Pedro Guilherme Moreira's Blog, page 29

August 29, 2014

Último dia


Amo-te no último dia de todos os meses
não como no primeiro
porque é diferente o amor do fim
da tormenta do início

há uma linha fina
no princípio dos amantes

que no fim é larga e alta
e clara, ou

nada
PG-M 2014 / fonte da foto

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Published on August 29, 2014 19:07

Mar Babo


Fade out.Este é o últmo "take" do video "May I feel said he", o poema quase onomatopaico e intensamente erótico e bem humorado (quase tudo, portanto) do E.E. Cummings, dito por Mar Babo.Esta é a cara de um conceito: Mar Babo. Escolhi o "fade out", porque é o próprio conceito que se quer manter discreto. Não é notável?Como sempre, Mar Babo está mais atenta do que todos nós.Quando tomei contacto com este conceito, já ela conhecia o meu, bem mais limitado, já ela tinha os meus livros, já ela lera os meus livros. Há algo que me comove sempre em leitores desta estatura: a humildade de se manterem puros, no encantamento absoluto da leitura, algo que eu vou perdendo gradualmente, ao procurar vorazmente novas propostas, novas ocupações da página, ao ler como um escritor. Ler como um escritor dá cabo de tudo, menos da escrita e do sentido de orientação na literatura no tempo. Como somos pó.
Mar Babo faz arte.Escreve, filma, fotografa com uma qualidade rara. Custa dizer que é uma mulher, uma mulher bonita, culta, completa, a rondar os trinta anos. Porque Mar Babo é um conceito. Estou até convencido de que, se concebesse um espectáculo e vendesse bilhetes, éramos todos uns privilegiados. Pode ser que não demore muito. É íntegra. Escreve perigosamente bem, com aquela pureza de quem experimenta há muitos anos e se contém.Tenho dito e repetido: a característica mais forte da arte é a contenção.
Mar Babo tem feito muito, mas a divulgação é discreta, contida. Não sei se isso é justo. Afinal, ela merece o mundo, mas talvez saiba que o mundo pode não a merecer totalmente. Bem divulgada, Mar Babo há muito seria uma artista pop da - imagine-se - literatura. Mar Babo faz vídeos pop com grande literatura, como este "May I feel said he". Afinal, foi o que sempre sonhei, e ela faz prova. Como trazer a grande literatura de volta às massas. Não é vendendo o fácil, porque tem de ser, tratando o povo como burro. Seria burro o povo que se colava ao ecrã a ver Villaret, Viegas, Nemésio? Ah, eram outros tempos, diz a habitual ignorância das coordenações mediáticas, que se gabam de pensar que sabem tudo o que nós gostamos e queremos consumir, nivelando por baixo o prime time (que nos EUA, ainda há bem pouco tempo, era constituído por séries de qualidade).
É mostrando-lhes como o melhor pode ser sublime que Mar Babo se distingue. Mar Babo tem também aquela característica corajosa de se expor. A exposição permite a sindicância do público, ainda que restrito, e com isso, quase em tom socrático, o artista, qualquer artista, cresce. As fraudes, esse novissimos cujas provas dadas são apenas bons ombros - na literatura, mas não só - mostram-se a espaços e sempre protegidos, escondem-se dos seus leitores. Mar Babo mostra, aprende, cruza-se consigo própria.
Fade In:O vídeo concebido, filmado, montado, do "May I feel said he" é, seguramente, das coisas mais vibrantes, depuradas, autênticas, que tenho visto fazer à grande literatura nos últimos anos. Figuraria em galerias de momentos notáveis de um poema, mais do que bem dito, jogado. É todo o corpo que se sente afogado pela forma como a dizeur/ realizadora/ modelo/ fotógrafa nos cerca. Pena ser restrito. Tinham de ser amigos da Mar Babo no facebook para o poderem ver. É uma empresa que aconselho. Tal como desejo que este conceito abra os braços e seja tomado pelo mundo, como merece.
Se um dia eu quiser mostrar a alguém o que se pode fazer da literatura na televisão e no cinema, digo Mar Babo. May I feel?
may i feel said he
(i'll squeal said she
just once said he)
it's fun said she

(may i touch said he
how much said she
a lot said he)
why not said she

(let's go said he
not too far said she
what's too far said he
where you are said she)

may i stay said he
(which way said she
like this said he
if you kiss said she

may i move said he
is it love said she)
if you're willing said he
(but you're killing said she

but it's life said he
but your wife said she
now said he)
ow said she

(tiptop said he
don't stop said she
oh no said he)
go slow said she

(cccome? said he
ummm said she)
you're divine! said he
(you are Mine said she)
Fade out.
PG-M 2014
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Published on August 29, 2014 16:58

Dia 29


Ontem foi um beijo brusco vinhas em branco rua após rua e numa esquina eu 
na esquina em que levas sempre  o peito atado no próprio abraço e vais sem pele 
o nylon cauteriza a alma, pensas 
a solidão na garganta 
o nylon cauteriza a alma, dizes 
a multidão na garganta 
queres morrer nos dias pares e eu ali o beijo os Donna Karen 
po-la-ri-za-dos 
no chão o riso tu a bateres-me de raiva 
o dia 29 será leve tudo em nós será leve, banal, 
e contudo a poesia, Eurídice, está muito aquém disto  
e contudo os poetas, Eurídice, estão muito aquém disto 
mesmo os poetas da Cúria que usam lâminas celtas  para a desmancha das palavras, e comem 
Herberto 
ao pequeno-almoço 
PG-M 2014
fonte da foto
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Published on August 29, 2014 15:57

August 28, 2014

Dia 28



Ao vigésimo oitavo dia do mês
serás amada como no décimo
nas horas de vazio
nos buracos negros

nos momentos em que o olhar
te desliga

enquanto caminhas no passeio
e fazes checklists

em branco,
serás amada em branco

ao inclinares o corpo
para a próxima rua

subitamente eu estarei
dentro da tua boca

PG-M 2014
fonte da foto
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Published on August 28, 2014 12:08

August 26, 2014

O tempo


cada minuto teu tem pelo menos
um segundo meu
e as tuas horas minutos

meus


e os dias,
os dias que levas até ao fim,
horas minhas,
e os meses,
os meses que sulcas por dois rios,
dias meus,
e os anos,
e a vida,
têm pelo menos

um ano inteiro meu

mas depois é o beijo
ou a queda
de um abraço

e nós e o tempo
todo

PG-M 2014
fonte da foto
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Published on August 26, 2014 09:53

As mulheres onde bate o mar


Ela anda cheia de dúvidas, de insegurança na alma e de fragilidade no corpo. É ainda relativamente nova, é ainda das que se esquece que é falível grande parte do ano, é raramente apanhada pela doença, mas aconteceu este inverno. Muita tosse, febre, foi à cama duas vezes, e ainda assim teve de se levantar de manhã para dar o pequeno-almoço às crianças. Nesses dias, depois de os miúdos partirem para escola, ao sentir-se sozinha em casa e, em vez de livre, agrilhoada, débil, fraca, temeu não chegar a ser toda a mãe. Depois viu a agenda das semanas seguintes e temeu não ser toda a amiga, toda a profissional, temeu falhar tudo e todos. Amigas mais íntimas lembraram-lhe que estar doente era a coisa mais natural do mundo, que tinha era de arrepiar caminho e de voltar à vida, que tantas entre elas já tinham ido trabalhar com febre, mas ela punha as pernas fora da cama e era percorrida por uma dor que levava todas as sombras, quando ia fazer o pequeno-almoço ia curvada e apoiava-se em todos os cantos e móveis, quando voltava à cama estava exausta, um dos dias deu até por si desmaiada de bruços sobre o edredon. Ela anda cheia de dúvidas, de insegurança na alma e de fragilidade no corpo. Precisou que a vizinha, mulher dura e fria, que tem na cara as rugas do chão, disse o Torga, que nunca lhe dirigia a palavra, que nunca a tocava, que nunca a festejava, ao vê-la a arrastar-se no pátio para que a roupa dos miúdos ficasse seca para a escola, lhe pedisse, do muro de meação, que lhe abrisse a porta da frente, e, quase a empurrando para a cama, lhe fizesse um chá, lhe pendurasse a roupa no estendal, e lhe dissesse "a senhora, para ser rocha outra vez, tem de se resguardar da tormenta e deste mar de gente que a quer comer", e quando ela disse "mas", a vizinha interrompeu-a, "a senhora tem direito a deslargar o corpo, a senhora tem de ter tempo para molhar a sua almofada com as suas lágrimas, deixe, eu mudo-lhe a fronha, deixe, eu penduro-lhe a roupa, deixe, eu faço-lhe uma sopa branca, deixe, eu faço-lhe um arroz branco, deixe, eu faço-lhe uma cama branca, e durante três dias não se levanta que não seja para si,

a senhora"

Quando ela, cheia de dúvidas, quis alinhar umas frases para explicar à vizinha a gratidão, ela empurrou-a, "a senhora não me deve nada, nós as mulheres somos assim, penedos, escoras, penedos outra vez, a senhora vá-se mas é deitar,

a senhora"

Em três dias a mais nova voltou a ser penedo. Na primeira noite, a vizinha fria agarrou nas mãos dos meninos, quando chegaram da escola, e pediu-lhes para irem ver a mãezinha, para perguntarem se ela precisava de ajuda, e deu-lhes tarefas pequenas. O mais velho ainda se tentou queixar da vizinha ao pai, ele agarrou-lhe vigorosamente um maxilar, o miúdo calou-se.

Faziam quarenta anos de diferença. A mais velha era viúva. Quando chegou o momento, a mais nova pediu uma licença no trabalho - não faltava desde a doença - e paramentou o quarto da mais velha, mudou a temperatura das lâmpadas, a roupa da cama, as almofadas, e, quando ela viajava inconsciente, passava as costas dos dedos pelas bochechas da mulher fria que não deixava que ninguém lhe tocasse. Nos momentos lúcidos o olhar era rijo e húmido, tinha a fúria do mar que lhe batera toda a vida, mas um dia, na véspera da morte, a velha fria agarrou a mão morna da nova, fechou os olhos com força, beijou-lha e disse, com as bochechas molhadas, numa voz fina e baça, "a senhora saiba que, em toda a minha vida, estas são as primeiras lágrimas que choro fora dos olhos, a senhora"

A mais nova vedou o resto das palavras, selou-lhe os lábios, secou-lhe as primeira lágrimas para virem mais, e mais e mais, até as forças lhe acabarem e subir um sorriso.

Depois morreu.

Ela andava cheia de dúvidas, de insegurança na alma e de fragilidade no corpo. É ainda relativamente nova, era das que se esquecia de como era falível grande parte do ano, era raramente apanhada pela doença, mas já teve de faltar duas vezes nos últimos três anos. Ainda lhe bate o mar.

PG-M 2014
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Published on August 26, 2014 09:32

August 19, 2014

a haver um booktrailer, que seja este :)

Livro sem ninguém, por Carlos Vaz Marques

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Published on August 19, 2014 15:26

August 4, 2014

não temos fotografias

 isto não é um poema, são tremoços,cerveja clara ou um copo de vinho branco, areia,mar contido no horizonte que muda cada vezque uma criança saltaou rio em curva que apaga as tuas pálpebras por causa de uma luzvesperal,cola com gelo, meia torrada, corpos vestidos naesplanada, despidosà medida que a duna desce e a praiaavulta, vultosa rasgar linhas de espuma, o céu a transitar
o céu a transitar
azul claro, azul escuro, vermelho, laranja,salmão, cinza claro, cinza escuro
preto
selfies no ocasovultos outra vezbolas vermelhasagora lua
lua é uma palavra que já não cabe nos poemas,mas isto não é um poema,são
selfies de manhãágua turquesabolas de berlimcom creme
que espalhas nas costas e no pescoço e na ponta do narizcarências
faltam beijos de língua em públicofaltam bancosde jardim, faltam
- nas noites quentes de música -
olhos aquosos em vez devidro, faltamfelácios com lábiosem vez de litronas e charrosem todas as bocas
faltam beijos de língua em público,lucidez demorada nas salivasoraçõesem papilas gustativas,areia no corpo e as palmas nas coxasfrancasguerrasde ventres lisos
isto não é um poema, isto é o pico da noitemoderna,um colectivo alienado a deitar-senas camas dos paisacorda tarde e começa tudode novo
antes de ser noite
cerveja clara ou um copo de vinho branco, areia,mar contido no horizonte que muda cada vez que uma criança salta

isto não é um poema, apenas praia
e agosto afixado
nos murais

antes ninguém sabia
o verão só falava
no jantar
de fim de curso

lembras-te das dunas e nós
nos beijos de língua em
publico, nus
na guerra dos ventres lisos,
que pena

não temos fotografias

PG-M 2014
fonte da foto



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Published on August 04, 2014 11:18

August 2, 2014

carta-aberta-terra-ar (Volume III: notas para um suicídio regular)

(continuado de Volume II - Camila sobre o MH17)

Mãe, mato-me lentamente na caverna da Setsuko porque não mais suporto a vida como ela se me afigura. Há, pois, amor e pirilampos à porta do meu túmulo.
Como disse o Emerson, mãe, corta estas palavras e sangrarão, são vasculares e vivas.

Não salto de uma ponte, mato-me lentamente numa caverna - igual à de Platão, parecida com de Saramago e onde, de vez em quando, passa um camponês com livros. Lembras-te de quando vimos juntos "O Túmulo dos Pirilampos" e como aquele deslumbramento da obra-prima absoluta nos toldou fisicamente?
A inefável sequência de analepse da caverna, os momentos de felicidade em solidão da pequena Setsuko quando o irmão a deixava sozinha para tentar arranjar comida e só trazia fome, a caixa de rebuçados e os pirilampos, os outros momentos - os insuportáveis - a que somos expostos pelo realizador recebendo os factos mais terriveis e vendo a própria cara da fome,

tocam a arte suprema.

Lembras-te da Amelita Galli-Cruci a cantar o "Home Sweet Home" enquanto regressávamos à última chama, depois de tudo estar morto,
mãe?
Vai para lá do pensamento, faculta-nos o sofrimento físico, a superfície, a pele, o buraco da fome, a brutalidade do real -  e tudo desenhado à mão para o criador. Primeiro escrito sofregamente, entre lágrimas - porque, já sabíamos, a história está na pele de quem a escreveu -, depois desenhado meticulosamente por outros, na escuridão do ateliê Ghibli. Ele concebeu e comandou e chama-se Isao Takahata e é, de algum modo, irmão do mestre Myazaki.
Isao aprofundou.
O aprofundamento da razão dá altura à alma

(chega-se ao sublime, ao alto, ao pico, descendo de forma consistente às profundezas do pensamento)

Roger Ebert disse que o Túmulo dos Pirilampos é um dos melhores e mais poderosos filmes de guerra de todos os tempos: não tem artifício. Caracteriza regressivamente a condição humana e a guerra, do fim para o princípio, da perda absoluta - toda a perda - à essência: é, por tudo isso, isso tudo. E é como me mostro para ti aqui: tudo.
Quando te disse que não suporto mais a vida como ela se me afigura, quis dizer: como ela se me afigura depois de a ver morrer. Não a Setsuko, mãe, mas o meu amor. Apesar de a Setsuko nos fazer morrer e de o meu amor não estar fisicamente morto, é sem ela, a mulher que amo, que não consigo viver. Como vês, a explicação do suicídio é simples, clássica, finalmente frívola.
Tenho quinze anos e já não há cidade que valha a pena vistar com ela, todos os quartos de hotel serão ainda mais iguais, talvez apenas o efeito do vento nas cortinas mude, nem isso, porque eu só a veria a ela, só a ouviria a ela, só falaria para lhe ver os olhos a escutar-me a voz, como a Mireille do Cortázar à sua Lamia, lembras-te?. E então o mundo, na ronda parda do amor que exclui tudo menos o objecto dele, seria sempre o pretexto - e o objecto o texto. Verona é um pretexto, Paris é um pretexto. Ela o texto que eu desenho com sangue nos dedos. Terá ela reparado nas sombras entre os meus sorrisos? Das ruas nos abraços? Das cidades nos beijos?

O que importa é o que ela disse: que me ama, mas não entende o amor que me tem.

Por isso me tornei insuportável.

Bem vês, mãe, o amor é do mundo, está no mundo, não é apenas do homem nem está apenas no homem.
O verdadeiro amor, o amor absoluto, é sobre-humano e rebenta com os corpos onde reside.

Ou aspiramos a uma finitude, ou a temperamos com pedaços de existência palpável e frívola, ou implodimos.

Deixa-me, pois, mãe, morrer e enfim sossegar.

Unamuno disse que a religião espanhola é o Quixotismo. A minha também, tu sabes, mas falta-me loucura para ser verdadeiramente feliz, incompleto.

O poema de Quixote foi a Dulcineia - capaz que era dessa imperfeição.
Já eu, mãe, sempre fui cego para Dulcineias.
Porque olho através.
Porque não contenho a impureza do absoluto.
Porque Cervantes, que soube descer e negar toda a influência literária, veio a influenciar o próprio século e os que lhe sucederam. Cervantes nunca ouviu falar de Shakespeare, mas Shakespeare conheceu bem - e temeu - o Quixote, que Bloom irmanou com Sir Falstaff. A temível realidade das veias que correm nos braços da ficção seria a pergunta que Bloom faria, se pudesse, ao próprio Skakespeare: "Como é que consegue que as suas personagens sejam mais reais do que as pessoas com quem nos cruzamos diariamente?"

E apesar de o Cortázar o dizer, que nos romances se esquece indo beber para as confeitarias, eu nunca esqueço nada e viciei-me na insuportável ameaça da lucidez. Os jeitos de Rolando ofenderam-me de forma duradoura*.


E Erasmo, mãe, advogou que o sublime é a loucura que emana directamente de nós: não lhe chegarei, pois. Nunca. Nem com Erasmo, nem com Longino, nem comigo, nem com ninguém. Não chegarei lá, ao lugar onde, para Bloom, virtude e esgotamento são sinónimos: a velhice.

E, se não emano, imano.
Morrerei na irrisão de mim próprio, portanto, finalmente pleno.

Ao camponês que me vem visitar e me traz livros, nunca comida, já instruí que te entregasse esta à morte, que espero te encontre bem, mãe.
Se a vieres a ler, quer dizer que, finalmente, me extingui.
Não permitirei que Aurora Bernárdez me seleccione os textos para publicação póstuma. Quero que sejas tu.

Não chores, mãe, que a beleza é negra.
Cada vez mais negra.
E todas as caixas de música, apesar de sublimes,

dão medo.

Teu filho.


PG-M 2014
Nota: Este volume encerra a "carta-aberta-terra-ar". Volume I (Avigdor, sobre Gaza) aqui. Volume II (Camila, sobre o voo MH17), aqui.
fonte da foto

* do conto "Os Gatos", de Cortázar, publicado nos "Papés Inesperados", edição Cavalo de Ferro 
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Published on August 02, 2014 18:30

July 29, 2014

carta-aberta-terra-ar (Volume II - Camila e o MH17)

Exmo Senhor Director do De Telegraaf,Hans,
O meu filho não tem nome.Encontrou-se com a tua, Hans, no mesmo dia e num lugar mais elevado do que este. Dias antes o meu país tinha consumido o nome ao filho de uma conhecida jornalista de televisão, tratando-o com intimidade. Dias depois o meu filho, que tinha quinze anos, desapareceu, e, no centro do meu desespero, o país continuava a consumir o nome do filho e da jornalista, tratando-os com intimidade. Pobre mãe, pensava eu - como é importante a solidão - o tempo que for preciso -, em vez da multidão, no sofrimento.
O meu filho continuava por aparecer. O último sinal dele era uma sms no telemóvel da ex-namorada:
"pelo menos diz à minha mãe que estou bem".
Ela não disse. Limitou-se a reencaminhar a sms para o meu telemóvel.Estão muito assim, os filhos, com o mundo na mão e nos olhos, mas calados e sem corpo.O meu menino era diferente e passava a vida a dizer que era diferente:
"A alma é o corpo, mãe, dizia o Sartre".Pouco depois de a sms chegar, alguns assassinos convictos destruíram o avião que trazia a tua querida filha de volta."Don't be coming. Come." Dizia a D ao André Gorz, quando lhe perguntava se vinha para a cama e ele, escrevendo compulsivamente, lhe respondia: "Já vou".Ela não veio. O meu menino não veio. O relatório da autópsia dele calculava a hora da morte muito próxima da morte provável dela. E acreditas que eu vinha sentindo a sombra do teu avião como minha?
Agora não são vida, não são morte, são a memória do mundo. Passou uma barcaça e levou-os de nós.
Que adianta, Hans, lutar contra a dor? Depois de ti, conheci a história - que parece desmesurada, mas todas as histórias de perda são desmesuradas - de outros meninos que provavelmente avistaram a tua filha, passaram por ela no corredor do avião, brincaram com ela entre refeições. Os pais deles são australianos e chamam-se Anthony Maslin e Rin Norris. Perderam no mesmo voo Mo (12 anos), Evie (10 anos) e Otis (8 anos) — além do pai de Norris, Nick, que acompanhava os pequenos. Numa nota disponibilizada pelo Ministério das Relações Exteriores e Comércio da Austrália, dizem que estão a viver “o inferno do inferno”. “Os nossos bebés não estão aqui connosco — somos obrigados a viver com este acto de horror todos os dias e todos os momentos para o resto de nossas vidas”. Dizem que ninguém merece sentir a dor que enfrentam, “nem mesmo as pessoas que alvejaram a nossa família”.

“Nenhum ódio no mundo é tão forte quanto o amor que temos pelos nossos filhos, por Mo, Evie e Otis. Nenhum ódio no mundo é tão forte quanto o amor que temos pelo avô Nick. Nenhum ódio no mundo é tão forte quanto o amor que temos um pelo outro. Isso é algo que nos dá algum conforto" E aos amigos:
"Queremos continuar a saber sobre a vida de todos vocês, as coisas boas e más. Já não temos mais vida para viver por nós mesmos.”

Vem mais um silêncio, um longo silêncio, algo que primeiro queima e depois comprime todos os órgãos, e depois só tu e Elsemiek, Hans.
Nos dias de desespero, até o corpo do meu menino ser encontrado num buraco remoto por um camponês, saí à rua dormente e lembro-me dos títulos dolorosos do De Telegraaf em nome do povo holandês:
"MOORDENARS".
Depois contaram a tua história, Hans, e, deus me perdoe, a tua inclemência e a promessa de não haver perdão para os assassinos da tua Elsemiek deram-me a força que me faltava, enquanto o meu país nos continuava a cercar com conselhos luminosos a todos os pais que perdem os filhos e com a intimidade àquela mãe jornalista, procurando história sensacionais onde havia só a vida e a morte que faz parte da vida.
É por isso que o meu filho não tem - nem terá - nome público, e é por isso que escrevo a um jornal holandês. Estás longe, Hans, e és igual a mim. Não sei holandês, mas não é preciso saber holandês para deixar um abraço e dizer um adeus.
O meu filho era um aluno brilhante, amado por pai e mãe, não era superprotegido nem mimado em excesso, mas nunca saberemos o afecto devido, a medida do amor, e a nossa geração, a quem garantiram que nenhum afecto podia ser demasiado, andou perdida a educar filhos debaixo do corpo e sem distância. Os filhos que agora abdicam do corpo e nos dão distância, suprema ironia.
O meu filho disse-me várias vezes que se queria suicidar.Não, eu não perguntava o que tinha feito mal, não lhe virava as costas, nem o enchia de abraços. Tinha tudo para ele, estendia a mão, que ele apertava sempre que queria. Dizia-me que essa vontade me transcenderia sempre e não era mal que eu ou o pai tivéssemos feito. Andávamos, todos, sempre afogados em livros e a procurar a lucidez, mas não há medida para estes momentos. Demasiada lucidez ou clareza podem soar a falso, afinal há um lado primário, animal, de que a nossa civilização se afasta e deixa de saber interpretar. Como o uso do silêncio, que comparece nos grandes amores e nas grandes amizades. Como usa uma mãe o silêncio com o seu filho?
Hoje eu daria tudo pelo último abraço - este que te ofereço, Hans - do meu menino. Daria quase tanto pelo último adeus.É precisamente o que não damos nem queremos sem uma boa justificação.O abraço e o adeus.Que são quase tão importantes como a água e o alimento.
Talvez o abraço a comida e o adeus a bebida.
Diz o Bloom que o génio comparece quando sentimos a consciência alargada, a percepção intensificada, e era sempre isso que eu sentia quando o meu menino me falava, não quando calava. E foi o que eu senti quando as notas de suicídio dele me chegaram às mãos. Disseram-me que estavam no bolso da camisa que tinha vestida quando o encontraram, e quero mostrar-tas, Hans. O meu menino ainda me vai escutar, o que talvez seja possível nesta nova forma de existência, a memória, porque para que aguém escute verdadeiramente o orador ou o escrevente não pode ter consciência desse acto.
E porque te quero mostrar essas notas, Hans, termino recordando o meu menino com as palavras da obsessão das últimas horas, Cortázar, porque  o meu menino tinha

"uma voz na qual havia também uma forma de olhar"

E era nesse olhar vital que eu via, ironicamente, explicação para a abdicação da vida. A explicação mais simples de todas, a explicação de tudo:
o amor, essa coisa, essa qualidade, esse acto sobre-humano.

E, pela tua Eselmiek linda, deixo-te o abraço para comeres e o adeus para beberes, Hans.

As notas do meu menino começam assim:

"Mãe, mato-me lentamente na caverna da Setsuko porque não mais suporto a vida como ela se me afigura. Há, pois, amor e pirilampos à porta do meu túmulo.

Como disse o Emerson, mãe, corta estas palavras e sangrarão, são vasculares e vivas."

(continua: Volume III - As notas de suicídio do filho de Camila)
PG-M 2014fonte da foto
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Published on July 29, 2014 15:13