Joel Neto's Blog, page 90
June 27, 2012
Três semanas de Açores, futebol e São João
DIÁRIO, Jornal de Letras de 27 de Junho de 2012
Angra do Heroísmo, 6 de Junho de 2012
Aterro no Aeroporto das Lajes e nem tenho tempo para ir tomar um duche: a Catarina segue para casa com as malas, eu vou directamente para a Conferência da Autonomia – Cidadania e Cultura, de que sou conferencista e moderador. Ao fim de dezasseis anos de poder ininterrupto, a governação socialista açoriana prepara-se para cair de podre. Para trás fica década e meia de um exercício que começou bem, mas se degradou depressa. Os Açores de hoje lideram (ou disputam a liderança em) quase todos os piores índices nacionais: o consumo de álcool, a violência doméstica, a gravidez precoce, o usufruto do rendimento social de inserção. Pelos meus cálculos (não há estatísticas oficiais), mais de um quinto da população vive agora de subsídios à sobrevivência. Eleitoralismo, populismo, laxismo – o cocktail é explosivo há demasiado tempo. Mas, desta vez, a oportunidade é clara. Berta Cabral, candidata do PSD, mobiliza a sério. E eu pretendo estar com ela até à vitória de Outubro.
Terra Chã, 7 de Junho de 2012
José Guilherme. Todos os anos regresso à casa dele. Durmo na cama onde ele dormiu, como nos pratos em que ele comeu, abro e fecho as portas e as janelas que ele abriu e fechou. O meu avô. Estou no pequeno jardim que instalei onde outrora ele tinha o quintal. Gostava que pudesse ver esta horta que plantei nos fundos. Gostava de mostrar-lhe a araucária, já quase da altura da casa (ainda bem que sou imune a superstições), e de discutir com ele os meus planos para pôr um jacarandá no lugar do araçaleiro que nunca se desenvolveu. Talvez devesse passar aqui um ano inteiro, a assistir a pelo menos um ciclo completo da natureza. Fazer uma horta a sério no cerrado grande, criar uma vaca no cerradinho de cima, a que chamamos Tira. Falta-me a coragem. Mas ainda tenho isto: estas estadas cada vez mais longas, em que combino a escrita para os jornais com a escrita de ficção e a contemplação da terra. Sou um tipo com sorte.
Angra do Heroísmo, 9 de Junho de 2012
Vejo o Portugal-Alemanha ao lado do meu pai. Julgo que não me engano se disser que a idade adulta começa no momento em que um homem é pela primeira vez capaz de admirar o seu pai. O meu pai. Tenho a certeza de que, por muito que me tivesse esforçado, e ainda que o houvesse mesmo feito, eu jamais teria conseguido ser durante cinco minutos metade daquilo que ele foi ao longo de toda a vida (e ainda é), sem uma hesitação, sem uma ressalva, sem outra intenção que não apenas sê-lo. Há vinte anos que comunicamos por elipses. Menos quando há futebol. O futebol é o nosso refúgio. Foi a ver futebol que, sem o sabermos, ele plantou em mim a semente renovadora (e até um pouco maligna) da auto-determinação. Portugal não começa mal. Perde, como sempre perderia contra a Alemanha. Mas joga bem. Ou, pelo menos, emite bons sinais. Estamos bem.
Ponta Delgada, 11 de Junho de 2012
Apanho o avião para São Miguel, a pretexto do lançamento de “Os Sítios Sem Resposta” em Ponta Delgada. E comovo-me. Primeiro, com a presença de dezenas de amigos da literatura, do jornalismo e da política. Depois, com a recepção da Livraria Solmar, de José Carlos e Maria Helena Frias, os últimos livreiros clássicos dos Açores. Depois ainda, com a presença de Berta Cabral, na qualidade de presidente da Câmara Municipal de Ponta Delgada. E, finalmente, com a apresentação de Vamberto Freitas, a cuja generosidade e capacidade de realização devemos a sobrevivência de uma crítica literária açoriana. Acabamos a jantar nas Portas do Mar, com os nossos anfitriões e o Urbano Bettencourt, poeta, professor e amigo. Estou em casa, entre os meus. Um escritor açoriano – nunca quis ser mais do que isso.
Terra Chã, 13 de Junho de 2012
Ganhamos à Dinamarca, mas sem brilho. Feito um primeiro balanço, Portugal conseguiu frente à Alemanha um jogo razoável que acabou por correr mal e frente à Dinamarca um jogo medíocre que acabou por correr bem. Hoje, pareceu-me ter identificado ali alguma displicência. Oxalá me engane. Que haja garra. E que, se não houver garra, haja ao menos ética laboral. Tanto talento para tão pouca assertividade é um desperdício.
Terra Chã, 15 de Junho de 2012
A caminhada de hoje foi pelas Veredas. É um dos meus trajectos preferidos. Da Fonte Faneca à Matela, da Mata do Estado à Canada da Serra – cada recanto é um reencontro e uma descoberta. Paro no miradouro do Charcão, junto a uma cerrado repleto de gado, e fico ali a olhar o Monte Brasil, a Terra Chã mesmo sob mim, Angra do Heroísmo apenas um pouco mais à frente. À volta, dispersa-se o odor perfeito: uma delicada combinação de erva húmida, leite morno e bosta de vaca (sim, bosta de vaca), que ao mesmo tempo me devolve à infância e me protege do inquietante rumor lisboeta que ainda trago comigo. Coisas inexplicáveis: nos Açores, até a bosta cheira bem. E o mofo. Isto nem os esforços de Tolstói para universalizar a instituição da aldeia natal alguma vez explicaram.
Terra Chã, 16 de Junho de 2012
Duas semanas de ausência, para viagens e lançamentos, e já não consigo outra vez orientar-me no meio do novo romance. Suponho que ele próprio não saiba ainda quem é. Aproveito e dou uma volta por alguns dos livros que me ofereceram em São Miguel: “O Rochedo Que Chorou”, de João Pedro Porto; “30 Crónicas II”, de Emanuel Jorge Botelho; “Na Esquina das Ilhas”, de Lélia Nunes; “África”, de Urbano Bettencourt; “O Deus dos Últimos”, de Daniel de Sá; “borderCrossings-leituras transatlânticas”, de Vamberto Freitas. Leio o Daniel de Sá todo de uma vez e confirmo-o: independentemente da geografia sobre que escreva, o Daniel escreve sempre sobre a ilha. Em vez de manipular o espaço, manipula o tempo – e o resultado é que cada história de outra geografia é como que uma história a ser contada “na” ilha a alguém que precisa de evadir-se dela por instantes. Que inveja.
Terra Chã, 17 de Junho de 2012
O meu pai foi ao culto. Os protestantes raramente faltam a um culto. Vejo o Portugal-Holanda sozinho. Damos um banho de bola, mas não me divirto nada.
Fajãs da Agualva, 18 de Junho de 2012
18 buracos com o Zorra, o meu habitual companheiro de golfe durante as temporadas terceirenses, no Clube de Golfe da Ilha Terceira. As azáleas estão floridas, as hortênsias começam a abrir. Mas quase não acerto na bola. Este jogo exige tempo, disponibilidade. Não os tenho tido. Nem à paciência.
Terra Chã, 19 de Junho de 2012
Primeiro dia sem chover em uma semana. Aproveito e lavo três máquinas de roupa. É fantástico como, aqui, o tempo parece esticar. Só hoje, li os jornais no iPad, escrevi dois textos, fui a Angra comprar ferragens, passei no supermercado, parei a ver os meus pais, dei um salto à garagem para uma segunda demão numas prateleiras que ando a pintar, voltei para o computador, naveguei pelos jornais online e pela blogosfera, escrevi mais dois textos e saí para uma caminhada pela Canada da Francesa. Isto para além de actualizar o blog, de comentar no Facebook, de falar ao telefone, de conversar com um vizinho sobre uma possível coligação pós-eleitoral do PSD com o CDS e, espero, de ver um filme e ler mais algumas páginas do Döblin, com que pretendo concluir a minha noite. E para além, claro, de lavar, estender e recolher três máquinas de roupa. Em Lisboa, escrevo o mesmo e nem para mudar o lixo me sobra tempo.
Terra Chã, 21 de Junho de 2012
Por esta altura, estou já convencido de que não só Portugal tem hipóteses de chegar ao título continental, como Cristiano Ronaldo caminha a passos largos para o prémio de melhor jogador do Euro 2012. Que grande jogo frente à República Checa, de facto: da selecção toda e do capitão em particular. A carneirada que aproveitou os dois golos que o CR7 falhou contra a Dinamarca para personificar nele o seu ódio ao mundo deve estar em brasa. A tendência para o mimetismo acéfalo é o maior dos inimigos para quem, como eu, pretende insistir nas massas como público-alvo sem abdicar da qualidade.
Angra do Heroísmo, 23 de Junho de 2012
Noite de São João. É apenas a noite mais divertida do meu ano. Escrevo antes, naturalmente: depois seria impossível. Durante oito, dez, doze horas andaremos por ali, entre a Rua da Sé e a Praça Velha, entre o Pátio da Alfândega e a Rua Direita, celebrando o São João, delirando com as marchas, dançando – milhares de pessoas pelas ruas, sem uma garrafa partida, sem um bêbedo a vomitar, sem urinóis a céu aberto. Mais delirante manifestação de açorianidade não conheço. São as Sanjoaninas e são minhas. Tenho de conter as lágrimas quando as reencontro.
Angra do Heroísmo, 25 de Junho de 2012
Manhã do dia de lançamento de “Os Sítios Sem Resposta” em Angra do Heroísmo. Aqui se encerra o ciclo de apresentações do livro. Ainda haverá mais duas ou três sessões de leitura, nomeadamente numa mercearia de São Bartolomeu dos Regatos e no 90º aniversário do Sport Clube Lusitânia, mas sobretudo pelo contacto humano. É sempre o mais emotivo evento de todos, o de Angra – e este ano, com a apresentação de Artur Cunha de Oliveira, não o será seguramente menos. É em primeiro lugar para esta gente que eu escrevo. E para o meu pai.
Portugal, Portugal, Portugal
Novas do Portugal do Chiado e do Cais do Sodré
A resistência da maioria à proposta do Bloco de Esquerda para proibir a exibição de touradas na RTP (e limitá-la na SIC e na TVI) anda a deixar o Portugal do Chiado e do Cais do Sodré absolutamente em brasa. No fundo, todos nós, os que gostam de touradas, ou que pelo menos reconhecem a sua importância histórica e o seu valor etnográfico, somos uns brutos. Ainda no outro dia estava a ver um combate de Ultimate Fighting Championship na SIC Radical e pensei nisso: é curioso que, tanto quanto eu me lembre, nem o Bloco de Esquerda, nem nenhum outro moderninho luso alguma vez promoveu um proposta de lei, ou mesmo um protesto avulsos, sobre a exibição de pessoas estilhaçando-se à porrada e abraçando-se ensaguentadas na televisão. Por outro lado, claro, não é tão curioso assim. Como sabemos, os ucranianos terem “assassinado” uma série de cãezinhos de rua também nos preocupa muito mais do que o massacre de civis na Síria. Esta espécie está de pernas para o ar – e, quanto a isso, já não há nada a fazer./DN
Eu sou tão moderna e fornico tanto

Eu percebo que o canal Hollywood promova uma “festa Sexo e a Cidade” para assinalar a emissão do segundo filme inspirado na série. O que eu não percebo é que tantas e tantas figuras do audiovisual (e do chamado jet set) português continuem a acorrer a este tipo de eventos com tal paixão. Suponho que queiram com isso deixar bem expresso que vão beber à revolução sexual, que também sabem ser sexualmente agressivas e, claro, que são fundamentalmente moderníssimas. Imagino que nunca tenham percebido que Carrie Bradshaw, no seu afã libertário, era profundamente conservadora. E que menos ainda lhes passe pela cabeça que qualquer frenesi em torno de Sexo e a Cidade é tão tonto como andar a vender o “Dartacão” há trinta anos, como fazem os nossos humoristas da personagem geracional e da piada mil vezes repetida./DN
Alerta Carneirada CCXIX
De resto, esqueçamos o árbitro. Tínhamos, é claro, de fazer a nossa parte: pressionar um bocado, chantagear um tanto. Já o fizemos. Agora, é gozar isto. Com franqueza: alguém acha mesmo que foi nomeado um árbitro menor para dar a Platini o gosto de ver um Espanha-Alemanha na final?/O JOGO
Hipótese: a melhor selecção da história do futebol português

Entretanto, pode-se discutir tudo. A mim, pessoalmente, parece-me que esta seleção pode bem ser a melhor da história do futebol português. Talvez não tenha os homenzinhos dos tempos de Coluna e José Águas. Talvez não tenha a força transformadora dos tempos de Figo e Rui Costa. E não é, seguramente, a equipa mais completa, porque apesar de tudo tem um guarda-redes ainda por testar, um lateral-direito limitado, um meio-campo menos criativo do que o desejável e nenhum ponta de lança indiscutível. Mas tem uma dupla de centrais fortíssima e os dois melhores extremos do torneio. É equilibrada e começa a ser solidária também. E, sobretudo, tem uma raiva, uma vontade indómita capaz de transformar cada jogo em algo de pessoal, uma questão de honra, quase um duelo de vida e morte. É algures aí, nas entrelinhas desse desejo, que a perfeição se encontra./O JOGO
Nada menos do que a perfeição

Perguntam-me de um jornal açoriano se acho que Portugal deve apostar hoje na pressão alta, de maneira a evitar que Espanha tenha a bola. Não tenho a certeza. Não sou especialista em tática. Na verdade, até me parece que a pressão alta pode ser exatamente o que a Espanha de 2012 quer. Mas o que me importa é isto: para vencer um Europeu, o torneio mais difícil do mundo, tem de correr tudo bem. Tática, técnica, atlética e animicamente. Mais: temos de ter a sorte do nosso lado. E as decisões discutíveis dos árbitros também têm de beneficiar-nos. Basicamente, o sol e os planetas precisam de estar todos alinhados. Ora, chegámos ao momento em que se trata efetivamente de ganhar a prova. E, portanto, eis aí a altura em que nada pode falhar. Não há soluções de compromisso: apenas a perfeição resolve./O JOGO



