Pedro Guilherme Moreira's Blog, page 36

December 8, 2013

Jasmim (e o colégio dinis de melo, em Amor)

Há muito, muito tempo, não havia neste reino bomboneiras de vidro em forma de cogumelo. Para que a rainha destes domínios reinasse feliz, houve que partir em comitiva para a marinha grande, onde se erigira em lenda a história de uma plêiade de artistas vidreiros que, quando reunidos, se chamavam indistintamente pelo nome colectivo de jasmim.Muitos anos depois foi-me depositada nas mãos uma peça de vidro que simbolizava a constelação do colégio dinis de melo e eu, que vivo largamente pelos detalhes, topei pela saca de cartão que a amparava: o mesmo jasmim, as mesmas mãos colectivas haviam feito para as minhas uma peça de um plano acima dos homens, tal como aquela bomboneira de vidro que eu trouxera de volta para a minha rainha há muito, muito tempo.Nesse fim de noite de sexta-feira, 6 de dezembro, já 7, com temperaturas negativas lá fora, a professora isabel entornou nas minhas mãos a arte jasmim, que, como a foto documenta, trazia a história da noite em cada reflexo - que andou entre o transparente e o azul.história que começa nos olhos claros da roberta, a italiana que recentrou os meus castanhos escuros num levantamento de escritores no porto e me trouxe a leiria pelas mãos da mãe helena - na entrada do colégio faziam uma família perfeita com o fausto, não por caso treinador de voleibol na sua bela itália, afinal o desporto que é uma parte do que sou.

agora entramos, tenho ao meu lado o gil, o meu amigo de sempre, juiz na cidade, lembras-te de quando éramos os dois únicos confrades da confraria do código civil, gil? a confraria do código civil eram dois estudantes loucos que, por puro gozo, batiam às portas da foz velha, no porto, para ler artigos do código civl - muita gente que ficava a ouvir a leitura empenhada do gil e hoje ainda choramos a rir por todo o bem, toda a legislação, que transmitimos.

compro dois postais ao joão e ao ricardo que eles mais tarde me dedicarão - tenho-os aqui para sempre -, tomo o café, tenho a garrafa de água na mão, os reflexos em transparente e azul vão multiplicar-se.
a professora isabel apresentou-me sem que eu visse ou ouvisse, mas vi-a perfeitamente do princípio ao fim da noite com o mundo às costas até me entregar este cubo de vidro que é jasmim e me pedir desculpa pela falta de atenção que me dedicou.
ela, que fez a noite minha. ela, que foi o nosso atlas.

e depois vem a bruna.oh, a bruna! 

a bruna fez a minha apresentação, e essa eu já ouvi, passei por ela para me sentar ao centro da mesa e disse-lhe "esse sou eu", ela olhou bem cá para cima e disse, algo desconcertada, "eu sei". se foi a bruna que construiu o texto de apresentação, é-lhe devida vénia. fugiu à wikipedia e teve de ler muito para o sintetizar naqueles cinco parágrafos bem escritos. sabe que eu não gosto do cinzento dos tribunais e termina assim: "como se diz obcecado por livros e livrarias, esperamos não ter de aguardar muito mais para lermos outros romances". três meses, no máximo, bruna.
já depois da sessão de perguntas e respostas ter acabado, a bruna fez mais algumas perguntas, ali, perto de mim - a última era tão corpulenta, tão profunda, tão bonita, que eu lhe perguntei de volta se ficava até ao fim, e ela disse que sim. então continuei com as dedicatórias com a minha letra de imprensa, afectada do que sou, mas a bruna desapareceu e eu não pude responder-lhe. mesmo que volte um destes dias, é para mim terrível deixar uma pergunta em suspenso, mesmo que os olhos da Bruna quase a tivessem respondido. e esta noite de dezembro ficou incompleta porque a bruna ficou incompleta.

muito antes, os meus asas, joão e ricardo, tinham-se sentado um de cada lado - gosto de ficar acompanhado nas mesas. o joão é um observador, ar intrigado, inquisitivo. o ricardo foi o meu ponto teatral: grande trabalho, ricardo. como percebeu que era importante para mim saber o nome de toda a gente, foi-me dizendo quem eram e, às vezes, o que faziam.
"eu nunca disse um poema meu" foi lido pela professora rosário como se fosse dela. era efectivamente mais dela do que meu. a rosário deixou na sala as vísceras do poema. o pedro leu o "plátano".
a carolina rosa leu tão bem "poema à mãe e outras vidas", mas também me fugiu. acabou a leitura, recuou na sala para receber os aplausos, o namorado veio resgatá-la, ela deu-lhe a mão e partiram pela noite fria.
ficou também por fazer a minha pergunta a todos: porque é que escolheram este texto, este poema?
porquê, pedro?
porquê, rosário?
porquê, carolina?
RP:
RR:
RC:


o andré pedro falou-me da negação do horror e dos universos paralelos e do fringe
vieram pelo menos mais dois andrés, um deles era também gaspar
veio a catarina rodrigues, outro gaspar (mas luís)
a antónia, que queria saber se a família me aturava como escritor
a rita e os caminhos que me levaram ao direito
a beatriz sobre as teorias da conspiração
o bruno de camisola pull & bear para eu falar da capa e das revisões em edição,

e então a bruna voltou, com olhos brilhantes e complexos, para saber muito mais coisas
e então a bruna partiu

à mesa veio o afonso, com a sua irmã, a pequenita leonor, a pulular em volta, divertida, o casal real - como lhes chamei - levou um livro. a leonor explicou-me que o afonso lia muito, lia na cama, eu quis saber como, que não há gadget mais avançado do que um livro, mas nunca houve posição para lê-lo durante longas horas
à mesa veio a bonita bibliotecária paula, levou dois livros, um era da escola, outro dela
à mesa vieram cremilde - a cremilde levou livro - e cremilda, que, não sendo uma sociedade, nos deixaram entrar no aporte estético dos nomes, falaram francês mas não tocaram piano, são professoras, portanto heroínas, heróinas puras,
não injectáveis

de volta a bellissima roberta dos olhos claros, roberta do sorriso que o fausto e a helena desenharam, mas espelhado em nós faz pensar que é de cada um

e no fim, em letra pequena como toda esta memória, para não distinguir o indistinguível, a professora isabel a entregar-me tudo numa mancha azul ao fundo de um cubo transparente,
que é jasmim e é Amor


e a noite foi tudo mas fica em nada se não os tiver a todos de volta

PG-M 2013
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Published on December 08, 2013 20:39

December 4, 2013

Eliane, Portugal

 Deixa que eu apresento:Eliane, Portugal.Portugal, Eliane.Não é por ela ter um apelido que se ouve na boca de uma criança tripeira quando quer mimetizar um popó: Brrrrrruuuuummm.Não é sequer por ter uma dicção doce, mesmo para brasileira, que já de si traz um português açucarado e distendido. Nesse sotaque cada ponto final é uma cerca de veludo onde as frases batem sorrindo, cada exclamação um abalo, cada pergunta uma canção.É apenas porque ela escreve bem p'ra caraças ou, como se diria no meu Porto, este, o atlântico, o europeu, como o carago.
Não, também não é só por isso, que é só pretexto bairrista.
Eliane é essencialmente jornalista, embora escritora.Aquele jeito visceral eu conheço em qualquer lado.Aquela forma de arrastar constantemente as explicações para dentro de abismos e cair por eles abrindo os braços e tomando a existência dos outros como se fosse a própria pele.E vai-se a ver está amparando os torsos que indaga ou traz para dentro de si própria sem qualquer protecção, aquela protecção soez da mediocridade.Eliana tem feito chorar vários tipos de granito,e com isso pessoas mesmo.
Pelo que soube ao ler a Eliane, Alice estava morrendo. "Comer e se salvar". A merendeira da escola que ressuscitava crianças porque elas lhe chegavam de manhã com uma fome ainda mais preta do que negra e mortas, literalmente mortas. Ela as ressuscitava dando a primeira merenda do dia. Então a Alice insistia em encher o prato da jornalista, acreditando que, alimentando Eliane, se salvaria também."Se eu comer, talvez melhore".Como a minha mãe quando eu era menino, como o meu menino quando eu sou pai."Acho que já não tenho a doença", dizia, para quem a quisesse ouvir.Então a Lourdes dizia à Alice, para a animar: "Eu tinha uma tia que tinha a tua doença e cheirava muito mal, mas tu não cheiras mal". E sorriam, ou eu acho que sorriam, porque foi assim que imaginei quando ouvi a Eliane falar para o auditório.Em cento e quinze dias à vista de Eliane, os seus últimos cento e quinze dias, Alice nunca pronunciou a palavra "câncer". Eliane também não. Eliane achava que, se algum dia tivesse trazido o câncer para uma pergunta, tinha perdido Alice para sempre. Assim a ganhou para sempre.A médica dos paliativos, Maria Goretti, tentou puxá-la um pouco à terra, para ela morrer por cá, bem perto, e não no céu, bem longe.- A senhora esqueceu. Tem uma pedra no seu caminho.E a Alice perguntou:- E não dá para fazer viaduto?E repetia para Eliane:"Se eu comer, talvez melhore""Alice, eu estava lá, a culpa não é tua""Eu acho que sabia, mas esqueci"
A Eliane diz que o jornalista muda o mundo porque lhe dá voz.Que não importa mais o homem que mordeu o cão, mas o cão que morde o homem. Quando não há nada, também não há circo. Só depois, só depois de relatar esse cão e fazer os olhos brilhar porque sim, não porque foge da vida.A Eliane faz como eu nas páginas: se esvazia para encher do outro, o que está perante si.Vê que a maioria é minoria na imprensa, e a minoria, a selecta minoria, maioria, e Eliane não quer.E se o Brasil é um continente e Portugal se equilibra nos cabos de outro, e aqui caiu o assombro dessa voz, essa voz deste lado do mar, trago Eliane e a ergo nas vossas caras ou a intrometo nos vossos corações.
É que Eliane faz nos seus parágrafos o que a parteira índia de mais de noventa anos fazia na sua aldeia:enche o mundo nas horas vagas da noite.
PG-M 2013fonte da foto
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Published on December 04, 2013 13:48

November 26, 2013

A noite imperfeita

   Imaginei um começo de parágrafo banal, um que todos nós queremos usar de vez em quando com alguém que nos falha: não preciso de ti para nada, não precisas de mim para nada.Na verdade, se não somos centrados em nós, o nosso movimento natural é dar e estar para dar, estar para ser usado por quem precisa, e quem precisa não tem necessariamente de ser boa pessoa. Ou tem? Não tem. A dádiva, a amizade, até o próprio amor, mais ainda, a abnegação profissional a troco de nada, não têm de ser paritárias. A bondade não é paritária. E o crescimento do corpo ensina-nos a viver sem ilusões, para não encolhermos a cada desilusão. Acontece que essa natureza de dar, estar e ouvir tem momentos de restauro.
Reboot.
Não sei se é da alma, se do corpo, se de ambos, mas sentimo-nos mirrar, encolher, de tal forma que nem para um abraço de conforto estamos disponíveis, porque houve uma desilusão que nos venceu e precisamos de uma noite, pelo menos uma noite, para no outro dia voltarmos a ser irrelevantes e acolher os pobres, os infelizes e os egocêntricos, principalmente estes, que acumulam com os outros.É fundamental que o façamos sem queixume, ou o mundo tomba de lado.Hoje é dia da noite imperfeita, a única do mês em que consentimos desaparecer. Sem a distensão do abraço, com a intenção do regresso.
  PG-M 2013fonte da foto 1 fonte da foto 2
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Published on November 26, 2013 11:33

Segunda-feira

 À segunda-feira voltamos a ser ilhas, e isto nem sempre é mau.A separação dos corpos fere, ao centro do peito volta o bloco de chumbo, o peso da semana nova, que o olhar desalija conforme os dias passam, até voltarem os amigos, os filhos e as mulheres para debaixo das mãos, o que, mesmo que aconteça todos os dias, não se demora como ao sábado e ao domingo. Hoje há mais lágrimas ao volante ou enquanto o nosso vulto se verga noutras paisagens. Quem não fecha os olhos a nada, da tv às redes sociais, acha tudo inútil e supérfluo momentaneamente. Temos condições para perceber que a sabedoria está na escuta, na serenidade de saber manter essa reserva de músculo na sombra. E o melhor não é gritado a céu aberto em vista de um só centro, mas feito difuso, por todos, a céu fechado E construimos o mundo. Mesmo que doa.E até os sorrisos, hoje, doem.
PG-M 2013fonte da foto
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Published on November 26, 2013 11:20

Um instante numa estante

 Um destes dias, numa das livrarias que habitualmente frequento, vi que, depois de muitos meses de ausência, um livreiro mais afoito trouxe de volta "A manhã do mundo". Mas o que me fez sorrir foi reparar nos meus companheiros de estante, que, com sorte, o serão pela eternidade, e resolvi trazer-vos este mimo: começando no Almada Negreiros (estás aí?), prosseguindo no Paulo José Miranda (estás aí?), na Julieta Monginho (estás aí?), no Paulo M. Morais (estás aí?), no Miguel Miranda (estás aí?), no Vitorino Nemésio, Abel Neves, José Niza e Rui Nunes (estão aí?), no Vicente Alves Do Ó (estás aí?), na Raquel Ochoa (estás aí?), o Carlos de Oliveira, o Luiz e o Francisco do Pacheco - que é irmão do Vicente - (estão aí?), e, para fechar este vislumbre (este assombro?), o João Rebocho Pais, que aqui na rede social se dá por Red Jan. O privilégio é estarmos ali, calados, a falar para todos, e também, acima de tudo, e ainda que menos literário, podermos trocar abraços com quase todos, enquanto há tempo. Depois fica o melhor: nós na terra, os livros ao pó ou nas mãos, em livrarias, estantes ou blibliotecas - porque eu ainda não vi nenhum livro em lixeiras, ainda que saiba que também lá vivem, até serem resgatados. E, apesar de o próprio Orwell ter testemunhado o perigo do desencanto pelos livros quando se trabalha numa livraria, tenho quase a certeza que seria gratificante para os funcionários desta livraria perceber que um destes dias um dos autores daquele nicho tirou uma fotografia à estante que eles organizaram e os livros (os autores:) entraram em diálogo uns com os outros. Eles estão sempre ali. E vocês, estão aí?
PG-M 2013
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Published on November 26, 2013 11:10

November 17, 2013

nobel de latão



 já é de tarde e é cedo.teatro de sol de domingo e no banco de jardim do parque infantil da praia de salgueiros estão sentados, lado a lado, o emplastro da madalena, que é filho do pinto da costa, e uma rapariga que foi famosa num big brother ou numa casa dos segredos, já não sei bem, estão ambos com o olhar vazio, ele com uma saco de plástico, ela com uma garrafa de vodka, ele não está muito limpo, ela também não, nota-se principalmente pelo cabelo, e de forma alguma estão juntos. no banco em frente está um poeta de rua que escreve com uma letra miudinha nuns papéis muito pequenos, de vez em quando para, olha para tudo, portanto para nada, morde a barba comprida por baixo do lábio inferior, e ao lado dele um acordeonista que trabalha de segunda a sábado na rua de santa catarina mas hoje esta a descansar ao teatro de sol de um banco de jardim em frente ao mar.eu estou a tomar café num bar em frente, protegido deles por um vidro, a pensar na literatura e na vida e na ciência e no corpo, portanto a fazer filosofia sem querer, depois de ter lido uma entrevista demasiado profunda do eme tavares. estou perturbado, fico sempre perturbado quando não resolvo um escritor, isto é uma doença que só me dá com os melhores. penso que não retive o nome da jornalista que lhe fez perguntas de uma forma rara, como se soubesse mesmo o que estava a fazer e tivesse pensado sobre a causa, e não sobre a consequência, e se tivesse concentrado na fonte e não no resultado.entretanto acabei por decidir que, realmente, o próximo nobel português vai para o eme tavares e por ter uma consciência clara de que já não consigo competir com ele pelas coisas mais bonitas e só tenho uma vantagem sobre ele, sou mais velho, chego mais cedo à idade da aparência do abandono, a ironia era que eu queria ganhar o nobel porque aquilo é muito dinheiro e dava para alimentar a família para sempre, mas não posso tentar porque tenho de trabalhar para dar de comer à família ainda este ano.
o emplastro abriu um saco de milho e está a atirar milho às pombas e a partilhá-lo com a miúda do big brother, mas por causa do vento não há pombas na praia e as gaivotas querem o milho nem vem o O'Neill, porque o médico lhe disse que, por causa da condição cardíaca, não devia caminhar contra o vento.
li num livro do eme tavares que os homens, nos jardins de domingo, procuram diamantes e que as mulheres os procuram a eles. disse isto à minha mulher e ela perguntou, a eles, aos diamantes? e eu respondi, acho que é aos homens, mas estás a ver, de qualquer modo, se for aos homens porque eles procuram diamantes é muito bonito. não estou sequer certo que era isso que estava lá escrito. espera. não foi num livro. foi no artigo de hoje da notícias magazine. não tenho gostado muito dos textos do eme na notícias magazine - talvez apenas porque são superiores e eu não lhes consigo chegar -, mas hoje gostei, acho que era o senhor voltaire a falar e de vez em quando a olhar para um quadrado negro que era um poço muito fundo ou a sorrir com a parte lateral do labio e que isso era sarcasmo, ou as duas coisas, não sei.não tenho tempo para investigar as frases e ouvi dizer que o eme tavares agora só faz isso e isola-se para o tempo parar como os artistas da antiguidade, que tem de ser assim para chegar a arte ou as palavras que podem ser arte.
em rigor, se querem que vos diga, eu queria ganhar o nobel porque gosto muito daquela parte da cerimónia em que nos põem uma faixa vermelha na diagonal, sobre a barriga e sobre o peito, ou sobre o peito e a barriga, e o rei da suécia nos vem entregar uma pequena caixa com uma medalha do alfred nobel e depois o escritor tem de fazer uma vénia ao rei, depois uma vénia aos convidados mais ilustres, depois uma vénia aos convidados menos ilustres e tocam as cornetas.penso, sinceramente, que se me fizerem uma cerimónia dessas num aniversário qualquer já ganhei o nobel. o problema é mandar vir o rei da suécia. eu preferia a vitória, mas sem o príncipe que a desposou.
o mais complicado vai ser chegar a casa hoje e explicar à minha mulher porque é que decidi escrever este texto só com letra pequena, como o valter primitivo.
no banco de jardim de cá o poeta de rua está de pé e com uma mão estendida, como se mandasse esperar o mundo. fez um sinal ao acordeonista e ele levantou-se e está a fazer gestos com a cabeça e com os braços, como se estivesse mesmo a tocar. tenho de pagar o café e ir ouvir o que é que ele está a tocar.
e é assim, até hoje tinha conseguido resolver o eme tavares em mim, mas aconteceu que ontem e hoje não, o eme tavares subiu tanto, tanto, que eu percebi que ele já chegou a uma pureza a que eu nunca chegarei, porque não tenho tempo nem qualidade, poucos têm, talvez só ele
é por isso que a treta da convesa precoce do nobel deixou de ser treta, eu já atribuí um a Moçambique, antes deste, para o Mia Couto, vai ser um grande dia para a língua portuguesa e desportuguesa, e depois, quando o eme tavares estiver perto dos sessenta, outro, finalmente, para portugal.
eu só terei hipótese se passar os cento e trinta e um, e mesmo assim não posso ir curvado, tenho de estar lúcído e com capacidade de subir a um palco, como o Manoel de Oliveira, que fez isso há dias na bilbioteca almeida garrett, no porto, e tem centro e cinco e parece que está tudo à espera que ele morra para lhe darem mais.
gostei de ouvir o eme tavares dizer que não se podem comparar ou escalonar livros, que é como dizer que um tigre é melhor do que um elefante, espera, o acordeonista estava a tocar a melodia do into my arms, do nick cave, o poeta a ler o "assim como" do alberto caeiro....como é possível?....e o emplastro está a olhar muito espantado para ele, com a boca cheia de pão, e menina da casa dos segredos a abraçar a garrafa de vodka.
eu estou arrebatado e a ouvir na minha cabeça o ave verum corpus, do mozart, mas não está realmente a tocar
nenhum deles sorri, nem o emplastro nem a miúda, porque não há câmaras de televisão por perto
li hoje um fragmento do primeiro romance do bruno vieira amaral e fiquei comovido, era uma reunião qualquer entre a mãe e umas senhoras, uma em que ele ficou ao largo, estava tão delicado e no entanto cruel como  a grande literatura sabe ser, ainda assim mais suave do que o coetzee no coração desta terra, mas um destes dias estava a ver na sic notícias uma reportagem sobre a entrada do público no estádio da luz para o portugal-suécia e lá estava o emplastro, vi a cara de poucos amigos do repórter, vi alguém a bater no empalstro e não gostei, afinal o rapaz é filho do pinto da costa e faz-nos sorrir a todos, está bem, podia estar a aborrecer o repórter há muito tempo, mas não importa, bater no emplastro é um crime de lesa-majestade, e resolvi descer aos bancos de jardim e dizer-lhe
mas a expressão dele continuou vazia
o poeta de rua disse para eu deixar estar, que ele sabia o que tinha a fazer, que tinha uma história infantil ou uma grande frase que lhe contava ou dizia sempre, e eu voltei a pensar em literatura e no eme tavares,
será que consigo resolver isto? o empalstro, a miúda do big brother, o poeta de rua, o acordeoonista e o eme tavares? será que consigo tocar ao de leve a literatura para a atirar para dentro do emplastro e da miúda da casa dos segredos, ou é mesmo obrigatório render-me e desistir, aceitar a expressão vazia dos dois e a superioridade das coisas simples e inatingíveis do eme tavares ou de todos os génios como a maria filomena molder ou a llansol ou alguns pedaços do camus e do coetzee e daquele americano e do próprio do saramago e até do lobo antunes
ah, o discurso do nobel do saramago, eu acho, how characters became the masters and the author their apprentice, foi muito mais bonito do que o do coetzee, he and his man. mas, como dizo eme tavares, não se pode comparar um elefante com um tigre
no teatro de sol de domingo o poeta de rua leu ao emplastro a frase do novalis de que o eme tavares também lhe falou
"estamos sós com tudo aquilo que amamos"
e o empalstro começou a chorar com os olhos quietos
o acordeoonista tocou o anda comigo ver os aviões como se fossem lâminas a desentranhar da pele os corações mais frágeis
e a miúda do big brother largou a garrafa de vodka e dançou a valsa com o emplastro
e ambos riram, pela primeira vez, sem câmaras

(é assim que a literatura chega, baixinho, desde o chão, como as primeira coisas, bruno, e eu resolvo os meus escritores)
PG-M 2013(vencedor do nobel de latão da literatura na festa dos seus quinze anos, organizada pela miúda do big brother)
fonte da foto
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Published on November 17, 2013 11:54

November 11, 2013

A confissão impertinente de Solomon PaloblyK (I)


Pela tese de um grande amor, já sabemos que ele morrerá com a provecta idade de noventa e um anos no ano da graça de dois mil e cinquenta e nove e que tinha dez anos em mil novecentos e setenta e oito, quando o pai, contra a vontade da mãe, o levou a ver a estreia de Wedding, de Robert Altman, no Festival de Cinema de Nova Iorque.
Sabemos também que morou em Great Neck, um subúrbio rico desta cidade, na Garden Street 1, e que tinha casa nos Hamptons, para onde não foi no dia onze de setembro de dois mil e um, porque morreria nas torres, numa primeira versão d'A manhã do mundo, e - spoiler já de seguida - salvar-se-ia delas numa segunda.
Finalmente, e porque no-lo confessou, sabemos que toda a vida amou Penelope, a empregada de café filha do dono, depois também livreira, da livraria onde ia sempre com a mulher, Ida, mulher que enterrou a dois quarteirões dali, e a quem deixou de ler Life and Fate, de Vassili Grossman, pouco antes de morrer, por ela já não ter fôlego nem ouvido para a beleza concisa do russo.
Neste passo da história, é importante dizer que Solomon foi criado como judeu e que nunca na vida, pelo menos até ao dia do seu trigésimo aniversário, se confessou a um padre católico. Mas fê-lo precisamente no dia dos seus trinta anos. E, porque isso aconteceu, Solomon tem alguma coisa do senhor Palomar de Calvino, do senhor Bartleby de Melville e do senhor K de Kafka. É hoje facilmente inteligível a lógica do seu pai quando lhe escolheu o estranho segundo nome, e cuja decisão foi tomada ao observar o olhar do filho no berço depois do primeiríssimo sono em ambiente não securizante: Paloblyk. Solomon ainda não tinha um dia de vida quando o seu pai decidiu chamá-lo de PaloblyK.

Chamou-lhe Solomon PablobyK qualquer-coisa (não vem à memória o apelido).
Solomon PaloblyK dirigiu-se ao confessionário da Church of The Holey Innocents, na 32nd Street, às dez horas da manhã do dia do seu trigésimo aniversário, depois de um Verão hormonalmente doloroso.
"Perdoe-me, padre, porque faço hoje trinta anos, pequei e nunca me confessei."
"Os meus parabéns, meu filho. Quais são os teus pecados?"
Evitando a pergunta óbvia, a piada fácil, Solomon PaloblyK prosseguiu:
"Aí é que está o problema, senhor padre. Há algo na vida que não estou a conseguir conciliar com o amor e a fidelidade à minha mulher. Faço hoje trinta anos, pareceu-me adequado vir falar com uma padre católico, eu que fui educado como judeu. Aliás, todos os meus problemas têm vindo a confluir na questão do estranho e do conhecido. Porque há uma zona cinzenta das relações humanas que nem a literatura acolhe, descontando, talvez, o conforto da estranheza que as confissões de Santo Agostinho me causaram. Pensei: e eu, que não sei escrever desta forma absolutamente arrebatadora e clara, como vou eu dirigir a luz para mim próprio de modo a descobrir nas minhas profundezas as soluções para as dificuldades respiratórias da vida, principalmente da vida com as mulheres?

Repare, senhor padre: não incluo a apneia nestas dificuldades respiratórias da vida com as mulheres. A apneia pode ser um problema, mas também pode ser uma virtude. Eu, quando era novo, vencia os concursos de apneia, fazia duas piscinas debaixo de água. E se falamos de apneia como arrebatamento, também não venho confessar as mulheres que nos dão apneia num momento fugaz na paragem de autocarro, numa fila de automóveis, num passeio - também excluo as que apenas nos intrigam e que nos fazem pensar, durante alguns segundos, que gostávamos de as possuir ou de lhes perguntar as horas ou de cheirar os seus perfumes.
No supermercado onde faço as minhas compras há uma rapariga de olhos amendoados e lábios cheios que me atende sempre de uma forma perturbante. Demora-se no meu olhar mais uns segundos do que o normal, eu demoro-me no dela, ela sorri e eu devolvo, quando eu me apresto para sair ela olha sempre para trás e diz-me adeus e até amanhã, eu respondo. É assim há mais de um ano. É diferente ir ao supermercado quando ela está e quando ela não está. Chego a voltar mais tarde só para poder pagar as compras a esta rapariga. Não posso, honestamente, defender a tese de que ela me tenta seduzir, tampouco eu a ela, mas, lá está: o meu impulso é entremear esta com a história das velhas e hipócritas adversativas, tipo "Mas ela ainda não fez vinte anos e eu estou a bater nos trinta", ou "Mas eu sou casado e ela pode ter namorado". Deus - o nosso deus, senhor padre - sabe quanto tempo trabalhará ela naquele supermercado ou eu morarei naquela zona, mas devo destacar este facto: esta rapariga é mais importante na minha vida do que, por exemplo, muitos enfadonhos e vazios colegas de trabalho. Curioso eu chamar-lhes vazios quanto não troquei mais do que três ou quatro expressões coloquiais com ela. Mas a verdade é que há um ritmo, uma troca, algo que ela me dá e eu lhe devolvo e que, pelo menos para mim, é de grande relevância. Ainda que ambos possamos gerir com alguma maturidade a ausência na vida um do outro, que é muito maior do que a presença (eu vejo-a uma vez por semana, no máximo duas, às vezes nenhuma), há um elemento social tácito que classifica esta relação como inexistente ou irrelevante. Que me retira o direito de saber se ela sente o mesmo, ou algo de parecido mas só dela, saiba ou não porquê. E não é líquido que eu goste de me cruzar com ela porque me sinto atraído fisicamente, ou ela por mim. Aliás, sinto coisas parecidas por mais pessoas, algumas do sexo masculino, e Deus - o nosso deus, senhor padre - também sabe muito bem que eu não pesco - nem peco - desse lado. O que eu sei é que há uma tensão, um finíssimo cordel totalmente esticado, que se libertaria se eu e ela pudéssemos conversar sobre isto, por exemplo, num confessionário como este.
Será que algum dia isso vai ser possível? Nós "adcionarmos" expressamente um desconhecido à nossa vida para não nos perdermos dele, uma espécie de livro das caras com que nos cruzamos ou nos queremos cruzar, e um dia, sem combinar, apenas porque calha estarmos ao mesmo tempo no confessionário, lhe podermos dizer o que nos vai na alma? Isso estraga - ou adensa - o mistério da vida?

E se eu encontrasse esta rapariga nesse confessionário e lhe confiasse estes pensamentos ou sentimentos, quais seriam as consequências? Porque penso que o senhor padre concorda comigo: se eu a convidasse para tomar café numa folga, e ela aceitasse, e mesmo que lhe explicassse tudo muito explicadinho como lhe estou a explicar a si agora, ela ia sempre pensar que as intenções eram outras. E a minha Ida não ia gostar. "Por que raio andas tu a tomar café com a caixa do supermercado?" E o encanto ficaria quebrado para sempre. Está a entender o senhor padre a zona cinzenta e a impossível abordagem? E se existisse um confessionário e o encontro fosse casual e sem contacto visual ou físico? Poderiam nascer outro tipo de pulsões que não estavam na origem do nosso relacionamento, algo erótico, virtual, platónico. Ou nada e o encanto novamente quebrado.

A verdade é que, como dizia o Gabo, as nossas mulheres, as boas, chamam-nos à atenção quando passa outra que nos agrada, ou, como neste caso, sabem de uma com quem mantemos uma dependência química.

Descrevo-lhe as ondas do senhor Palomar.

Relato-lhe, pois, as tentações que o não são.

A minha veradeira tentação é perguntar-lhe. Uma pergunta impossível, porque sugere tudo menos o que eu realmente pretendo dizer.

Será este só um problema da cidade, do homem urbano?

E se eu disser o que não quero? - para induzir um contacto e medir a pulsação, algo tão banal como "A menina é muito bonita." Sugerirá esta pergunta, que não quero realmente fazer, o que quero realmente dizer? Estará a verdade na aparência? E a aparência na verdade?

E se o silêncio for o mais avisado?
Prevalecerá o mais sensato?
Pois se não disser nada, a rapariga de olhos amendoados e lábios cheios, como quase todas as pessoas, vai queixar-se de que a vida dela é desprovida de interesse, os dias iguais entre si, de que as pessoas deviam olhar mais umas para as outras, importar-se mais umas com as outras.

É neste ponto que me sinto o senhor K perante a escadaria infinita do tribunal.

E destes episódios, ao longo da vida, há-os ao dia, à semana, mesmo ao ano, quando voltamos para o lugar onde costumamos passar as férias e reencontramos a mesma empregada de padaria, ano após ano, e nos calamos e nos vamos perdendo dela anos fora. E nos vamos perdendo um dos outros anos fora. Não teria mais sentido - e valor - se eu tivesse dito à rapariga dos olhos amendoados que ela era indispensável às minhas semanas, arriscando quebrar o encanto, mas deixando-lhe essa marca indelével?

Se, quando Saramago escreveu a Pilar dizendo-lhe, "Se as suas circunstâncias o permitirem, gostaria de visitá-la", ela, em vez do sim que despoletou tudo, tivesse respondido "Meu caríssimo Saramago, penso que o terei induzido em erro quanto às minhas intenções", que livros se teriam perdido, que destino teria deixado de ser escrito? E que livros se perderam porque ela teve realmente a circunstância de o receber na sua casa de Sevilha?

Tudo isto me leva , senhor padre, ao que realmente me atormenta:

O companheiro ou a companheira ocasional de um jantar de amigos, uma Lady Chatterley da 82nd Street, de uma saída em conjunto, uma Constance Reid da 31st, de uma férias, uma Connie da Fith, a colega de trabalho que connosco partilha os mais diversos interesses, uma peça de teatro, um jogo qualquer, um longo café com troca de ideias, uma Hilda Reid de Wall Street, aquele ponto em que nos encontramos mais profunda e profusamente com uma pessoa (it's not Mrs Bolton, senhor padre), seja estranha, nova ou pré-existente na nossa vida, em que sentimos empatia ou profunda amizade, leva-nos à velha discussão do "When Harry met Sally" - lembra-se, senhor padre?, passa-se aqui mesmo, em Nova Iorque, quando ela finge o orgasmo em pleno restaurante - ou, pelo contrário, há solução para todas essas tensões de amizade, amor, até sexo, sem que sejam excludentes de um futuro em comum? Qual é o limite? Um abraço? Um beijo sem língua? Um beijo com língua? Um acto sexual? Uma masturbação individual? Uma masturbação conjunta?

Uma conversa, uma longa conversa de mãos dadas, olhos nos olhos, libertará o cordel fino da tensão? Não será  silêncio a mais perigosa e falsa de todas as opções?

E se fosse possível essa coisa mirabolante de que lhe falava há pouco, senhor padre, se as pessoas se pudessem encontrar sem corpo, era pecado? Era pecado o encontro pelo mero pensamento entre Lady Chatterley e o seu amante, Oliver Mellors? Era pecado a troca de imagens eróticas? Era pecado só quando os corpos entrassem uns nos outros? Ou será que a mera vontade de isso acontecer bastava?

E se, no limite dos limites, eu algum dia amar uma pessoa no estrito respeito dos meus deveres matrimoniais, senhor padre? Se me limitar a observá-la dentro dos limites do suportável? Uma rapariga de olhos amendoados e de lábios cheios que, em vez de num supermercado, trabalhasse numa livraria? Penelope? E as consequências são as mesmas quando se ama ou quando não se ama? Devo quebrar o encanto? Ou devo sangrar, libertar todas as tensões através de pequenos actos que satisfaçam a minha curiosidade? E quais são os meus verdadeiros limites, as minhas fronteiras, fronteiras reais, não uma desculpa esfarrapada, uma embriaguez em perfume de romances novecentistas, no regresso da Biblioteca do Congresso?

Consinta-me ao menos um abraço, senhor padre, ao menos um abraço.

E se o senhor padre me disser "Preferia que não o fizesse", está fechado em Bartleby, meu caro padre, cerradíssimo no meu segundo nome e afinal em toda a minha existência.

E na história da minha vida já não caberia a livreira Penelope, para já uma miúda de quinze anos, filha do dono, que eu conhecerei daqui a algumas horas, quando abrir a livraria nova, em busca do "Life and Fate".

E já não a amarei nos sessentas anos que se seguem.

Que é como quem diz, até à morte."

PG-M 2013PS: A confisão de Solomon PaloblyK, obviamente, continua; quando, é coisa que não se sabe;
Relacionados: À(s) muher(es) desconhecida(s) e A tese de um grande amor
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Published on November 11, 2013 08:00

November 3, 2013

Apneia (no Museu de Ovar)

Nem sei bem por onde começar.Talvez por duas palavras que não têm de ser difíceis. Como as pessoas que elas servirão.Exitância é radiância. Eutimia é tranquilidade, serenidade.Então por onde começo?Pela exitância dos olhos da Elisabeth Leite? Pela eutimia do sorriso da Helena Dias? Pela forma como ambas - e vamos ver se consigo dizer de uma forma que esteja à altura de ambas - formam uma expressão e um sentido único que anda entre a beleza e a arte puras? Não preciso de ir muito mais longe: entrei ontem pouco depois das seis e meia da tarde do Museu de Ovar, e a nossa tertúlia só começaria três horas depois.  E as pintoras, que tinham inaugurado aquela exposição pelas quatro, cercaram-nos com a sua arte e a maravilhosa história que as une. Talvez possam dizer que a beleza pessoal pode até contender com a arte. Talvez eu devesse dizer coisas mais pequenas, e afinal falar das pinceladas das duas grandes artista, nada mais. É porque não viram os olhos da Elisabeth ou o sorriso da Helena, aliás vinte anos mais nova do que pretende. E sobre a história pessoal das duas nada vou dizer, por pudor e respeito, mas é verdade que há pedaços de vida tão preciosos que apetece recebê-los com a grandeza que têm. E trabalhá-los como se trabalha o barro. Pode parecer algo pérfido, até porque para a literatura pode devassar o lado de dentro das pessoas, mas, caramba, não há violência maior do que ter de gerir o arrebatamento com aquele repente. E a noite de apneia?E o João, a tocar flauta transversal, a abrir, a Rita - que tira fotografias maravilhosas - no violoncelo a fechar?E o Professor Cleto que, não é bem dirigir, erige esse Museu que às dez da noite estava de portas abertas para a rua e a tasca ao lado a aquecer a nossa sala de gargalhadas e conversas?E a Ana Cunha e o institucional a passar a cúmplice?E a forma como o José Ferreira disse os poemas?Ou o Carlos leu a prosa dorida?As lágrimas na sala, noite dentro, são da vossa responsabilidade. Eu passei metade da sessão encolhido sobre o lenço. Mesmo conhecendo ou suspeitando de que tudo começara de fora para dentro de mim.  E os astros nos olhos da Cristina e da Maria Joana quando os velhos morreram um a seguir ao outro?E a saudade e o orgulho nos olhos do Joãozinho - que ganhou o prémio da família mais bonita, a filhinha, a mulher, a mana?E a dignidade da mãe, que estava sentada mas parecia de pé, irredutível, ao vento?E as maratonas que agora magoam o João Elvas?E a rendição do Jacinto Emerenciano e da sua bonita mulher, embevecida e orgulhosa por ele ter deixado os tremoços e as cervejas para mais tarde (para a próxima também os trazemos, o que achas, Jacinto?) Jacinto é um nome tão bonito.E aquela espécie de coloratura do Silvério, que não é coloratura nenhuma, mas é assim que se inscreve em nós, uma ópera que sobe, sobe, sobe, que do princípio ao fim da noite te vimos a vida toda com esse queixo levantado, os olhos imersos e o coração a abranger todos?  E o meteoro que caiu entre nós e nos encheu de perguntas? Mas deixamos? Mas não é isto que viemos cá fazer?A meio da sessão levantou-se um senhor e perguntou: "Posso?"Ninguém sabia o quê."Posso ler poesia?"Acontece muitas vezes em sessões públicas. Normalmente é rapidamente silenciado ou deixado para o fim. Assim lhe foi dito pelo moderador."Mas a minha mulher está em casa sozinha. E se eu demoro fica com frio." (neste preciso momento sinto o aperto no peito que nos provocou a todos, que pensámos, até à última palavra, que era um homem um pouco louco, talvez pensemos sempre, ninguém para quem era óbvio que, num lugar onde se dizem certos poemas, se podem dizer todos; já não era uma questão de momento, ordem, disciplina, a partir do momento em que ele deu uma explicação mais bela do que qualquer poema todos o queríamos ouvir) "Chamo-me Bandeira e sou trasmontano."E leu um belo poema de António Neves Pinheiro.Pouco depois levantou-se e disse que tinha de ir.Já sabíamos todos. Porque a mulher estava sozinha e tinha frio. Ele tinha saído de casa, diziam que ia chover, tinha vindo sozinho. Teria dito à mulher, "Eu venho cedo, não te aflijas." E a cara dele encerrava um certo desespero, que agora sabemos que era da solidão e do frio da mulher, em casa, sem ele. Não vai ser fácil esquecer a beleza que o senhor Bandeira lá levou.Não é só literatura, poesia, teatro, pintura, futebol, fado, Fátima, dor, riso, memória, nostalgia, portas, janelas. É tudo isto e muito mais do que isto.É uma questão física. Chama-se rebentamento do coração. Como é que aguentas, Carlos?Dizes à Clarinha - este nome literário, como Jacinto - que eu sei que ela não se chama Rita e que eu, verdadeiramente, não tenho cérebro de peixe, mas gostava? 
PG-M 2013a fonte da imagem dupla das pintoras é estaa foto do quadro de Elisabeth Leite é de Nuno Sacramento, aquias fotografias do José Ferreira, do Professor Cleto e do livro com autógrafo em fundo são da Rita Oliveira
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Published on November 03, 2013 09:45

November 2, 2013

Apoplexia Mariana em Ovar

Não adianta sugerir sinónimos. A Mariana chama apoplexia ao que a move. Não é comove, é move, à americana e à portuguesa, ao que não deixa nos ficar no mesmo lugar. Falou da apoplexia depois dos livros, do rectângulo que qualquer realizador de cinema forma com a alma antes de o fazer com as mãos para imaginar um plano. A Mariana leu nove livros nas férias, mas é que leu mesmo, a forma eléctrica de ela falar é o que a literatura é e como deve ser explicada, a Mariana serve-se dos livros para se empolgar e para empolgar os outros. Até me disse que ficou entusiasmada com aquele que estava em cima da mesa sobre 11 de Setembro. Ah, mas esse fui eu que escrevi, Mariana, disse eu. Pronto, não importa, parece interessante, responde a Mariana com naturalidade. Pois não importa, Mariana. Importa o livro, não quem o escreveu. O escritor é sempre pequeno. E em Ovar foram dezenas - não queria arriscar a centena, mas multiplicando as filas pelas cadeiras da frente (Cfr fotografia infra) andou lá perto - a testemunhar a minha pequenez e a compor o magnífico auditório (o melhor que já vi em ambiente escolar, e capaz  desuperar a capacidade equalidade de muitos teatros) da Escola José Macedo Fragateiro, que resolveu celebrar esta não-feriado do 1 de Novembro a aturar-me na qualidade de escritor. A Mariana era uma das jornalistas do Jornal Escolar Trincacevada (que grande nome!), todas meninas muito interessadas com perguntas bem colocadas, como a Catarina e a Filipa, sob a batuta do presciente e sabedor professor Hélder. Antes a sessão tinha começado comigo muito sozinho em cima de um senhor palco a tentar fazer conversa. Antes ainda com uma grande recepção do Hugo, um aniversariante do 11 de Setembro, e amigos, no exterior da escola, que me olharam com aquela curiosidade que nos faz sempre hesitar e perguntar se estaremos à altura dela. Mimo foi o que veio da directora Cecília, tão parecida com a minha avó Belinha, e das professoras Alda, Graça, Rosário e Clara, este nome literário que eu tenho de usar um destes dias. O professor Luís Tarujo salvou a honra dos grunhos heteros, um dos textos que eu ofereci à escola, e que ficou (mil perdões, professor) na dedicatória. E mesmo muito sozinho e distante em cima de um palco grande, toda a gente esteve perto e eu fui chamando os que se iam destacando na plateia. Hoje percebi que não é preciso grande diálogo ou vocação oratória se estivermos sempre atentos ao palpitar da sala. É curioso como há textos que funcionam de forma tão diferente em cada lugar e tempo. Nada substitui, contudo, a absoluta virgindade dos olhares, mesmo entre os aparentemente mais sabidos, ou principalmente neles. Tive como leitores de fragmentos um outro Hugo, o primeiro a deixar fugir uma esperteza, a Sara-directora-de-turma e o Hugo-aniversariante da recepção inicial. Como fotógafo (que promete, pelo que já vi), o Filipe Rilho, que hei-de trazer a todos os lados virtuais, como costumo dizer. E na discussão sobre a pena de morte o Pedro, o Gonçalo, o André, o Leandro e um professor muito desconfiado e irredutível na defesa da pena de morte que encerrou a sessão chamado ao palco com uma ovação para dizer "os meninos estão inquietos para sair", ao que os meninos responderam com riso e recusando debandar. Podia ser melhor? Não. Sobre o stress pós-traumático e de como um homem crescido treme com as histórias do 11 de Setembro, um muito focado João. O núncio portador dos livros foi o caríssimo Professor Cleto, director do Museu de Ovar, hoje meu anfitrião. E como estas não foram as únicas pessoas que me marcaram hoje - estou agora a lembrar-me das meninas dos cadernos, uma era Fabiana, não sei se era a ruivinha, como eu gosto de autografar cadernos de português! - podem imaginar o que acontece a um escritor, mesmo pequenino, como eu, cada vez que entra numa escola. Esta de Ovar, além de bom café e de se notar que é muito ciosa do seu nome antigo (agora querem chamar-lhe agrupamento-de-qualquer-coisa), teve um acolhimento que, a um tempo, é familiar, e a outro abrangente: um verdadeiro abraço - por gasta que esteja a palavra, não está o acto. Fica a gratidão deste vosso servo. A Ovar volto de certeza.


PG-M 2013fotos de Filipe Rilho
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Published on November 02, 2013 05:03

October 31, 2013

Perdi um poema

 Aviso importante: perdi um poema que tinha passado pela minha cabeça sem chegar ao coração e daqui à corrente sanguínea que o comunica à boca ou à ponta dos dedos. Não tirei notas, e mesmo sabendo que os poemas que se perdem assim não são para ser escritos, só agora me apercebi de que o tinha perdido e isso provocou-me um certo mal-estar. Perdi-o no centro da vila, e como agora estou na praia, não é raro os poemas que eu deixo fugir escorregarem pelo empedrado os dois quilómetros que separam o centro da praia, principalmente quando chove. Mas já estive a olhar fixamente para a areia e não o vejo em lado nenhum. Há um vulto, contudo, talvez o vulto de um verdadeiro poeta, coisa que eu nunca serei. Aprendi a escrever poesia na oficina do meu bisavô, enquanto esperávamos um carburador novo para o Camaro e ele me dizia para dar à chave, Dá à chave e acredita, filho - os avôs chamam filho a todos os jovens duas gerações abaixo - e eu tentei, mas só me saíram uns versos e o Camaro ficou no mesmo lugar. Agora o carro já funciona e acontece-me muitas vezes ouvir dizer poemas que eu queria ter escrito. Quando sou eu que os escrevo não tenho certeza nenhuma e duvido deles toda a vida, porque têm falta de tempo no corpo. Mas quando os leio no verdadeiro poeta, fico apenas feliz e sem tormenta. Pode ser que aquele vulto me traga o poema de volta daqui a muitos anos. Sem esta tormenta. Espera. Sentou-se e está encolhido sobre si, com as mãos ao centro, sobre os joelhos, que juntou. Pode estar a escrever. Vou deixar lembrete. Procurar poema perdido no dia de hoje, cinco décadas adiante. O Camaro já está em segunda.
PG-M 2013
* para quem é fã da série "Lost", fica o desafio: quem protagonizou o episódio do Camaro? :)fonte da foto
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Published on October 31, 2013 06:56