao presenteá-los com a sua tão ilustre presença.
Teve três filhos. O mais velho ao qual tratava por asno cedo foi enviado para um colégio interno, sempre era menos uma boca para alimentar. A filha mantinha residência permanente em casa de um primo, mas seria no mais novo que conseguiria ver alguns traços seus. O mesmo uso do plastron, de francesices, e com a mesma destreza de manter sempre a carteira na mão sem nunca a abrir para pagar. Afinal, o dinheiro não nascia das árvores.
No dia da sua morte deixaria como legado móveis com caruncho, casas alugadas e um elevado espólio de jazigos. Até porque no final seria cremado e as cinzas deitadas em parte incerta.
Os jazigos, esses ficariam desertos apesar da vista sobre o Tejo. E é presumível assumir que no Inferno nem o Diabo gosta dele. E será certamente lá que se escrevem neste momento os próximos capítulos d’"os ilustres jazigos do Tio".
Fez os estudos de liceu que não se sabe se terá terminado pois o pequeno tinha tanto de cabeça quanto de envergadura. Era, contudo, dotado de um exagerado ego complementado por uma assumida presunção. Aprendeu a viver de biscates e do charme aplicado a senhoras de avançada idade que além de falta de vista, felizmente para ele, já se contentavam com pouco.
Exigia que todos os que com ele privavam o tratassem por "Tio", sentia que dessa forma atingia o tão almejado estatuto social pelo que ansiava há tanto tempo. Dizia que tinha cursado engenharia e até frequentara direito, algo que nunca se viria a confirmar. A única certeza comprovada por fotografias é que tinha feito o serviço militar em cavalaria, pois essa era a única forma de no alto da sua garupa poder mostrar o porte altivo que lhe faltava no alto do seu parco metro e meio.
Casou-se com a filha do comandante. Ganhando além de um sogro poderoso o ódio de todos aqueles que lutavam por aquela merecida graduação sem terem que se vender.
Mas também aqui não se sentiu completo, o que o levaria de volta aos seus velhos truques para com as velhas herdeiras.
Seria delas que viria a "herdar" as casas e o seu recheio, sempre em detrimento das suas verdadeiras famílias. O melhor dos respectivos espólios era delapidado ainda durante a parca vida das velhas senhoras. O que lhe interessava chamava-lhe herança familiar, o que não pretendia manter, vendia e chamava-lhe "antiques". Sim porque com o tempo veio a ficar muito refinado na maneira de vestir e falar. Não saia de casa sem o seu plastron a envolver-lhe o pescoço. E não dispensava a utilização de vocabulário francês, como “restaurant”. Viria a tornar-se num verdadeiro "connaisseur" de todos os aspectos da doação em vida e de heranças.
Tornou-se detentor da maioria dos jazigos no cemitério do Alto de São João. Local onde passava horas tentando decidir em qual deles quereria ser colocado quando o seu momento chegasse. Sim, porque era muito importante manter as aparências mesmo para além da vida, tinha que ter em conta a vista privilegiada de cada um deles bem como os seus futuros vizinhos.
Gostava de afirmar aos poucos que o quisessem ainda ouvir que até o próprio Eça de Queirós, que tratava por tu, teria baseado uma das suas melhores obras se não a melhor, na sua linhagem familiar, tal era a fanfarronice.
Os jantares de natal, esses, eram sempre requintados e inesquecíveis, língua de vaca estufada bem regada com a única garrafa de vinho, também essa oferecida, tudo para dividir pela família contando que ainda tinham que sobrar “les restes” para o almoço do dia seguinte que seria soberbamente acompanhado de muito pão duro e fome.
As férias, essas eram sempre em casa de outros, onde fazia questão de ficar hospedado o tempo que achasse necessário para se recompor de tanta soberba. E era por principio que partia sempre sem se despedir. Afinal era um favor que lhes fazia ao presenteá-los com a sua tão ilustre presença.
Teve três filhos. O mais velho ao qual tratava por asno cedo foi enviado para um colégio interno, sempre era menos uma boca para alimentar. A filha mantinha residência permanente em casa de um primo, mas seria no mais novo que conseguiria ver alguns traços seus. O mesmo uso do plastron, de francesices, e com a mesma destreza de manter sempre a carteira na mão sem nunca a abrir para pagar. Afinal, o dinheiro não nascia das árvores.
No dia da sua morte deixaria como legado móveis com caruncho, casas alugadas e um elevado espólio de jazigos. Até porque no final seria cremado e as cinzas deitadas em parte incerta.
Os jazigos, esses ficariam desertos apesar da vista sobre o Tejo. E é presumível assumir que no Inferno nem o Diabo gosta dele. E será certamente lá que se escrevem neste momento os próximos capítulos d’"os ilustres jazigos do Tio".
Published on October 18, 2019 06:00
October 17, 2019
CURVA ESTRADA, de MBarreto Condado
- Espera! Não saias. Temos que conversar.
A sua mão já apertava o manípulo da porta, mas parou.
- Não me amas?
Porque lhe perguntava tal coisa? Será que não sabia que aquilo a que chamava amor era sobreavaliado?
- Olha para mim por favor. Diz-me o que queres que mude.
Não queria que mudasse. Só queria sair.
- Todo este tempo juntos e não consegues pensar em mim? No que sinto?
Já tinha passado realmente muito tempo.
- Existe outra é isso?
Existiria sempre outra, outras, não importava.
- Vais ter com ela?
Ainda não sabia o que faria.
- Investi tanto em ti e agora abandonas-me como a um animal.
Não era certo, quando saísse levava o cão.
- E o nosso projecto de vida, vais deitar tudo a perder?
Aquele projecto não era seu.
- As viagens que planeámos fazer.
Tinha no bolso das calças as chaves do carro.
- A casa que sonhámos comprar.
Queria ir para perto do mar, talvez a Marginal.
- Os filhos que contámos ter.
Para ele o tempo nunca seria uma preocupação.
- Vais deixar tudo para trás?
Tentava há uns bons dez minutos, mas ainda não conseguira.
- O que vou dizer aos meus pais?
O que quisesse.
- Á minha família?
Podia fazer um jantar e comunicava ao mesmo tempo, quem sabe com um bom vinho.
- O que vão os nossos amigos pensar?
Que demorei muito tempo.
- Vamos dividir tudo aquilo que comprámos com tantas dificuldades?
Podia ficar com tudo. Odiava particularmente o sofá.
- Não achas que nos devemos mais uma oportunidade?
Não estava a ficar mais novo.
- Vai então, sai como o cobarde que és.
Abriu a porta, assobiou para o cão que veio a correr a abanar a cauda também ele queria sair dali depressa, tinham que aproveitar aquela oportunidade antes que mudasse de ideias.
O silêncio que reinava atrás de si era ensurdecedor. Voltou-se lentamente para olhá-la pela primeira vez desde que aquela ladainha começara.
- Queres vir passear connosco? Já não faz tanto calor e vamos só um pouco para além da curva da estrada.
Pegou no casaco.
Saíram juntos, de mãos dadas, com o coração aquecido pelas diferenças que os uniam. Mais tarde cairiam na cama onde se amariam, dois corpos suados, saciados sem promessas e o dia seguinte seria um novo recomeço com mais algumas diferenças.
Published on October 17, 2019 06:00
October 16, 2019
UM DIA MÁGICO
A escola parecia diferente naquele dia. As funcionárias recebiam-nos à entrada vestidas de bruxas, nem faltavam os corvos negros pousados nos seus ombros. As paredes dos corredores estavam cobertas de teias de aranhas gigantes, mantos escuros tapavam as janelas. Conseguiam vislumbrar pelos cantos, olhos a brilhar como se os observassem. Aceleraram o passo para as respectivas salas de aulas. Esperavam que ali não fosse tão assustador. Mas estavam enganados a sala ainda estava pior, parecia assombrada.
- Mas o que é que se passa aqui? – Luís foi o primeiro a falar.
Estavam todos parados à entrada, ninguém queria ser o primeiro a entrar.
- Onde está a professora?
Juntaram-se mais começavam a sentir medo.
Nesse momento ouviram um restolhar ao fundo da sala, olharam todos naquela direcção, mas a escuridão não lhes permitia ver quem era. Começaram a dar um passo para fora dali. Sabiam que bastava um começar a correr para irem todos atrás.
- Bem-vindos alunos do 6A.
Houve quem gritasse de medo. Mas a voz era-lhes familiar. Não se mexeram.
- Entrem e sentem-se. Hoje é um dia muito especial. Hoje celebramos o Halloween.
Viram quando um vulto envolto numa longa capa avançava na sua direcção, queriam fugir, mas os pés não se mexiam.
- Vamos. Não tenham medo. Sentem-se.
- Professora? - foi com a voz sumida que Luís conseguiu perguntar.
- Sim sou eu. Agora ocupem os vossos lugares.
Sentaram-se tão depressa quanto conseguiam. Os alunos das últimas filas olhavam em volta desconfiados, sabiam que naquele momento aqueles lugares não eram os melhores. Davam tudo para trocar com os colegas da primeira fila. Pelo menos ali estavam mais perto da porta.
Nunca aquela sala estivera tão silenciosa. Aliás toda a escola. Parecia que conseguiam ouvir as moscas a voar pelos corredores, coitadas, nem elas estavam livres de perigo se caíssem numa daquelas enormes teias de aranha.
- Sabem que dia é hoje?
A professora continuava a andar pelo meio deles enquanto falava, deixando-os ainda mais nervosos.- Alguém me sabe dizer o que é o Halloween?
Como continuassem todos sem conseguir responder a professora continuou.
- Será um dia mágico? Como se celebra? Pois bem vou explicar-vos. Neste dia podemos ser quem quisermos, um super-herói ou um super vilão. Fadas, bruxas, palhaços, vampiros, princesas. Podemos fazer caras assustadoras com as abóboras, bolos com o seu recheio, pedir “doçuras” ou fazer “travessuras” ou podemos simplesmente não fazer nada.
Já todos se tinham esquecido do medo sentido inicialmente, agora estavam pendentes das palavras da professora.
- Mas este ano e visto que é a primeira vez que festejamos este “Dia das Bruxas” como também é conhecido decidi contar-vos uma história.
- De terror? – Ana perguntou com a voz a tremer de emoção
- Aterradora!
E assim começou:
“Naquela manhã quando chegaram à escola os alunos viram que algo tinha mudado, a escola parecia diferente, as pessoas andavam estranhas, até as simpáticas funcionárias pareciam apáticas. Caminharam todos muito juntos pelos largos corredores não ousando fazer barulho, o silêncio era ensurdecedor. As professoras e professores esperavam por eles dentro das suas salas, esperavam que entrassem e se sentassem e depois ficaram ali parados a olhar para eles sem nada dizerem.
O tempo ia passando tão lentamente que parecia ter parado.
Lá fora o dia escurecia como que acompanhando a disposição dentro daquelas paredes.
O silêncio reinava. Parecia uma escola deserta apesar de lá estarem todos.
O alarme a anunciar o final daquela aula disparou fazendo com que alguns gritassem. Os professores continuavam parados, assim tinham estado durante todo o período da aula. A medo alguns alunos começaram a levantar-se imediatamente seguidos dos colegas.
Saiam para os corredores. Só se encontravam lá eles, não havia nenhum adulto por perto.
Alguém gritou que estavam fechados lá dentro. As portas da escola tinham sido todas trancadas a cadeado. Voltaram a olhar para dentro das salas de aulas, os professores continuavam sem se mexer a única diferença é que nas suas carteiras estavam agora sentados os seus pais. Por onde é que eles tinham entrado que não os tinham visto?
Naquele momento, o alarme a anunciar o início da próxima aula tocou, mas desta vez soou como o grito de uma bruxa. Os pais e professores olharam todos na direcção deles e ….
- Mas o que é que se passa aqui? – Luís foi o primeiro a falar.
Estavam todos parados à entrada, ninguém queria ser o primeiro a entrar.
- Onde está a professora?
Juntaram-se mais começavam a sentir medo.
Nesse momento ouviram um restolhar ao fundo da sala, olharam todos naquela direcção, mas a escuridão não lhes permitia ver quem era. Começaram a dar um passo para fora dali. Sabiam que bastava um começar a correr para irem todos atrás.
- Bem-vindos alunos do 6A.
Houve quem gritasse de medo. Mas a voz era-lhes familiar. Não se mexeram.
- Entrem e sentem-se. Hoje é um dia muito especial. Hoje celebramos o Halloween.
Viram quando um vulto envolto numa longa capa avançava na sua direcção, queriam fugir, mas os pés não se mexiam.
- Vamos. Não tenham medo. Sentem-se.
- Professora? - foi com a voz sumida que Luís conseguiu perguntar.
- Sim sou eu. Agora ocupem os vossos lugares.
Sentaram-se tão depressa quanto conseguiam. Os alunos das últimas filas olhavam em volta desconfiados, sabiam que naquele momento aqueles lugares não eram os melhores. Davam tudo para trocar com os colegas da primeira fila. Pelo menos ali estavam mais perto da porta.
Nunca aquela sala estivera tão silenciosa. Aliás toda a escola. Parecia que conseguiam ouvir as moscas a voar pelos corredores, coitadas, nem elas estavam livres de perigo se caíssem numa daquelas enormes teias de aranha.
- Sabem que dia é hoje?
A professora continuava a andar pelo meio deles enquanto falava, deixando-os ainda mais nervosos.- Alguém me sabe dizer o que é o Halloween?
Como continuassem todos sem conseguir responder a professora continuou.
- Será um dia mágico? Como se celebra? Pois bem vou explicar-vos. Neste dia podemos ser quem quisermos, um super-herói ou um super vilão. Fadas, bruxas, palhaços, vampiros, princesas. Podemos fazer caras assustadoras com as abóboras, bolos com o seu recheio, pedir “doçuras” ou fazer “travessuras” ou podemos simplesmente não fazer nada.
Já todos se tinham esquecido do medo sentido inicialmente, agora estavam pendentes das palavras da professora.
- Mas este ano e visto que é a primeira vez que festejamos este “Dia das Bruxas” como também é conhecido decidi contar-vos uma história.
- De terror? – Ana perguntou com a voz a tremer de emoção
- Aterradora!
E assim começou:
“Naquela manhã quando chegaram à escola os alunos viram que algo tinha mudado, a escola parecia diferente, as pessoas andavam estranhas, até as simpáticas funcionárias pareciam apáticas. Caminharam todos muito juntos pelos largos corredores não ousando fazer barulho, o silêncio era ensurdecedor. As professoras e professores esperavam por eles dentro das suas salas, esperavam que entrassem e se sentassem e depois ficaram ali parados a olhar para eles sem nada dizerem.
O tempo ia passando tão lentamente que parecia ter parado.
Lá fora o dia escurecia como que acompanhando a disposição dentro daquelas paredes.
O silêncio reinava. Parecia uma escola deserta apesar de lá estarem todos.
O alarme a anunciar o final daquela aula disparou fazendo com que alguns gritassem. Os professores continuavam parados, assim tinham estado durante todo o período da aula. A medo alguns alunos começaram a levantar-se imediatamente seguidos dos colegas.
Saiam para os corredores. Só se encontravam lá eles, não havia nenhum adulto por perto.
Alguém gritou que estavam fechados lá dentro. As portas da escola tinham sido todas trancadas a cadeado. Voltaram a olhar para dentro das salas de aulas, os professores continuavam sem se mexer a única diferença é que nas suas carteiras estavam agora sentados os seus pais. Por onde é que eles tinham entrado que não os tinham visto?
Naquele momento, o alarme a anunciar o início da próxima aula tocou, mas desta vez soou como o grito de uma bruxa. Os pais e professores olharam todos na direcção deles e ….
Published on October 16, 2019 03:00
October 15, 2019
A CASA ASSOMBRADA
Todos sabem da existência do velho casarão virado para a baia. Abandonado pelo tempo e pela sua própria história. Dizem ser uma das primeiras casas construída naquele local. Porém, pouco se sabe sobre a vida de quem lá vivera, os mais velhos garantiam que eram pescadores, uns mais afoitos afirmavam que eram piratas. O que se sabe é que está abandonada há muito tempo e a sua história continua sem ser contada.
Aqueles que passam na marginal depois da meia noite juram já ter visto vultos caminhando no seu interior sob luzes tremeluzentes de velas juram até já ter ouvido vozes a murmurar um convite.Contudo, ao longo do tempo o velho casarão acabou por tornar-se num local de romaria para os curiosos do sobrenatural.
Para surpresa de muitos, recentemente foi autorizado a um grupo específico de alunos uma visita de estudo a esta velha casa na companhia dos seus professores e do actual dono que aparecera misteriosamente uns dias antes.
No dia combinado o grupo de alunos já se encontrava parado à frente do portão de ferro forjado aguardando em silêncio. Aquela ausência das habituais conversas entre eles deixou pasmados até os seus professores. A verdade é que todos se encontravam nervosos perante o que iriam ver lá dentro. Nunca antes ninguém lá entrara. Isto era, ninguém que não pertencesse aquela família.
O sol permanecia escondido atrás das carregadas nuvens conferindo aquele local um ar muito mais sinistro do que já tinha. Algumas alunas soluçavam receosas enquanto os professores as acalmavam. Também para eles que tinham crescido naquele local aquela era uma oportunidade única de ver o que nunca ninguém vira.
O portão abriu-se permitindo-lhes a passagem, rangendo sonoramente como que empurrado por uma mão invisível.
Entraram no pátio da casa atravessando uma névoa fina quase imperceptível. A turma acompanhada pelo seu director de turma que caminhava à sua frente e a encerrar o grupo o professor de educação física.
Continuavam todos em silêncio.
Na ombreira da porta viram um vulto alto e escuro que os fez estancar o passo.
- Bem-vindos a minha casa. Façam o favor de entrar.
Aquele convite fez gelar o sangue nas veias dos professores. Soava como se ao aceitarem aquele convite nunca mais pudessem sair.
Entraram, parando no largo vestíbulo. A porta voltou a fechar-se atrás deles desta vez silenciosamente. O misterioso homem avançou até ao centro daquele grupo olhando cada um deles nos olhos:
- Como sabem esta é a primeira vez que a casa se abre para receber visitas. A última vez que foi habitada faz no dia de hoje precisamente oitocentos anos. Sei que existem muitas histórias à volta da minha família e desta casa. Pois bem estou aqui para vos matar essa curiosidade.
Os professores entreolharam-se aquela última frase não lhes tinha soado muito bem. Aproximaram-se mais daquele estranho colocando-se entre ele e os alunos. Se fosse necessário estavam ali para os proteger.
- Como estava a dizer. Vou fazer-vos um breve resumo da história da minha família e depois se quiserem podem dar uma volta pela casa e pelo jardim que fica na parte de trás. – fez uma pausa - Somos uma família de gentes do mar. Vivemos grande parte da nossa vida do que o mar nos dava e foi desse mesmo mar que veio a nossa riqueza.
- Eram piratas? – um dos alunos gritou a pergunta.
Sorriu-lhe
- Não! Nunca fomos piratas. Mas tivemos a felicidade de encontrar um tesouro.
Ouviram-se murmúrios.
- Num final de tarde depois de não termos pescado nada quando retirávamos a última rede notámos que esta trazia um peso extra. Qual não foi a nossa surpresa quando vimos uma bela mulher lá presa.
O silêncio era assustador.
- Era a mais bela mulher que já tinha visto. Trouxe-a para esta casa que na altura não passava de um casebre. Tratei dela e eventualmente casámo-nos. Nos primeiros dez anos de vida juntos tudo em que tocava se transformava em ouro, mas apesar da riqueza nunca fomos abençoados com filhos.
Suspirou parecia que lembrar-se daquela história o amargurava.
- Contudo, no dia em que celebrávamos exactamente dez anos ela desapareceu. E eu perdido com a sua estranha ausência e por não a encontrar voltei para o mar à sua procura. Ainda hoje o faço. Mas de dez em dez anos na data do nosso encontro volto sempre a esta casa na esperança de que ela tenha voltado.
Fez nova pausa.
- Por esse motivo esta casa continua e continuará aqui até que nos encontremos novamente nesta vida. Agora que já conhecem a minha história convido-vos a passearem pela casa à vontade. Está tudo como foi deixado naquela altura.
Sem dizer mais nada afastou-se desaparecendo por detrás da porta da sala.
Os professores ainda estavam meio aturdidos com o que tinham acabado de ouvir. Contudo os seus alunos já percorriam todos os recantos a investigar.
Certificaram-se que se encontravam sozinhos antes de voltarem a falar.
- Não achas estranho que ele tenha contado aquela história como se tudo se tivesse passado com ele?
- Mais estranho ainda por ter acontecido tudo há oitocentos anos atrás. Começaram a andar através daquelas largas salas, tinham que garantir que deixavam aquele local tal como o tinham encontrado.
Estava tudo estranhamente limpo apesar de não estar habitada. O ar degradado do seu exterior não combinava com o que ali viam.
- Não te cheira a bolo acabado de fazer?
- Cheira.
- Ouves isto?
- Não ouço nada.
- Nem eu! Onde estarão os miúdos?
Não foi necessário dizer mais nada instintivamente correram na direcção de onde lhes chegava o cheiro a comida.
Quando se aproximaram do salão pararam ao ouvir a voz melodiosa de uma mulher. Da ombreira da porta não queriam acreditar no que os seus olhos viam. A mesa estava repleta de bolos, pão acabado de sair do forno, sumos. A lareira crepitava aquecendo a sala e no centro sentada num cadeirão estava uma jovem mulher. Os alunos pareciam hipnotizados pela sua presença, escutando-a atentamente.Não ousaram mexer-se. Sentiam que estavam perante um fantasma.
Ouviram passos atrás de si voltaram-se a medo e viram o seu anfitrião parar e olhar perplexo para a mesma visão.
- Ana!
A mulher voltou-se sorrindo-lhe.
Avançou na direcção dela passando através deles. Arrancou a mulher da cadeira apertando-a nos seus braços.
- Finalmente encontrei-te
- Tenho estado sempre aqui. Vejo-te apesar de saber que não me vês.
- Porque desapareceste?
- Porque o tempo que me tinha sido permitido para estar junto de ti se esgotou.
- Não desapareças novamente por favor.
- Agora que conseguiste encher esta casa de crianças a minha má sorte acabou. Ficaremos juntos para sempre.
Os professores não queriam acreditar no que viam e ouviam.
Naquele momento tudo à sua volta desapareceu e eles …
Aqueles que passam na marginal depois da meia noite juram já ter visto vultos caminhando no seu interior sob luzes tremeluzentes de velas juram até já ter ouvido vozes a murmurar um convite.Contudo, ao longo do tempo o velho casarão acabou por tornar-se num local de romaria para os curiosos do sobrenatural.
Para surpresa de muitos, recentemente foi autorizado a um grupo específico de alunos uma visita de estudo a esta velha casa na companhia dos seus professores e do actual dono que aparecera misteriosamente uns dias antes.
No dia combinado o grupo de alunos já se encontrava parado à frente do portão de ferro forjado aguardando em silêncio. Aquela ausência das habituais conversas entre eles deixou pasmados até os seus professores. A verdade é que todos se encontravam nervosos perante o que iriam ver lá dentro. Nunca antes ninguém lá entrara. Isto era, ninguém que não pertencesse aquela família.
O sol permanecia escondido atrás das carregadas nuvens conferindo aquele local um ar muito mais sinistro do que já tinha. Algumas alunas soluçavam receosas enquanto os professores as acalmavam. Também para eles que tinham crescido naquele local aquela era uma oportunidade única de ver o que nunca ninguém vira.
O portão abriu-se permitindo-lhes a passagem, rangendo sonoramente como que empurrado por uma mão invisível.
Entraram no pátio da casa atravessando uma névoa fina quase imperceptível. A turma acompanhada pelo seu director de turma que caminhava à sua frente e a encerrar o grupo o professor de educação física.
Continuavam todos em silêncio.
Na ombreira da porta viram um vulto alto e escuro que os fez estancar o passo.
- Bem-vindos a minha casa. Façam o favor de entrar.
Aquele convite fez gelar o sangue nas veias dos professores. Soava como se ao aceitarem aquele convite nunca mais pudessem sair.
Entraram, parando no largo vestíbulo. A porta voltou a fechar-se atrás deles desta vez silenciosamente. O misterioso homem avançou até ao centro daquele grupo olhando cada um deles nos olhos:
- Como sabem esta é a primeira vez que a casa se abre para receber visitas. A última vez que foi habitada faz no dia de hoje precisamente oitocentos anos. Sei que existem muitas histórias à volta da minha família e desta casa. Pois bem estou aqui para vos matar essa curiosidade.
Os professores entreolharam-se aquela última frase não lhes tinha soado muito bem. Aproximaram-se mais daquele estranho colocando-se entre ele e os alunos. Se fosse necessário estavam ali para os proteger.
- Como estava a dizer. Vou fazer-vos um breve resumo da história da minha família e depois se quiserem podem dar uma volta pela casa e pelo jardim que fica na parte de trás. – fez uma pausa - Somos uma família de gentes do mar. Vivemos grande parte da nossa vida do que o mar nos dava e foi desse mesmo mar que veio a nossa riqueza.
- Eram piratas? – um dos alunos gritou a pergunta.
Sorriu-lhe
- Não! Nunca fomos piratas. Mas tivemos a felicidade de encontrar um tesouro.
Ouviram-se murmúrios.
- Num final de tarde depois de não termos pescado nada quando retirávamos a última rede notámos que esta trazia um peso extra. Qual não foi a nossa surpresa quando vimos uma bela mulher lá presa.
O silêncio era assustador.
- Era a mais bela mulher que já tinha visto. Trouxe-a para esta casa que na altura não passava de um casebre. Tratei dela e eventualmente casámo-nos. Nos primeiros dez anos de vida juntos tudo em que tocava se transformava em ouro, mas apesar da riqueza nunca fomos abençoados com filhos.
Suspirou parecia que lembrar-se daquela história o amargurava.
- Contudo, no dia em que celebrávamos exactamente dez anos ela desapareceu. E eu perdido com a sua estranha ausência e por não a encontrar voltei para o mar à sua procura. Ainda hoje o faço. Mas de dez em dez anos na data do nosso encontro volto sempre a esta casa na esperança de que ela tenha voltado.
Fez nova pausa.
- Por esse motivo esta casa continua e continuará aqui até que nos encontremos novamente nesta vida. Agora que já conhecem a minha história convido-vos a passearem pela casa à vontade. Está tudo como foi deixado naquela altura.
Sem dizer mais nada afastou-se desaparecendo por detrás da porta da sala.
Os professores ainda estavam meio aturdidos com o que tinham acabado de ouvir. Contudo os seus alunos já percorriam todos os recantos a investigar.
Certificaram-se que se encontravam sozinhos antes de voltarem a falar.
- Não achas estranho que ele tenha contado aquela história como se tudo se tivesse passado com ele?
- Mais estranho ainda por ter acontecido tudo há oitocentos anos atrás. Começaram a andar através daquelas largas salas, tinham que garantir que deixavam aquele local tal como o tinham encontrado.
Estava tudo estranhamente limpo apesar de não estar habitada. O ar degradado do seu exterior não combinava com o que ali viam.
- Não te cheira a bolo acabado de fazer?
- Cheira.
- Ouves isto?
- Não ouço nada.
- Nem eu! Onde estarão os miúdos?
Não foi necessário dizer mais nada instintivamente correram na direcção de onde lhes chegava o cheiro a comida.
Quando se aproximaram do salão pararam ao ouvir a voz melodiosa de uma mulher. Da ombreira da porta não queriam acreditar no que os seus olhos viam. A mesa estava repleta de bolos, pão acabado de sair do forno, sumos. A lareira crepitava aquecendo a sala e no centro sentada num cadeirão estava uma jovem mulher. Os alunos pareciam hipnotizados pela sua presença, escutando-a atentamente.Não ousaram mexer-se. Sentiam que estavam perante um fantasma.
Ouviram passos atrás de si voltaram-se a medo e viram o seu anfitrião parar e olhar perplexo para a mesma visão.
- Ana!
A mulher voltou-se sorrindo-lhe.
Avançou na direcção dela passando através deles. Arrancou a mulher da cadeira apertando-a nos seus braços.
- Finalmente encontrei-te
- Tenho estado sempre aqui. Vejo-te apesar de saber que não me vês.
- Porque desapareceste?
- Porque o tempo que me tinha sido permitido para estar junto de ti se esgotou.
- Não desapareças novamente por favor.
- Agora que conseguiste encher esta casa de crianças a minha má sorte acabou. Ficaremos juntos para sempre.
Os professores não queriam acreditar no que viam e ouviam.
Naquele momento tudo à sua volta desapareceu e eles …
Published on October 15, 2019 03:00


