Pedro Guilherme Moreira's Blog, page 39

August 10, 2013

Abrando



Abrando aqui quase todos os dias, neste café, à espera de alguém que depois levo para casa e assim fica o dia dividido em dois, do lado de cá a separação e a solidão (a solidão boa, deus me livre da outra, que quando me tenta visitar eu espanco com palavras bonitas) e o trabalho antes do lado de lá, o regresso aos meus, a reunião. Gosto de vir a este centro de lojas, gosto de passar pelas pessoas e de vê-las passar por mim, gosto de me encostar aos vidros dos elevadores e de entender os corpos num esforço de adequação ao espaço e os olhares num esforço de adequação ao silêncio, chego e peço sempre um café comprido com adoçante e um copo de água e abro o portátil e arranco a música nos ouvidos e, quando não tenho tempo para trabalhar mais um bocadinho, escrevo coisas assim. Tenho andado com a literatura à cintura, como uma daquelas bolsinhas fora de moda, tenho andado mais calado do que falante, mais com os dedos em suspenso sobre o teclado do que caindo sobre ele, tenho lido tanto, ouvido tanto, olhado tanto para as pessoas que passam para as cidades delas, para os momentos delas, tenho conhecido tanta gente sem livros e de rebarbadora e de cana de pesca e de chave de parafusos na mão a quem falo sempre de livros, elas perguntam o que é que eu faço e se eu digo que sou advogado sou consultado, se digo que sou escritor sou olhado de lado, uns sorriem, outros continuam como se eu não tivesse dito nada, e eu vou falando do que está dentro do livros e depois à noite aproximo-me da mancha do meu filho, que é o bastante para o reter, e penso que sempre que ele escreve, e é quase nunca, escreve melhor do que eu e então pergunto pela literatura que eu quero para ajudar a levantar aquelas rebarbadoras, aquelas canas de pesca, aquelas chaves de parafuso, porque eu sei que há livros para nada mas tenho a certeza de que há livros que são tudo e sei, hoje sei, cada vez mais sei, que tenho de comunicar a literatura para dentro daqueles olhos duros e daqueles corpos doridos, fazê-los parar e escrever no ar para eles, pegar nas frases que já estão feitas e os confortam e tirar-lhes um verbo, aplicar-lhes uma luz, um cheiro, um botão, um barulho que os faça acordar durante alguns segundos e depois voltar à função e levar na boca, para o café, para este café, umas horas mais tarde, a inquietação que eu lhes dei, como eu trago tudo deles para aqui, que nunca nenhum me provocou o tédio que me provocam as pessoas importantes todos os dias. Estamos perto, estamos perto, filho.
PG-M 2013fonte da foto
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Published on August 10, 2013 05:27

Vai deitar-te


Ai as madrugadas, as madrugadas redundantes

PG-M 2013
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Published on August 10, 2013 05:10

Melodrama


O que eu penei ao som desta música, Midnight Blue, dos Dreamers. Penei, literalmente, o meu primeiro amor, a Carla dos Carvalhos que fugiu para a Maia e aos 15 anos a ponte da Arrábida passou a ser o abismo que me separava do El Dorado. Pensei em fazer locuras (querendo isto dizer apanhar uns quantos comboios e autocarros e procurar por ela, porque ainda não havia metro), mas entretanto comprei este 45 rotações e, de pé, encostado ao gira-discos do meu pai, sem lágrimas mas com cinco toneladas e meia no peito, uma sensação nova porque o meu peito só pesava meia, tentei entender o que era a paixão com um gesto mecânico de regressão da agulha para o princípio do disco de três em três minutos. Sofri algum tempo e veio o estágio - nos Carvalhos - da selecção nacional de voleibol, juvenis, e eu parti um pé entre treinos e apaixonei-me por outra miúda na sala de espera do hospital. Deixei de ouvir este disco. Até hoje. Esta nova miúda, uma andebolista também com alguma coisa partida, era de Vila de Conde e lá estava outra vez a ponte da Arrábida como fosso. Eu já tinha um amigo de dezoito anos com um pai que tinha um stand da jaguar e sentia-me culpado por gastar tanto dinheiro aos meus pais em chamadas interurbanas. Um dia consigo que me autorizem um passeio num velho jaguar branco com o meu amigo. O plano secreto era, obviamente, surpreender o meu segundo amor. A única referênca que tinha, ironia das ironias, era a rua e a matrícula do carro do pai dela, que estava sempre parado à porta de casa, dizia ela. À chegada a Vila do Conde, pela nacional treze, havia uma fila de carros que nos obrigou a parar o jaguar na berma. Eu e o meu amigo fomos espreitar e o carro branco despistado ao fundo da valeta tinha a mesma matrícula que eu tinha memorizado como sendo a do carro do pai dela. O meu amigo conseguiu que eu, desesperado, não descesse a encosta, onde já estava muita gente para ver mortos. Afinal foi só um. Um morto confirmado, uma menina de quinze anos, e um ferido grave, que sobreviveria para viver o seu inferno, porque era pai dela. Desde esse dia que eu deixei de temer o sofrimento extremo e de aceitar o impossível. Isto é má, muito má, literatura, mas é a verdade, e eu nunca conto a verdade quando escrevo. Entro por ela. É a primeira vez em trinta anos que conto esta história publicamente. Tempos houve, tal o sofrimento, em que os factos desapareciam da minha memória e reapareciam como ficção e eu perguntava ao espelho se tinha sido verdade. Hoje sei que foi verdade e finalmente percebo que o tempo funciona, mas para uma coisa destas leva, seguramente, uns bons trinta anos. É uma história absolutamente melodramática que nunca poderia caber na literatura. A ficção acabou. Ainda bem.
PG-M 2013...ou melhor...PG-M 1984
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Published on August 10, 2013 04:58

August 9, 2013

Não perdoarei, Urbano, cada dia sem ti

 Não perdoarei, Urbano, cada dia sem tiDo amor, da literatura, da coragem, da simplicidade, da serenidade com os pares, do abraço aos novos, da humildade, do acolhimento crítico. Não sei se havia um único assim. Se houve.Não é a morte, é o meu plano de vida.Ao e do meu blogue, claro que trago, tarei sempre, o que tive do Urbano. Abraço, Urbano. 

PG-M 2013
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Published on August 09, 2013 20:45

August 5, 2013

A janela redonda de Al Berto

Estas são as frases que me cabem no processo secular de desmaterialização e ascensão de um contemporâneo a mito. Pressinto que - embora historicamente implicado e demasiado perto - os anos oitenta do século vinte foram os anos de implosão, depois de ter explodido a condição humana na sanduíche das duas guerras com recheio de grande depressão, depois de ter explodido o sexo nos anos sessenta e setenta, a estética dos anos vinte aos anos setenta, todas as correntes artísticas até aos anos setenta, todo o mundo e todo o século implodiu nos anos oitenta: a indeterminação estética que ainda hoje nos faz sorrir, tão rica e diversificada que hoje nos devolve todas as modas a pretexto de regressos nostálgicos que são um pouco mais do que isso: nós, que os vivemos, e as novas gerações, que os não viveram, adoptam os oitenta sem vergonha e até com voracidade. Implodiu a liberdade sexual com a SIDA e implodiu a homofobia. Claro que não se advoga aqui que nos curámos de todos os sintomas: o ser humano e o mundo que deturpa para si tem tendência a adaptar-se e a ser ecléctico. Convoco a homofobia para voltar à célebre sessão de leitura da poesia do Al Berto pelo próprio no início dos ano noventa no bar Dom Dinis, e que nos voltou via youtube (aqui) de uma forma assombrosa, como se tivéssemos viajado no tempo, eu que precisava de saber o que afinal se tinha passado lá dentro quando vi os meus amigos sair esbaforidos do Dom Dinis dizendo que o Al Berto tinha sido insultado por um grupo de putos que não o deixaram ler a poesia. E devolvido os insultos. Ele não era realmente popular entre os estudantes universitários, fechado, diferente, pouco simpático, mas essa violenta noite despertou em mim a curiosidade de o seguir vida fora, apesar de tudo. Essa adopção literária não culminou na sua morte, mas na publicação dos Diários do Al Berto pela Assírio & Alvim, e nas longas sessões de leitura da primeira parte dos ditos na Almedina do Arrábidashopping.  Em particular as páginas escritas na Rua do Forte, em Sines, a olhar pela janela e a ver o mar, ou a não abrir a janela porque tinha muito frio e se sentia febril e doente, porque tinha muitas dores ou estava deprimido, para depois a voltar a abrir num dia azul, perfeito, descrevendo o movimento de barcos no horizonte ou o minimalismo da neblina e as pinceladas fantasmáticas que só os seus olhos viam, e quando o Al Berto dizia que ia apanhar o expresso para Lisboa eu só desejava que ele voltasse à Rua do Forte e àquela janela, que voltasse a sentir frio, calor, excitação, exaltação, depressão, que voltasse ao que o mar lhe devolvia, às gaivotas, aos barcos, ao sofrimento, à esperança. Com a ajuda da jornalista Raquel Ribeiro, que tem os seus laços com Sines e com o trabalho que fez sobre o Al Berto, descobri o lugar exacto dessa minha memória literária. Ia em família e pedi para me deixarem sozinho ali, enquanto esperavam pelo péssimo e caro (Al Berto teria dito assim) arroz de marisco do Varanda do Oceano, que terá tido melhores dias. Foram quinze minutos encostados à janela redonda, que fica ao nível do rés do chão: foram literariamente perfeitos e, por mais que eu saiba que não foi assim, ou pelo menos não foi sempre assim, para o Al Berto, a morte, a desmaterialização, a excelente edição dos diários com o toque da poetisa Golgona Anghel, fizeram o Al Berto subir, definitivamente, à condição de estrela, a tal que Saramago dizia que à terra pertencia. Eivo agora este texto das imagens que Al Berto via, tomadas com o cotovelo encostado à moldura da janela redonda da Rua do Forte. E embora fosse melhor que Al Berto cá estivesse, qualquer escritor aspira ao leitor que o tenta sentir desde dentro e através dos tempos. Assim. PG-M 2013
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Published on August 05, 2013 11:51

August 2, 2013

A mais bonita do mundo inteiro


Ela pinta-se como um vampiro. Ela pinta-se como um palhaço. Ela pinta-se como um junco quebrado.
Esta manhã ela não abre os olhos, dissolve-se na luz e na sombra, as longas pestanas são facas afiadas e pingam.
Esta tarde ela nasce para o mundo e morre para dentro.

Pinta-se como um vampiro.
Os cabelos são pretos e escovados maquinalmente pelo próprio espelho, alquebrado.
O camarim sufoca e ela vem fumar fumo puro, enche os pulmões de grama branca quase líquida e expele os compostos da existência.

Está pronta. É a mais bonita do mundo inteiro.

Ouve melodias elegíacas que a elevam acima da atmosfera terrestre.
Pressente sempre a queda quando passa do topo. Nada pode ser perfeito. Ninguém pode estar limpo.

Pinta-se como um palhaço.

Os cabelos são pretos e escovados maquinalmente pelo próprio espelho, alquebrado.O camarim sufoca e ela vem fumar fumo puro, enche os pulmões de grama branca quase líquida e expele os compostos da existência.
Está pronta. É a mais bonita do mundo inteiro.
Procura música afiada, algo que não suporte, que a corte ao meio.
É um hexâmetro e um pentâmetro alternadores.

Pinta-se como um junco quebrado.
Parte abraçada ao LaFontaine, no colo do Casanova, às cavalitas do Rimbaud mas o Rimbaud é frágil e cede, tem doze anos ela quarenta, ela nunca gostará de poesia, ele deixará de a escrever. O Casanova levanta-a nos braços ela desfaz-se outra vez, agora vai a pássaro e ergue-se mulher porque as asas

a percussão na orquestra a afundar a elegia
és um junco quebrado

Os teus cabelos pretos e escovados maquinalmente pelo espelho alquebrado.O camarim  a sufocar-te e tu a vires fumar fumo puro, tu enche os pulmões de grama branca quase líquida e expele os compostos da existência.
Estás pronta. És a mais bonita do mundo inteiro.
És mesmo a mais bonita do mundo inteiro e nunca o saberás.Carl Sagan toma o teu exemplo contra as estrelas e consegue explicar aos demais a teoria gravitacional de Le Sage.
Casanova tem fama e proveito e vastos conhecimentos, tão vastos que envergonhariam qualquer autor entre nós, está em modelo redux como o paradigma da masculinidade. Ela despreza-o profundamente.
Hoje não se pintaainda que o mundo caia para dentro de si e sem maquilhagem
Está pronta. Invoca ritos selvagens. É a mais bonita do mundo inteiro.
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Published on August 02, 2013 18:59

As palavras têm um corpo móvel


As palavras têm um corpo móvel e um dia são doces e no outro amargas e tu tens um corpo móvel e um dia és doce e no outro amarga e tu e as palavras têm corpos móveis e um dia eu digo-te coisas doces e tu amargas e no outro coisas amargas e tu adoças e no outro coisas doces que te adoçam e hoje serão coisas amargas que te amargarão mas amanhã é outro dia e as mesmas palavras e os mesmo corpos vão mover-se uns sob os outros até encaixarem nas frases que eu, se estiver atento, saberei dizer
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Published on August 02, 2013 16:13

Não te rendas



Não te rendas

(nem deixes que te inibam as coisas leves ou te imponham as pesadas, não rias contra ninguém nem chores só por ti, usa o sofrimento como atalho de lucidez e não processes a maldade ou o egoísmo alheios como matéria prima de uma vingança do nada e lembra-te de amparar a mediocridade com conhecimento sem lhe virar as costas)

Não te rendas

(serás mais completo se esperares menos de todos e te cercares dos melhores, mortos ou vivos, para que os piores se espantem como tu)

Não te rendas

(e toma tempo para gostar e para entender o desgosto, para o acolheres como ponte para um dia melhor quando fores maior porque não te rendeste nem te desgastaste a desgostar)

PG-M 2013
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Published on August 02, 2013 15:42

August 1, 2013

Prognósticos só amanhã


As melhores ideias do homem e da mulher do presente servem apenas a esperança dos pares, mas o poder só as incorporará amanhã, como o poder de hoje se rege pelas ideias sedimentadas de ontem. A mudança dura gerações, não dias. As sentenças dos comentadores do mundo são sempre, quase sempre, o fingimento da sabedoria. E a garantia do pequeno poder.
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Published on August 01, 2013 17:38

July 31, 2013

O senhor dos aflitos de Valadares (Gaia)

Procissão, no primeiro domingo de todos os julhos:
















Fotos PG-M 2013
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Published on July 31, 2013 07:51