Pedro Guilherme Moreira's Blog, page 33
March 3, 2014
A última noite de óscares
Está bem, está bem, Academia. Não é preciso esfregar-nos na cara com requintes de malvadez. Eu, pelo menos, já percebi. A noite de 2013 já tinha sido, televisivamente, a pior de sempre - sendo que o meu "sempre" começa em 1985, quando as comecei a ver todas em directo, para só parar em 2015, quando "celebraria" 30 anos, e é razoável presumir que as anteriores a 1985 não terão batido em sofisticação e glamour as posteriores -, mas a de 2014 bateu todas os recordes de gosto duvidoso, quer no cenário, quer no alinhamento de bocejo, quer nas escolhas, com a honrosa excepção da inevitável consagração de "Gravity", aliás merecida, à face da fraca concorrência. Um dos pontos bons, óptimos, da noite foi Ejiofor ter perdido (como podem instir nesta consagração de actores medianos - já não basta a menina Jennifer Lawrence?) e "12 anos escravo" ter ridicularizado a própria Academia com o óscar de melhor filme, quando a Academia lhe negara tudo ou quase tudo (Lupita é um caso à parte, não se venha o filme gabar disso:) durante a noite.E depois Frozen, e o lobby Disney, ao arrebatarem o óscar da melhor música com a pior música (não é possível!) e a melhor longa metragem de animação ("The Wind Rises", obra-prima absoluta e supostamente a última de Myazaki, não podia ter perdido para..."Frozen", porque vê assim boicotadas todas as hipóteses de estrear nas salas de cinema portuguesas). De resto, Ellen, nem superior nem inferior ao que faz no seu programa, colocou as coisas in situ quando nos mostrou que os óscares já não são bem sobre televisão, mas sobre tudo o resto, ao bater o record de tuitadas com uma boa ideia: a selfie da década. E é isto. Os óscares estão a apoucar-se a si próprios, a desprezar o directo peçonhento que hoje são, e o conteúdo que veiculam na célebre madrugada é tão escasso que o compacto do dia seguinte dura cada vez menos. Foi ainda doloroso ver Kim Novak congelada em todos os cantos menos na boquita. Bom, bom, foi ter sido um dos convidados "especiais" (boa, Ana Margarida) do Final Cut, o abnegado site de cinema da Visão e do JL, onde o Fernando Alvim passou a noite a dormir e a rematar todas as cenas com "estou a chorar" e o próprio intervalo da TVI ganhou autonomia e adeptos, nomeadamente repetindo até à exaustão imagens da, para mim, vencedora da noite, a Margot Robbie, que nem candidata era (mas já ganhou, e todos ganhamos com ela). A Cate Blanchett pode ser fria, cirúrgica, mas é finalmente o óscar de melhor actriz. O Matthew McConaughey tem a melhor música torácica do ano, mas noutro filme. Sempre foi um actor competente: está quase bem entregue. O Bruce Dern é que era. A própria passadeira vermelha tem estado aborrecida e formatada para as promoções e para os comentários sobre vestidos em todas as televisões do mundo. E até me podem dizer que isto era previsível, e era, e que óscares não são cinema, e não são, mas, pelo menos durante estes vinte e nove anos de directos, a Academia sempre soube disfarçar. A melhor destas vinte e nove noites nem aconteceu há tanto tempo assim, foi uma há quatro ou cinco anos, estilo retro, belíssima. Com as duas últimas, a terrível decisão ficou tomada: a partir de 2015 deixarei de ver em directo. Deito-me cedo, levanto-me pelas quatro e uso o milagroso timewarp para poder saltar toda a mediocridade. Os tempos mudaram. Esta foi a minha última noite má de óscares. Agora, como a própria Academia sugere, farei os meus próprios conteúdos.
PG-M 2014fonte da foto
Published on March 03, 2014 19:08
Viagem por dois livros e por duas ruas (por Rosário Ferreira)
Professora Rosário Ferreira sobre "A manhã do mundo" e o "Livro sem ninguém", apresentando a sessão de 27-02-2014 à Escola Francisco de Holanda, em Gumarães:
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Nunca estive em NY mas já fui muitas vezes a NY, … não isto tem som de repetido e, para isso basta o “Sino da minha aldeia”.Recomeçando: continuo sem nunca ter ido a NY a não ser nas viagens que lá fiz com os atores das minhas séries favoritas (pronto! Confesso que também já la fui com a Tyra Banks e o America’s Next Top Model – é verdade. AH! E com o masterchef Austrália na terceira edição!)) com a música de Sinatra e com o livro do Pedro Guilherme-Moreira (com hífen!). E esta semana regressei lá pela mão de PGM: e encontrei outro livro, outra história, outra magia. Não sei porquê, mas quando reli, logo nas páginas iniciais a descrição do The Falling Man, pareceu-me vislumbrar um vulto numa cabine telefónica que, apressadamente mudava de roupa para o apanhar na sua queda vertiginosa. Depois, quando Thea tentava escalar os corpos amontoados nas janelas, pensei que um gorila gigante apareceria no topo das torres gémeas para salvar a sua Ann Darrow…. E estes “loucos suicidas”, como tão facilmente Ayda lhes chamou, transformavam-se em seres frágeis a serem resgatados por heróis incompreendidos. (Saltei páginas, porque já conheço a história, sei que os bons não aparecem, não há finais felizes, e tenho medo que surja voando, qual “Mostrengo que está no fim do mar”, nesta imaginação traiçoeira, uma Alice em forma de Lex Luther ou que a Teresa se metamorfoseie em Jack Black).Não resisti a reler o número dois: a ironia – ou não- do destino – ou da sorte – de um homem que não ousa contrariar a mulher, que se levanta quando o instinto – ou a preguiça, ou o sono – lhe segredavam que ficasse na cama – mas que ousa contrariar o destino - ou a preguiça, ou o sono – porque se demorou nuns olhos verdes. (Acho que foi aqui que me lembrei do Master Chef). Foi então que reencontrei a minha personagem favorita – Millard, que, tal como eu prefere as alamedas às avenidas - e com ela regressei à casa de chá com papel de parede bordado com beija flores. E Alice, a tímida – ou não – secretária que, não fosse o humor negro de Deus, não deveria estar ali, na torre norte do WTC, mas na sua pequena cidade natal. Redescobri Solomon, não o rei mas o advogado, a alcançar a janela do seu escritório no 106º andar, que teimou em não fazer um check-up, em continuar a conduzir o seu Cadillac por Brooklin Bridge e completou o seu ciclo iniciático nesse dia em que fazia sete anos que se reformara. “Ao contrário de muitas das histórias do 11 de setembro (…) a [história] de Solomon era límpida e sem espaços para lamentos, descontando o sinal vermelho.”Voltei a página, e lá estava Thea outra vez, aquela bela rapariga de “olhos verdes” (qual Joaninha de Garrett, também ela destinada à desgraça) que vai “partilhar com Millard os piores momentos desta fatídica manhã”, ambos se sentem sufocar – pelo fumo e pela vida – e ambos resistem a afundarem-se no desespero. Thea apercebe-se de que mesmo que as suas “conversas tenham sido mais pensamentos do que diálogos (…), apenas o símbolo da resistência, da vontade e até da coragem”, houve muito mais do que solilóquios entre esta repórter gastronómica e este conciérge obcecado por um beija-flor. Depois, bem, depois, já o disse e redigo-o pois acho que não há outra maneira de o dizer, depois virei a página e já era “o dia que Ayda pensava ser 12 de setembro de 2001”. E das páginas do livro soltaram-se notas, compassos, pautas inteiras que teimavam em calar os gritos de dor e os espasmos de raiva: acordei com Lopes Graça; ouvi o coro dos escravos de Verdi, o Pedro e o Lobo de Prokoviev… e depois um interlúdio de Taikovsky quando Romeu e Julieta (entenda-se Darius e Teresa) celebram o seu amor, afinal tão tragicamente possível. Entretanto, soavam-me ao ouvido as palavras de Eugénio de Andrade: Já gastámos as palavras pela rua, meu amor, e o que nos ficou não chega para afastar o frio de quatro paredes. Gastámos tudo menos o silêncio. A mão segura de Pedro ensinou-me que qualquer suicida vê “a morte desmaiada. O verdadeiro suicida conquista um destino que não lhe está naturalmente reservado”, e isso fez-me ver o suicídio como algo ainda mais cruel do que eu já o entendia.E a morte estava ali: “no azul do céu, bela.” Sem “foices ou vestidos negros”, apenas “um horizonte que encurta”.E foi aqui que precisei de voltar atrás no livro, regressar ao apartamento de Daruis e sentir, de novo, aquela força revitalizada por um sol que se espraia no apartamento da River Terrace e voltar a sentir a mão de Pedro Guilherme-Moreira a dar voz à força de Ourique, de Aljubarrota, do 1º de Dezembro, do 5 de Outubro ou do 25 de Abril, que resistiu ao opressor: na imagem de Darius que resiste ao cheque de 6 dígitos para vencer a batalha do filho; nos olhos de Teresa que resiste ao adultério em prol da amizade; na força de Ayda que resiste ao destino para salvar destinos.
E, urgentemente, precisei de conhecer um outro espaço, tão diferente e tão igual a Nova Iorque.Já tinha ouvido falar do Sítio do Pica-Pau Amarelo, da Rua Sésamo e até mesmo do Parque da Mónica, mas juro que nunca ouvira tal coisa como a rua do arco celeste. Bem, parece que:Na rua do arco-celeste há sete casas, cada uma de sua cor; e também um café, uma horta, um jardim, uma florista, uma sucata, um infantário e uma escola. Mas, embora lá vivam pessoas – que frequentam o café, trabalham na horta, lêem no jardim, compram flores para oferecer a quem amam, se desembaraçam dos seus podres ou jogam à bola no recreio –, (…) durante este ano extraordinário, acontece de tudo na rua: há quem se apaixone e quem se separe, quem nasça, quem morra, quem mate e até quem, depois do trauma, consiga uma vida nova. Mas, como em todas as ruas, havemos de encontrar nesta preconceitos, dúvidas, alegrias, segredos e desgostos. Antes mesmo de ler a obra, li esta sinopse e, quase de imediato – não sei se por andar às voltas com a Mensagemou se é mesmo a minha paranoia pela simbologia – o número sete começou a elevar-se das entrelinhas: 7 casas, sete espaços comuns, sete atividades, sete acontecimentos (porque considerei o trauma como um acontecimento). E depois, apareceram cinco nomes que retratam esta rua do arco-íris.AH! Espero que já tenha aprendido a fazer contas de dividir!É que, para quem não esteve cá no ano passado, este senhor aqui sentado ao meu lado, teve um problema a resolver com as frações. Este senhor, que advoga, escreve e estaciona carros nos poveiros, também foi em tempos, uma criança dada mais às letras do que aos números. Vai daí, quando finalmente a professora D. Laura conseguiu ensiná-lo a dividir, o Pedrinho presenteou-a com uma bela redação! Foi o princípio de uma perfeita relação, nem sempre calma como convém em qualquer relação, com os papéis: hoje conta já com um palmarés digno de atenção, a saber: Aos 11, entre rapazes de 16 e 17, empatou o primeiro lugar dos jogos florais da escola com um rapaz de 12, hoje um conhecido político. Aos 13, perdeu para o mesmo menino, mas levou o 2.º e o 3.º prémios. Aos 16, ganhou (finalmente sozinho), porque o menino político entrou na Universidade. No ano seguinte entrou ele, na de Coimbra, e andou com Torga no trólei 3, mas nunca se falaram. Profissionalmente, foi dos primeiros advogados a ganhar o Prémio Lopes Cardoso, com um artigo publicado, primeiro, na prestigiada Revista da Ordem dos Advogados e, depois, em livro. Decidiu publicar apenas aos 40, porque queria saber, e escrever, mais. Em 2012 foi agraciado com o prémio de poesia do Museu Nacional da Imprensa. A Manhã do Mundo aparece a meio do seu «dia», sendo o seu primeiro romance.(isto fui copiar à net. Vantagens das novas tecnologias!
Pedro Guilherme Moreira podia não saber fazer contas de dividir, mas soube multiplicar o seu dom de contar a História com sabor a história, de somar os factos da História à brisa da ficção, de subtrair os olhares uniformes deste facto, fracionando-os em vários avos de diferentes olhares.
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Relacionado: A viagem d'a manhã do mundo segundo a professora Rosário Ferreira
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Nunca estive em NY mas já fui muitas vezes a NY, … não isto tem som de repetido e, para isso basta o “Sino da minha aldeia”.Recomeçando: continuo sem nunca ter ido a NY a não ser nas viagens que lá fiz com os atores das minhas séries favoritas (pronto! Confesso que também já la fui com a Tyra Banks e o America’s Next Top Model – é verdade. AH! E com o masterchef Austrália na terceira edição!)) com a música de Sinatra e com o livro do Pedro Guilherme-Moreira (com hífen!). E esta semana regressei lá pela mão de PGM: e encontrei outro livro, outra história, outra magia. Não sei porquê, mas quando reli, logo nas páginas iniciais a descrição do The Falling Man, pareceu-me vislumbrar um vulto numa cabine telefónica que, apressadamente mudava de roupa para o apanhar na sua queda vertiginosa. Depois, quando Thea tentava escalar os corpos amontoados nas janelas, pensei que um gorila gigante apareceria no topo das torres gémeas para salvar a sua Ann Darrow…. E estes “loucos suicidas”, como tão facilmente Ayda lhes chamou, transformavam-se em seres frágeis a serem resgatados por heróis incompreendidos. (Saltei páginas, porque já conheço a história, sei que os bons não aparecem, não há finais felizes, e tenho medo que surja voando, qual “Mostrengo que está no fim do mar”, nesta imaginação traiçoeira, uma Alice em forma de Lex Luther ou que a Teresa se metamorfoseie em Jack Black).Não resisti a reler o número dois: a ironia – ou não- do destino – ou da sorte – de um homem que não ousa contrariar a mulher, que se levanta quando o instinto – ou a preguiça, ou o sono – lhe segredavam que ficasse na cama – mas que ousa contrariar o destino - ou a preguiça, ou o sono – porque se demorou nuns olhos verdes. (Acho que foi aqui que me lembrei do Master Chef). Foi então que reencontrei a minha personagem favorita – Millard, que, tal como eu prefere as alamedas às avenidas - e com ela regressei à casa de chá com papel de parede bordado com beija flores. E Alice, a tímida – ou não – secretária que, não fosse o humor negro de Deus, não deveria estar ali, na torre norte do WTC, mas na sua pequena cidade natal. Redescobri Solomon, não o rei mas o advogado, a alcançar a janela do seu escritório no 106º andar, que teimou em não fazer um check-up, em continuar a conduzir o seu Cadillac por Brooklin Bridge e completou o seu ciclo iniciático nesse dia em que fazia sete anos que se reformara. “Ao contrário de muitas das histórias do 11 de setembro (…) a [história] de Solomon era límpida e sem espaços para lamentos, descontando o sinal vermelho.”Voltei a página, e lá estava Thea outra vez, aquela bela rapariga de “olhos verdes” (qual Joaninha de Garrett, também ela destinada à desgraça) que vai “partilhar com Millard os piores momentos desta fatídica manhã”, ambos se sentem sufocar – pelo fumo e pela vida – e ambos resistem a afundarem-se no desespero. Thea apercebe-se de que mesmo que as suas “conversas tenham sido mais pensamentos do que diálogos (…), apenas o símbolo da resistência, da vontade e até da coragem”, houve muito mais do que solilóquios entre esta repórter gastronómica e este conciérge obcecado por um beija-flor. Depois, bem, depois, já o disse e redigo-o pois acho que não há outra maneira de o dizer, depois virei a página e já era “o dia que Ayda pensava ser 12 de setembro de 2001”. E das páginas do livro soltaram-se notas, compassos, pautas inteiras que teimavam em calar os gritos de dor e os espasmos de raiva: acordei com Lopes Graça; ouvi o coro dos escravos de Verdi, o Pedro e o Lobo de Prokoviev… e depois um interlúdio de Taikovsky quando Romeu e Julieta (entenda-se Darius e Teresa) celebram o seu amor, afinal tão tragicamente possível. Entretanto, soavam-me ao ouvido as palavras de Eugénio de Andrade: Já gastámos as palavras pela rua, meu amor, e o que nos ficou não chega para afastar o frio de quatro paredes. Gastámos tudo menos o silêncio. A mão segura de Pedro ensinou-me que qualquer suicida vê “a morte desmaiada. O verdadeiro suicida conquista um destino que não lhe está naturalmente reservado”, e isso fez-me ver o suicídio como algo ainda mais cruel do que eu já o entendia.E a morte estava ali: “no azul do céu, bela.” Sem “foices ou vestidos negros”, apenas “um horizonte que encurta”.E foi aqui que precisei de voltar atrás no livro, regressar ao apartamento de Daruis e sentir, de novo, aquela força revitalizada por um sol que se espraia no apartamento da River Terrace e voltar a sentir a mão de Pedro Guilherme-Moreira a dar voz à força de Ourique, de Aljubarrota, do 1º de Dezembro, do 5 de Outubro ou do 25 de Abril, que resistiu ao opressor: na imagem de Darius que resiste ao cheque de 6 dígitos para vencer a batalha do filho; nos olhos de Teresa que resiste ao adultério em prol da amizade; na força de Ayda que resiste ao destino para salvar destinos.
E, urgentemente, precisei de conhecer um outro espaço, tão diferente e tão igual a Nova Iorque.Já tinha ouvido falar do Sítio do Pica-Pau Amarelo, da Rua Sésamo e até mesmo do Parque da Mónica, mas juro que nunca ouvira tal coisa como a rua do arco celeste. Bem, parece que:Na rua do arco-celeste há sete casas, cada uma de sua cor; e também um café, uma horta, um jardim, uma florista, uma sucata, um infantário e uma escola. Mas, embora lá vivam pessoas – que frequentam o café, trabalham na horta, lêem no jardim, compram flores para oferecer a quem amam, se desembaraçam dos seus podres ou jogam à bola no recreio –, (…) durante este ano extraordinário, acontece de tudo na rua: há quem se apaixone e quem se separe, quem nasça, quem morra, quem mate e até quem, depois do trauma, consiga uma vida nova. Mas, como em todas as ruas, havemos de encontrar nesta preconceitos, dúvidas, alegrias, segredos e desgostos. Antes mesmo de ler a obra, li esta sinopse e, quase de imediato – não sei se por andar às voltas com a Mensagemou se é mesmo a minha paranoia pela simbologia – o número sete começou a elevar-se das entrelinhas: 7 casas, sete espaços comuns, sete atividades, sete acontecimentos (porque considerei o trauma como um acontecimento). E depois, apareceram cinco nomes que retratam esta rua do arco-íris.AH! Espero que já tenha aprendido a fazer contas de dividir!É que, para quem não esteve cá no ano passado, este senhor aqui sentado ao meu lado, teve um problema a resolver com as frações. Este senhor, que advoga, escreve e estaciona carros nos poveiros, também foi em tempos, uma criança dada mais às letras do que aos números. Vai daí, quando finalmente a professora D. Laura conseguiu ensiná-lo a dividir, o Pedrinho presenteou-a com uma bela redação! Foi o princípio de uma perfeita relação, nem sempre calma como convém em qualquer relação, com os papéis: hoje conta já com um palmarés digno de atenção, a saber: Aos 11, entre rapazes de 16 e 17, empatou o primeiro lugar dos jogos florais da escola com um rapaz de 12, hoje um conhecido político. Aos 13, perdeu para o mesmo menino, mas levou o 2.º e o 3.º prémios. Aos 16, ganhou (finalmente sozinho), porque o menino político entrou na Universidade. No ano seguinte entrou ele, na de Coimbra, e andou com Torga no trólei 3, mas nunca se falaram. Profissionalmente, foi dos primeiros advogados a ganhar o Prémio Lopes Cardoso, com um artigo publicado, primeiro, na prestigiada Revista da Ordem dos Advogados e, depois, em livro. Decidiu publicar apenas aos 40, porque queria saber, e escrever, mais. Em 2012 foi agraciado com o prémio de poesia do Museu Nacional da Imprensa. A Manhã do Mundo aparece a meio do seu «dia», sendo o seu primeiro romance.(isto fui copiar à net. Vantagens das novas tecnologias!
Pedro Guilherme Moreira podia não saber fazer contas de dividir, mas soube multiplicar o seu dom de contar a História com sabor a história, de somar os factos da História à brisa da ficção, de subtrair os olhares uniformes deste facto, fracionando-os em vários avos de diferentes olhares.
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Relacionado: A viagem d'a manhã do mundo segundo a professora Rosário Ferreira
Published on March 03, 2014 12:04
February 25, 2014
Sai hoje
Published on February 25, 2014 11:43
February 24, 2014
Uma "Manhã..." macedónia
Saiu no final de Dezembro de 2013 no país do grande Alexandre, o país sem mar onde foi quase impossível traduzir o "Paredão" (nome do café onde foi escrito "A manhã do mundo"). A tradutora foi a académica e poetisa Nataša Sardžovsk. Aqui está:
Published on February 24, 2014 11:57
January 31, 2014
O Salinger nunca me deu tesão
Eles vão dizer, mal descubram quem escreveu um título absurdo como este, que eu sou uma escritora americana menor. Reparem: não uma menor escritora como a própria Joyce ao tempo que o JD a viu ser parida pela imprensa e não conteve as erecções - tema do dia - sucessivas que o artigo lhe provocou, a Joyce estava bem na fotografia e varreu a América, ainda hoje é uma mulher atraente mas quem varre a América - o mundo, aliás - é o JD e está morto. Ou não. Eu serei apenas uma escritora menor, aparecerei numa coluna do New York Times como titular de um ódio de estimação pelo gigante. Que sou conterrânea de morte, que terei vendido um milhar de exemplares do segundo livro na mesma editora do mito, que fora já caridade, certamente proporcionada por alguns amigos da cena literária décadas atrás, por eu ter um palimnho de cara, que caí para umas centenas no terceiro, e do quarto já ninguém falou. Que sou uma pessoa não existente, que mereço o tratamento que me deram os meus pares depois desse livro falhado. E a coluna concluirá assim: "Já nem as saias mínimas que passou a levar aos lançamentos de livros dos seus pares nos anos sessenta ou o consentimento das mãos dos escritores consagrados na sua exemplar cintura de pin-up adiantou. O tesão de Salinger passa bem sem esta senhora."Um título para atrair todos os pérfidos, que aparecem sempre unidos, plenos de energia, e qualquer mulher que se atreva é enterrada nisto: uma puta.
Agora também estou com a mão estendida, a secar o verniz das minhas unhas afiadas, no terraço da penthouse de um hotel de praia em San Diego, eu também tenho um roupão branco aberto para o sol e mais nada além do azul do céu. E eu também tenho um marido deitado sobre uma toalha na primeira linha de água, lá longe, na praia dos albatrozes, que a esta hora está cheia e vibrante. E eu também tenho do outro lado do ecrã do computador portátil que me ferve nas coxas um escritor de dezanove anos que, provavelmente, me dá mais tesão com uma frase do que nove histórias do Salinger que podem ser tudo o que qualquer homem livre quiser, e normalmente quer. O homem livre quer odiar o sucesso e questionar o mito. Não há uma página escrita neste planeta que não tenha do recensor medíocre o tratamento dos humores, dos arrepios, das constipações. Porque do Proust se dispensam madalenas de dez páginas. Porque o Joyce não conhecia a beleza linear. Porque o Sherwood Anderson é escandalosamente etiológico, como se o país estivesse órfão de um novo modelo - e os simbolistas, esses pecadores? Porque o Saramago veio a ser uma espécie de adamastor que despegou da rocha e foi cantar grandiloquência, deixando o narrador omnisciente a falar sem parar, e que isso se pegou aos discípulos, porque o Lobo Antunes faz um mapa-múndi de cada pastelaria e não resolve o pai. Porque os pares estão todos doentes de cosmopolitismo. Eu posso ser só isto, o meu putativo amante escreve que tenho bons genes, que sou a sessentona mais sensual de New Hampshire a passar férias na Califórnia, eu limito-me a comer uma banana, a comer não, a chupar, deixo que se desfaça na boca, gosto do sabor, não aspiro à evidência do fálico, à violência da linguagem, ligo a webcam durante us segundos, observo de fora as minhas próprias fraquezas. Estou há tanto tempo online, sou tão primitiva, tão pioneira, que sinto que a minha sexualidade já se liga por ventosas à rede. Basta uma frase que possa transportar segundos sentidos e eu incedeio. Mas o meu putativo amante-escritor de dezanove anos nunca sobre edifícios, leva-me sempre ao extremo no primeiro sentido de quase tudo. Nele basta o alinhamento das frases, as ideias que mais ninguém tem, os nossos sintagmas em fusão, como se o corpo fosse irrelevante, como se o que somos se solvesse ao mesmo tempo e no mesmo copo de água e já não fosse preciso fazer amor, porque está feito. Não digo que o Jerome David não me dê tesão. De facto, o título que dei a esta carta não é a minha verdade, mas já lá vamos. Cinjo o roupão porque passam aviões publicitários, depois penso melhor e volto a desatá-lo, deixo a púbis exposta, sorrio, tenho uma tez fixada na tentação, limpo os lábios dos restos de banana, bebo da palha o resto do batido e tiro do ecrã tudo o que sobrava, deixo a mão escorregar.
Só porque estamos a discutir o que é ou o que pode ser sublime na escrita de diálogos, ele diz-me que os grandes (o que são os grandes?) nunca deixaram de usar o "disse". "disse o homem", "disse a mãe", "disse o pescador", ou,
como o JD Salinger naquele conto maldito,
"disse a rapariga"disse a rapariga, disse a rapariga, disse a rapariga, disse a rapariga
- Isso é bonito, Howard? (o meu miúdo chama-se Howard)- Provavelmente não, mas o Bloom dir-te-ia que os melhores não inventam.
E, aí sim, fico para morrer de prazer. Os dedos dos pés em descontrolo, os joelhos a avançarem um para o outro, primeiro, depois a afastarem-se outra vez, a linha franca das pernas, deixo a mão chegar, as pernas fecham, atiro a cabeça para trás.
- E este desejo que surge das ideias, como é que se resolve? - perguntei eu.- Resolve-se como tudo. A sós. - disse o Howard, acrescentando o sinal gráfico de um sorriso.- E se um dia, num café, no fim de uma conversa em que as palavras andem livres, cheias, intensas, os nossos olhares sem sair de dentro um do outro, eu te pedisse um beijo seco, simples, um beijo que seria uma espécie de ponto final porque qualquer palavra estaria a mais, tu davas-mo? - perguntei eu.
O meu marido apareceu de mansinho por trás, fechou-me o ecrã, o meu coração saltou do eixo, teria ele lido alguma coisa?, não, não leu de certeza, está a beijar-me, a beijar-me profundamente, a puxar-me para o chão, a deitar-me sobre o peito, a dispensar o meu roupão, as unhas já estão secas, cravo-as nos ombros dele, começamos aquele cê basculante da penetração, ele senta-se e encosta-se ao muro do terraço, eu sento-me sobre ele, como os cavalos livres em supinação. Começo a sentir-me culpada por escrever um conto que não filtra o sexo e pode ser lido pelos miúdos das escolas que eu visito quase todos os meses, eu, a escritora menor de New Hampshire, mas sei o que eles vão escrever à margem, no final deste pensamento de ângulo recto. WTF? Várias vezes WTF. Não estás no movimento basculante da penetração, o que te deu para pensar nisto? Imediatamente antes do orgasmo, o meu marido afasta o livro do Salinger e aperta-me a mão que estava sobre ele - o livro.
O conto do peixe-banana do Jerome David Salinger sempre me atormentou. Não aceitava aquela mãe pérfida a afastar o marido da filha. Esse marido, o Seymour, eu teria amado. Bom, não sei bem se amado. Ele precisava de salvamento, não a pequena Sybil. E como eu tinha ciúmes da pequena Sybil, como eu cheguei a odiá-la como ela nunca odiou a concorrente do colo do "see more", a Sharon Lipschutz, de três anos e meio, que tinha mais liberdade no hotel à noite e podia saltar para cima do "see more" que, não só via mais, como lhe achava o nome erótico. Sharon Lipschutz. Sharon Lipschutz. Como eu quis o fato-de-banho amarelo da Sybil, como desprezei que não precisasse da parte de cima por tantos anos. A tormenta era ainda maior quando lia as críticas e recensões, perfeito, genial, JD escreve como se a realidade se desenvolvesse sempre em dois ou mais planos. E não desenvole?O meu marido estava a fumar nu, eu ainda suspirava na cadeira articulada do lado, quando ele fez aquela pergunta retórica: - Então agora pedes beijos a miúdos de dezanove anos? Eu devo ter fica lívida, branca, e não me saíam palavras, provavelmente não havia.- Não te preocupes - disse ele - A sério, não te preocupes. - Sorriu e pegou no livro do Salinger - Percebo essa curiosidade toda. E ficava muito mais preocupado se andasses desvairada com este gajo, como a outra que se perdeu aos dezoito anos e resolveu contar a história quando já estava mais morta do que ele.
A lucidez do meu marido não era uma atitude que tivesse cabimento num conto sobre uma família americana sem estrutura, um marido nunca poderia achar natural a intimidade com uma rapaz inteligente de dezanove anos. Pensei perguntar-lhe, quase orgulhosa, se ele tinha lido a resposta do miúdo, de lhe contar as virtudes do rapaz, mas era tudo, evidentemente, disparatado. Profundamente disparatado.Por isso menti e disse aquilo, e disse-o da forma mais americana que consegui:
- O Salinger nunca me deu tesão.
Ele sorriu, tirou mais uma passa e serviu-se do bourbon.
PG-M 2014fonte da foto
Published on January 31, 2014 20:23
January 30, 2014
Da luz da Avelar Brotero às asas do Pessoa
1884.1884 é da minha vida porque é o ano de nascimento deste meu bisavô.1884 é da minha vida porque é a data de fundação e o nome do livro com que dezenas de alunos me comoveram na Xico d'Holanda.
1884 é o ano de fundação do Estabelecimento Prisional de Coimbra, onde hoje estive eu e agora está outro Pessoa, que já teria chegado a este parágrafo montado em números cabalísticos.1884 é da minha vida porque também é a data da fundação da Escola Secundária de Avelar Brotero, em Coimbra - Félix de Avelar Brotero, o grande botânico português cuja primeira publicação, em 1793, é o curioso "Princípios de Agricultura Filosófica" -, escola onde, no dia 30 de Janeiro do ano da graça de 2014, recebi a luz coada pelas vidraças da bilblioteca e pelo sorriso e empenho das professoras Carla e Isabel e pelo entusiasmo controlado, mas eficiente, de duas corajosas turmas.
À chegada tinha a Ucrânia, a Rússia e o Uzbeqistão corporizados por três belas meninas chamadas, respectivamente, Oleksandra, Sasha e Ksenia, que, tendo Portugal como casa, estão a tentar reforçar o seu português. Eu é que aprendi. Aprendi que o agá, em uzbeque, se lê como em hebraico, com o céu da boca, e mostrei a capa d'"A manhã do mundo" em Macedónio, pelo menos para que todas pudessem reconhecer o seu alfabeto, o cirílico, porque o meu nome, Педро Гиљерме-Мореира, escreve-se da mesma forma em todos os lados do cirílico.Nesta altura já a responsabilidade da luz deixara de ser apenas das vidraças para se virar para as pessoas. Foram as primeiras três dedicatórias.
Havia uma exposição muito bonita sobre "A manhã do mundo" - excertos em fotografias, alguns pedaços de prosa de que me esquecera. Um sobre a beleza da morte, a morte azul. Vieram as turmas e a Rafalela começou por aí. Eu não me poupei aos detalhes e aos passos que me levaram lá. Voltei a entrar nas torres imortais. O Bruno, coitado, tinha a cabeça tapada pelo projector, com o Ângelo voltámos à morte azul, a Joana leu a primeira parte da senda que leva Teresa a quase descobrir o corpo em queda, a Ana falou do momento da morte dos saltadores, o André trouxe-me de volta o meu amigo o Solomon.
Nessa altura perguntei o nome à Margarida. Margarida, ela disse. A ideia era explicar aqui que há sempre um centro, uma cara a receber a maior parte das nossas resposta no público, e ela teve hoje esse papel, o centro do público para o qual eu falava. Minutos depois percebi que talvez houvesse um fundamento: a Meggy fora o 1º prémo do concurso de leitura. O André, que me trouxera o Solomon e tinha um ar-de-deixa-me-estar-quieto-no-meu-canto, foi o 2º, a Telma o 3º. Ainda vieram a inês, a Rita - com a segunda parte da "Criação e Adão" - e um André-espantado com a expressão mais deliciosa da plateia. A inês era vibrante e fez-nos sorrir várias vezes, porque, sentindo a sessão a esvair-se, saltava na cadeira para que percebêssemos que não se ia dali sem dizer ao que viera. E não foi, e disse, e fez aliás parte da turma que ficou para lá da ordem do dia, e eu deixei a mesa e fui-me sentar no meio deles.
A Micaela - o caso especial. O tipo de caso que eu não perderia por nada, que eu temo tantas vezes poder ficar nas cordas, não dar o passo em frente por timidez, por pudor, por sentir que não pertence ou não tem lugar. O livro marcado de uma forma meticulosa, o livro lido, passagens que a marcaram, despedidas. A primeira que a Micaela leu - a da mãe que se despede do filho pequenino - pareceu-me comovê-la particularmente, mas tudo na Micaela, o mapa gestual, o sorriso humilde, a candura, essa vergonha bonita de se expôr, gritava leitora exemplar. Escritora exemplar. Por baixo d'"A manhã do mundo" tinha (posso dizer, Micaela?) "O Boneco de Neve", de Jo Nesbo, que algumas vezes nos serviu de refúgio durante a conversa.
E no ar aquele perturbante sentido do "Dream on girl" para o drama de Alice no livro.
Vem o almoço nas mesas corridas da escola, bacalhau à gomes de sá, o café e é hora de, tantos anos depois, eu passar para dentro dos mais altos muros da prisão de Coimbra, muros que rondei durante anos enquanto cursava direito, da dias da silva para baixo, da univesidade para cima, pelo jardim da sereia ou por outro lado qualquer, ainda mandei encadernar muitos livros na cadeia, mas isso acabou. O EP de Coimbra é imponente, arquitectonicamente belíssimo, a bilblioteca difícil de explicar, porque é sumptuosa, algo que não se espera ali. Como esse poeta Mário Pessoa, que estava sempre a voar dali para fora, fosse das páginas d'"A manhã do mundo", fosse do seu próprio peito. Ele leu o meu "Dominó", que a Isabel trouxe e eu lhe ofereci, eu abri a absoluta excepção das leituras públicas para ler - quase me obrigava a cantar - o "convento do vitral" dele, que ele me ofereceu e eu tenho aqui entre as páginas de um projecto de poesia que me impressinou profundamente pela qualidade: o Zé Eduardo vem de fora, da liberdade, como nós, para lhes dar ferramentas para construir poemas, e conseguiu chegar a um compromisso estratosférico. Não vale a pena fazer revistas, eles, pela mão do Zé Eduardo, saem dali. Maravilhoso. E fica o sorriso desarmante do Lelo, cigano bonito, do riquíssimo Pessoa, do incisivo Roberto, do doce Bruno, do Silva, do Oliveira, do Nogueira - somos quase um pomar -, do Marques e de tantos que estão sempre desassombrados e de coração aberto: nunca há mentira numa conversa sobre literatura de atrás de grades. Há uma dignidade inquebrantável para lá dos ferros, uma sensação de verticalidade, não de engano, que nos inunda. É quase irónico que cá fora se sinta mais volatilidade do que lá dentro, mas é assim, e essa liberdade áspera, dura, faz bem à alma.
E descemos e subimos Coimbra por tantos lados que eu subia e descia há vinte anos.
Minutos depois estou no comboio de regresso ao Porto, eléctrico, entrecortado, suado, difuso, tusso, a menina no bar ofercece-me dois rebuçados, eu peço-lhe o penúltimo café do dia e, da luz da Avelar Brotero às asas do Pessoa, a vida mais alta, tão interior e intensa em cada um dos sujeitos do dia que sim, mais alta, maior do que os homens, do tamanho dos poemas que deixamos por dizer ou, maior ainda, do silêncio da Micaela e da agricultura filosófica, mais do que de um Brotero, do Pessoa.
PG-M 2014
Published on January 30, 2014 20:16
January 25, 2014
esta febre portuguesa
escrevo sem abrigo há dez mil anos escrevo apesar do pai escrevo apesar da mãe incluo o vento e a mulher o mar e o filho o céu e o inferno, mas casa não
vou dentro de um torso alheio fora de mim os anos no chão os olhos no ventre a mão no sexo a língua na ponta de todas as línguas
saliva a correr que é seiva queimadanas bocas a urgência da frase e este longo
longo silêncio este triste triste verbo esta doce doce vulva
esta febre portuguesa esta certeza este dilema do linho descendo nas coxas
de um poema
PG-M 2014fonte da foto (de Sebastião Pernes)
Published on January 25, 2014 04:33
January 23, 2014
Dominó
somos os troncos cortados, as árvores doentes,a treva do bairro, os vasos quebrados,
somos o húmus humano, a pedra-sabão,
a merda no piso, os corpos rasgados,
somos
os violentos sem causa,
as respostas sem porquê
joga o dominó de carne
traaaa-ta-ta-ta-ta
somos
os homens nus da prisão
a fúria para cá do vento
o momento
original
chegamos na mesma palha
partimos na mesma tábua
(há um que se vê,
outro não)
os intermúndios serão
os achaques da surdez
o barulho da paixão
uma cor que tu não vês
nas unhas das mulheres deles
são pretas, azuis, vermelhas, verdes,
são amarelas, bordô,
no mesmo corpo,
no mesmo colo,
na mesma mãe
joga o dominó de carne
traaaa-ta-ta-ta-ta,
passa a faca no azul
fode o vermelho,
enfia no amarelo,
esgana o bordô,
cega o verde
somos
os homens nus da prisão
a fúria para cá do vento
o momento
original
chegamos na mesma palha
partimos na mesma tábua
do mesmo lugar
(há um que se vê,
outro não)
PG-M 2014
fonte da foto
Published on January 23, 2014 09:45
January 22, 2014
LOST for all eternity
Desta vez, com a bênção do timewarp (um recurso tããão "Lost"), que nos permite analepses e prolepses, e com a grande ideia do canal MOV de ter retransmitido toda a série em HD, vi tudo. Tudo. Não perdi um minuto. Quase oitenta horas da melhor série de todos os tempos, digo mais, do melhor naco de arte em movimento alguma vez visto. Acaba amanhã, no episódio dezoito da sexta temporada, e desta vez tenho uma ideia muito diferente da primeira vez, estendida ao longo dos seis anos que demoraram a passar os cento e oito episódios e as seis temporadas. Ao ver praticamente um episódio por dia (foi o meu vício do último trimestre), sem perder pitada, tudo faz sentido, e nem sequer está confuso. E o que eu achei "cheesy" na crónica que escrevi em 2010, "O Lost não acabou (declaração fanática)", parece-me agora a única saída justa para os fãs, que aliás deviam ser todos os habitantes do planeta. Este final coloca a série acima do tempo, a vida que se recompõe no "flash sideways" - porque todos acabam por se tocar e lembrar do universo paralelo da ilha - ou a morte e chegada ao paraíso na história que nos é contada desde o início.
Há um momento que, se perdido, pode dificultar o entendimento do argumento, este arrebatador argumento: aquele em que Jacob explica que a ilha tem a função de um rolha num garrafão, e que o vinho dentro do garrafão é o mal. Sem rolha, o mal não é contido e o mundo fica coberto de trevas.
O que torna esta série notável é que não é propriamente fantasia.Tomamos contacto com as perguntas que fazemos desde que temos consciência. O que estamos aqui a fazer? O que é isto? Existe vida além da morte? Há céu, inferno, purgatório? Deus? O que é deus?O equilíbrio entre o bem e o mal percorre cada episódio. É o próprio Jacob que diz ao irmão, quando observam mais um barco a chegar à ilha e prevêem que os que náufragos seguirão o caminho de todos os anteriores: uma união inicial no desespero e na sorte, uma luta pela liderança, pelo poder, guerra, morte. Que é sempre assim, sempre igual, será sempre, até ao fim.
Mas os grandes desígnios não fariam esta série perfeita, como defendo que é: o que a faz perfeita é ter tudo, e se nem sempre isso quer dizer boa arte (muitas vezes há que tomar partido, fazer opções estéticas, não atirar tudo para dentro do caldeirão), a verdade é que os argumentistas usam com mestria as oitenta horas que lhes dão para contar esta história que, no fundo, é a história da humanidade.
Há grandes histórias de amor, que nunca se desgastam, que são profundamente complexas e raramente ficam claras. As excepções são as de Rose e Bernard, a de Charlie e Claire, a de Sayid e Shanon, a de Desmond e Penny, a de Daniel e Charlotte, a de Hurley e Libby. O triângulo Kate-Jack-Sawyer é tremendo e muito bem cuidado por quem escreve.
Há grandes histórias de vida, sempre muito bem contadas, sem perda de interesse. Não é porque saímos da ilha e entramos na vida de uma das personagens que desmobilizamos: tudo é relevante, tudo é intenso, tudo é tenso.
Mas não quero terminar esta declaração de amor sem reforçar a escolha da personagem favorita:
Sawyer é das mais bem construídas personagens da história da televisão e do cinema. Tem tudo o que é possível ter, é a dualidade humana em carne viva, é simultaneamente uma coisa e o seu contrário, honesto e vigarista, egoísta e altruísta, justo e vingativo, duro e de coração mole, aparentemente estúpido, mas muito culto (é o que mais lê ao longo de toda a série, está sempre a ler, e a ler grandes livros), e a verdade é que usa a cultura de uma forma popular, terra-a-terra, como sempre me pareceu boa ideia. Tem a melhor escolha de perfume (Davidoff) e é o que, no triângulo com Kate e Jack, demonstra o seu amor por Kate por acções, não por omissões, como o atormentado Jack.
Em rigor, e com poucas excepções, todos os elementos de Lost têm esta dualidade, afinal a dualidade de que somos feitos.
O que custa a quem realmente se dedica a estas oitenta horas sublimes é deixá-las, é não ter mais, não ter para os anos todos que faltam viver. E é curioso como, tendo o casting sido perfeito e a direcção de actores do outro mundo, poucos são os actores de Lost que continuaram com trabalho e visibilidade. E são muitos os que sofrem de uma espécie de síndrome pós traumático. A forma como todos viveram os seis anos da série, mesmo os secundários, foi a forma como se deve viver toda a arte: visceral.
Mas isso tem sempre efeitos secundários. Quando se põem as vísceras nas coisas e as coisas acabam, fica o corpo vazio, os ossos, numa espécie de deserto.
Valha-nos a grande banda sonora e a hipótese de, de vez em quando, rever a série que nos marcou as memórias como se fizesse parte da nossa vida.
Na realidade (coisa engraçada de se dizer da ficção), fez.Fará sempre.
PG-M 2014fonte da foto
Published on January 22, 2014 10:04
January 20, 2014
depois disto, e até à morte, quero calar-me com o relato do maior amor de uma vida
passa o dedo os dedos a mão toda os braços
passa a pele e os pelos e o suor e a saliva
passa os olhos as pálpebras as pestanas as
nádegas as coxas os lábios os
mamilos a língua a saliva as
veias
na única frase da única dedicatória
que algum dia te farei
num livro
começa assim:
à mulher que me colheu
PG-M 2014
fonte da foto
Published on January 20, 2014 12:18


