Pedro Guilherme Moreira's Blog, page 35

January 2, 2014

Três

  Lisboa é mulher e o Porto, claramente, homem. Têm mais ou menos a mesma idade cósmica e aparecem como os melhores do mundo em várias montras internacionais.E se os casássemos (uma com o outro, claro) num templo vimaranense, os obrigássemos a passar a lua de mel de Caminha a VRS António e erigíssemos uma país novo nessa aliança? (Bora lá?)    PG-M 2014fonte da foto de Lisboa fonte da foto do Porto
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Published on January 02, 2014 08:01

Dois



Sobre os balanços:Já me viram bem a andar? Tenho quase dois metros e cento e vinte quilos - tinha cem quando era atleta, no voleibol (que eu amo irracionalmente) diziam-me que tinha perfil de jogador de râguebi, eu retorquia que os jogadores de râguebi também voavam, e foi assim que danifiquei pisos de pavilhões, excepto o de Oliveira do Douro, que era de cimento. Mas já me viram bem a andar? Eu já balanço tanto, que na altura de fazer balanços tento é ficar quieto. E a minha quietude diz-me que o ano que passou me trouxe, acima de tudo, o teatro. O teatro da fome e o teatro da escrita. Acabei o ano com duas pessoas brilhantes como íris, e tenho na retina dezenas de sorrisos bonitos em corpos pardos que defendi enquanto advogado. Quase todos os pobres têm televisão por cabo. Alguns têm sport tv e carro. Muitos deles têm cozinhas onde não pousa uma mosca, porque serve para receber as pessoas, e a comida faz-se num pátio ou numa marquise. Estes habituaram-se a viver com pouco e estavam já musculados quando a crise chegou. Já os que tinham mais e perderam quase tudo andam aflitos e sem treino de pobreza. A miséria, essa, já lá estava e ainda aqui está. As festas foram boas para anestesiar, mas, verdade seja dita: os pobres musculados não foram ensinados a sorrir, e é tão difícil evadirmo-nos com eles, mesmo com sport tv, que eu gosto de levantar a névoa dos que perderam quase tudo menos o sorriso e algumas gargalhadas. Mesmo que seja difícil tirá-los da toca, porque o primeiro sinal da pobreza envergonhada é o desaparecimento do mundo. E, como eu balanço tanto a andar, a energia dispendida não me deixa espaço para queixas. Por isso esta história da vergonha e dos sorrisos não foi um balanço. Sou só eu quietinho. Quando nos cansamos tanto a viver, é fundamental parar muitas vezes, e a cada paragem uma gargalhada, e como o riso engana o mundo, o mundo acaba - instintivamente - a rir de volta. Há menos fome com menos balanços e mais gargalhadas. Como o palhaço que tinha uma placa pendurada ao pescoço que dizia "pf não me chamem primeiro-ministro". Ou o Calvin a dizer para o Hobbes: "A partir de hoje tenho um novo lema: "Que se foda!"; e pergunta o Hobbes: "E não é um lema um bocado forte?; e responde o Calvin: "Que se foda!"
PG-M 2014(a foto é nos Carvalhos, em 1986, e eu a voar como um jogador de râguebi:)
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Published on January 02, 2014 07:41

Um

 Não estou a dizer que esteja mal.
 
Não está mal ligar o facebook e ver a representação plástica das passagens de ano de amigos, conhecidos e desconhecidos-amigos.
Porque não passamos disso: artistas plásticos da nossa própria vida.
Não é pelos "selfies" no ângulo certo.
Há "altries" mais redutores do que alguns "selfies" - tem até um certo encanto olharmo-nos uns aos outros de tão perto. Mesmo os que, entre nós, passaram o ano desligados, chegar a casa e ver passar galerias pessoais é uma ocupação melhor do que ver um filme vazio. Ou mesmo cheio. Há mais noites para se ser passivo em frente à televisão, o que também pode ser uma bênção. A hora estúpida, a derrama do cérebro (não disse derrame, não). É mais reconfortante ver as pessoas passar, umas exaltando-se, outras apoucando-se, umas exaltando-nos, outras apoucando-nos, umas tão vazias como a televisão, fotografando-se toda a noite, noite que passam a olhar para estes ecrãs ou mais pequenos, enquanto se fingem felizes ao som da própria playlist.
 
Normalmente também empatizaria com algumas dessas pessoas e a sua solidão barulhenta. Empatizo com quase todas, aliás, excepto algumas, poucas, cujos ecrãs apontam sempre para si próprias.

Não fazem o velho exercício do funeral: não adies o encontro com uma pessoa ao funeral da qual sabes que irás - aquele dia atarefado, as horas que não esticam, o café sempre adiado. Há grandes "amigos" que nos estão sempre a adiar, e talvez essa seja uma boa resolução de 2014, uma resolução de efeito nulo: deixar de ter a iniciativa de ir ao encontro dos que nos adiam. É de efeito nulo porque eles também não viriam, nunca vêm.
 
A segunda e última resolução de qualidade é não perder tempo com filhos da puta. Essa só pode ser executada por quem tenha dobrado o equador da vida ou esteja em posição de implementar essa navegação: há muitos cujas vidas continuarão a ser pautadas por filhos da puta todos os santos dias, todo o santo dia. Há, note-se, uma filhadaputice transgénero, ou seja, que coexiste em gente que é metade boa, amistosa, dedicada, e a outra metade vendida, fraca, cobarde. A esses silenciosos comparsas caberá, também, o prazer de não mais terem de se preocupar connosco. E até pode ser gizada a primeira resolução para 2015: perder algum tempo com gente de fibra que se afastou por equívoco. Animem-se: são tão poucos que o sucesso é garantido.
 
Mas também é hora de fazer o balanço de quinze anos de presença online dos que, como nós, os quarentões, viveram dois terços da sua vida desligados de redes universais. Não me parece relevante convocar a saudade de passagens de ano em que ninguém estava a olhar pelas pequenas janelas dos seus telemóveis e computadores para outros lados, e em que, ou se assumia o tédio, ou se voltava para o parceiro de mesa e se conversava, ou se ajudava com os tachos e com a louça. Não. O mundo mudou, agora temos mesmo de conviver com pessoas que têm uma sempiterna extensão do seu próprio egomundo. Não é uma extensão da sua vida, mas do mundo que construíram para si e neste século, cada vez mais, cada um constrói um mundo seu, com pessoas suas, à margem do quotidiano e da família. Não que esteja mal em si. O mal ou o bem, o mau ou bom, vai sempre da medida.

O que me parece relevante é o que eu retiro de quinze anos de presença online.
A sexualidade tornou-se mais fácil e a hipocrisia mais difícil.
Há uma realidade a que chamaram parcialmente de sexo virtual, e que não passa de masturbação regular, e cujo peso específico e relevância para o mundo ainda está por medir. Não falo das relações amorosas ou sexuais consistentes que se desenvolvem com o apoio do online, são reiteradas e muitas vezes extravasam os algoritmos.
Falo de um acesso consciente à sensualidade ou até, apenas, a uma empatia intensa, a meros jogos de palavras ou de posturas, muitas vezes uma mera conversa que segue caminhos só possíveis quando ambos os inerlocutores estão velados, e que não envolve relações: todos falam com todos a todas as horas do dia, e falam de coisas de que muitas vezes nunca falariam, com as mesmas pessoas, na rua ou no café.

Para quem acompanhou o nascimento desta nova forma de comunicação, se assombrou, experimentou, estranhou, sem nunca castrar ou se castrar e estando apenas atento e pronto a acolher o que lhe era trazido, as conclusões são, não perturbantes, mas relevantes e contundentes.

O acesso à hipocrisia, à perfídia, à mediocridade, é muito mais rápido, mas também o é o acesso à excelência, até porque a excelência, seja científica, seja apenas cultural, raramente é comunicada em encontros coloquiais ou à mesa de um café.

É verdade que o preço a pagar é alto. Mas, no fim de uma noite em que começa um novo ano, apetece-me saudar os novos amigos que me apareceram por esta via.
Não são muitos, é verdade, mas cada um é mais sólido do que qualquer um dos anteriores, os tais apenas da vida real, e que muitas vezes foram perdidos, e depois achados e novamente perdidos, também por esta via.
E também saúdo essa nova amplitude da sexualidade, parece que as pessoas ficaram maiores e, por incoerente e irónico que pareça, se "tocam" e "deixam tocar" com mais facilidade. Essa amplitude é decisiva na comunicação humana, ainda que também se pague com equívocos. Nenhum equívoco, porém, pode fazer esmorecer os homens e as mulheres de boa vontade. E é com eles que celebrarei este 2014.

É preciso mover, comover, esses corpos estão prontos.

PG-M 2014
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Published on January 02, 2014 07:23

December 31, 2013

Lacerdiana



Lacerdiana: peça de teatro em forma de monólogo em que o dramaturgo se serve de um actor ou actriz como objecto ou tema. Idealmente, o actor ou actriz são o fundamento ou ponto de partida, fundamento esse retomado a cada quinze anos. As mais comuns são as lacerdianas 18 (o actor ou actriz deve ter cerca de 18 anos), lacerdianas 33 (a idade de Cristo), lacerdianas 48 e lacerdianas 63, sendo menos frequentes as restantes. Como é muito difícil que o dramaturgo tenha acesso ao mesmo actor ou actriz de quinze em quinze anos, o objecto muda frequentemente, não se conhecendo uma único caso em que o actor tenha sido o mesmo em todas as lacerdianas, necessariamente o escopo fundador do "inventor" desta formato, Pierre Guillaume. A primeira lacerdiana conhecida teve a sua primeira representação, pensa-se, faz hoje precisamente cem anos, 31 de Dezembro de 1913, no Théâtre Inez de Castro, em Nouvelle Ville du Callem. Foi uma lacerdiana 18, e a actriz que serviu de inspiração foi precisamente a conhecida Mademoiselle Lacerda. O nível de ficção desta entrada de dicionário prende-se apenas com a data da primeira representação, que é imprecisa e carece de provas mais cabais. O restante, contudo, está objectivamente comprovado e é fiel aos seus protagonistas. A lacerdiana é formalmente estimulante para todos os dramaturgos, embora extravase as fronteiras do teatro clássico e a própria posição relativa dos elementos em jogo. Para a celebração dos cem anos, vários dramaturgos - temos nota de pelo menos um - escreveram lacerdianas, sendo a mais conhecida em Portugal "Ekaterina sobre tudo" - uma lacerdiana 18 - elaborada, curiosamente, por um descendente português de Pierre Guillaume e cujo objecto é uma descendente portuguesa da Mademoiselle Lacerda. É inspirado nos clássicos russos. Espera-se encenação e representação nacional nos próximos cinco anos. A expectativa é grande. Não são previsíveis pateadas, como na Soror Mariana, mas Almadas há muitos. Entretanto, em Março de 2014 volta o Turismo Infinito ao Teatro Nacional São João, no Porto, logo seguido, precisamente, de Al mada nada.
PG-M 2013fonte da foto
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Published on December 31, 2013 15:48

Tu


só uma coisa me interessa: tu
só uma não-coisa me interessa:
tu
verifico-te desde a lua e o planeta é todo
tu, ou seja,
está cheio de matéria negra e estrelas,
tu,
tu à volta e tu por dentro

um contínuo sempre igual, sempre infinito

ou então estou cego
ou então vejo demais

isto não é um poema, és tu,
é uma maneira de te arrumar
de te sobreviver

de não te ver

PG-M 2013
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Published on December 31, 2013 15:08

December 26, 2013

Diálogos com o Atlas, PIM! (I)

 Consequências graves da consoada nas ideias e no mundo: o diálogo com GMT e o seu Atlas. Que saudades, meu caro Gil Vicente!
- Novo: o acaso do fio de um metro de Duchamp - se largarmos um fio de um metro ele cairá formando desenhos sempre distintos. Todos eles medem precisamente um metro e afrontam os conceitos preexistentes da ciência e da forma de medir. A medida do meu raciocínio é muito mais parecida com o metro de fio depois de cair.- Reencontro: descubro que o que sempre pensei, que a cronologia das ideias é hoje irrelevante quando trasnportamos a Bíblia e o Quixote e este Atlas bem juntinhos: séculos de ideias lado a lado e justapostos no espaço e na consciência de quem os lê. Hannah Arendt tratou e desenvolveu esta abordagem de Jaspers. Saudades destes diálogos, que não tinha desde que eu e o Gil Vicente nos separámos no espaço. Não o dramaturgo, o amigo. Que é bem melhor e maior.
Passaram vinte e cinco anos, caro amigo, e nós pensamos que somos os mesmos.
Se nos tivessem falado do conceito-vírus do Wittgenstein teríamos dito "é isso, é isso". Sim, nada de conceitos fechados e duros. O que está resolvido exclui o andamento e, em grande parte, o pensamento. O conceito deve ser aberto, dinâmico, produzir-se enquanto é discutido. É a teoria do jogo dinâmico de Gasset. O investigador está sempre perdido, ainda que se fortaleça pelo caminho. A Llansol escrevia sempre coisas  bonitas: "Dizer o que é, é ver." Não se trata de citações, mas de excitações, anos a pensar selvaticamente que agora se reencontram e nos amparam.
É precisamente a convicção da impossibilidade de fecho, de os escritores, como os filósofos, terem de começar qualquer discussão deixando claro que não têm razão (Adorno). A ração diária de erro do Carlos Drumond de Andrade: neste meu (nosso?) livro novo, o que vai sair em Março, decidi escrever que um guarda-chuva tinha uma haste partida. Não disse "a" haste, mas "uma" haste. Em rigor, haste é apenas o suporte central do guarda-chuva, mas há quem chame hastes às varetas. Eu quis induzir o leitor no dinamismo da dose diária de erro do Drumond e escrevi "uma" haste, remetendo para uma tempestade de ideias, como nos versos. Seria uma vareta? Seria o tronco central? Quer isto dar forma humana à frase, algo que o dono do guarda-chuva, e não o próprio objecto, tinha por resolver? Ou era apenas uma vareta? Eu podia ter escolhido "a" haste ou "uma" vareta. Mas aí estaria fechando a frase. Às vezes é preciso fechar as frases, mas nunca podemos fechá-las a todas, como dizia o Almada do Dantas Pum! Temos de deixar portas para que o leitor entre e saia, janelas para arejar, pontes para saltar.
Os melhores diálogos são aqueles em que nos afastamos do centro e navegamos à vista das margens do outro. Devemos investigar, buscar o que não está dito, mas, se não somos definitivos nem temos conceitos e pensamentos fechados, também não podemos exagerar na proposta alternativa: se perdemos totalmente o outro, o diálogo deixa de ser possível. Quantas vezes encontramos nos encontros colectivos o tipo que está sempre a desconversar? Isso não é suportável, mesmo no cultivo do humor. Essa deriva é fundamental para que possamos evoluir, mas nunca devemos perder o outro de vista, e os egocêntricos já nos perderam de vista antes de se cruzarem connosco. Esses desconversadores são, acima de tudo, egocêntricos. Ora, se para mim me parece discutível que tenha de haver um centro visível em todas as investigações, quando esse centro é um ego está tudo o resto, todos os demais, excluído(s).
É por isso que tendemos a rejeitar os "sentenciadores", e a sentença é o primeiro sintoma da medocridade ou da escalada social ou cultural, mas também o que distingue os sábios dos logros: não deixar abertura, inexactidão, para o interlocutor/ leitor explorar, pondo-se dentro o fora.
Os posts muito fechados, muito perfeitos, colocados nas redes sociais, tendem a não ter comentários, mesmo que sejam muito lidos e "gostados". Pode ser - como pode não ser - um sintoma. Mas para mim a escrita tem de contaminar, incomodar, varar. Bora lá, Adorno. Três passos à frente, dois atrás. É o Adorno que dá esta ideia da máxima distância entre o que se escreve/ lê/ diz e o que ja é conhecido, mas não tão grande que as duas margens deixem de se avistar.
O Deleuze dizia para não interpretar, para experimentar. Bora lá.
Gosto também da ideia do Wittgenstein de que qualquer pensamento nos interrompe a biografia, nos invade e faz mudar de trilhos. Tenho por aí um texto onde tento surpreender os homens que não pensam exaltando-lhes tanto a coragem como a miséria do vazio.
É este.
E agora vou ali ser exocêntrico, que me faz um bem do caraças.
(continua)
PG-M 2013
 
 
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Published on December 26, 2013 15:18

December 24, 2013

o natal medido no corpo e no pensamento

"Pois metade de mim é o que ouço
A outra metade é o que calo"
 Osvaldo Montenegro ("Metade")  A finitude do corpo e a infinitude do pensamento e do sentimento. Ou a rotação e a translação. Sabemos que o nosso corpo acaba. Não sabemos se o pensamento acaba. Sabemos que o sentimento pode acabar ou propagar-se entre corpos e mesmo para lá deles. Sabemos que o pensamento e o sentimento transcendem a morte. O corpo não. É por isso que tentar encolher o pensamento e o sentimento no espaço limitado dos corpos será sempre mal sucedido. O que pensamos e sentimos, parecendo contido nas nossas paredes, vai muito para lá delas. O natal é um esforço de consciência colectiva, todos os corações de um certo mundo centrados no transtorno do egoísmo travestido temporariamente de altruísmo. Um travão na rotação, para que o pai natal cumpra, uma flexão na translação para que o planeta desalije o peso da ilusão. Os corpos, que acabam, não são reais. Voltam os mortos mais queridos e o pensamento vai descendo e subindo montanhas russas. Há abraços em todas as suas formas. Alguns inimigos cessam. Os amigos prosseguem, menos ignorados. Há mais luz, há mais acessórios, são flagradas todas as manifestações do supérfluo. Até chegar um momento em que todos mirram e o mundo dobra reduzindo o espaço entre as casas. Pairará sobre as mesas de natal, sobre o bacalhau, sobre o molho fervido, sobre o vinho quente com canela e açúcar, um só sentimento. Que é um calor raro ao centro de peitos potencialmente infinitos. Diz-se bom natal e a estrada segue, vagarosa, no regresso a cada planeta.
PG-M 2013
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Published on December 24, 2013 11:23

December 23, 2013

A ampliação das pessoas e a simplificação do mundo



Na última semana - é natal, é o que nasce - tem sido flagrante:
enquanto o facebook se continua a encher de cínicos que nos fazem rir ridicularizando os outros ou expondo a mediocridade como marca - que o é - de um país que tarda em voltar a dominar o mundo pelas vísceras, como fez pelas velas e pela índole desenrascada - chama-se alma -, continuo a descobrir o lastro de pessoas brilhantes que ninguém ouve, e filmes como "Inside Llewyn Davis" dizem-me que sempre foi assim.
Mas não foram só os irmãos Cohen a colocar os actores F. Murray Abraham e Oscar Isaac cara a cara, com este a dedilhar uma guitarra e a cantar "The death of Queen Jane" antes de (ante?) Bob Dylan.Numa conferência cénica no Teatro Carlos Alberto, no Porto, descubro a actriz Margarida Gonçalves, que em poucos dias olhou um trecho do "Filho de Mil Homens" (Valter Hugo Mãe) e vestiu uma anã, mas não vestiu só uma anã, vestiu o lugar dela, os homens dela, vestiu-nos a nós. E eu pensei, como já tinha pensado sempre que vejo actores vestir textos literários: esta mulher fez-se ampliação de pessoa, por momentos olhei para ela e pareceu-me dotada de uma certa divindade, o corpo tanto era irrelevante como central, a expressão comunicava todos os sentimentos que o mundo pode conter, e isto aconteceu apenas em alguns minutos. E pensei que isto pode ser feito com qualquer texto, e não, não é nosso mérito, dos escritores, porque o teatro toma-nos e espreme-nos o melhor, ninguém lê como um actor, ninguém nos lê como um actor.O Luís Puto é um actor. Ninguém lê como o Luís Puto.E todos os que estiveram em palco para nós, dezenas, uns profissionais, outros semi-tudo, outros meros amadores, vazaram ali o sangue a ferver. Como tem de ser.
Entretanto, no facebook, na segunda-feira, descobriram o anúnico sexy de um escritório de advogadas portuguesas. O jovem cínico "A" tocou a sua flauta de bardo e ridicularizou-as e deu uma pândega a "amigos" e "seguidores". A Ordem dos Advogados, com a faltinha de jeito do costume, abre processo disciplinar às colegas sensuais. Na quarta-feira, o mesmo jovem cínico "A" estava a sair em defesa das colegas sensuais que houvera dizimado no seu mural dois dias antes. O jovem cínico "A" fez questão de dizer que, desta vez, estava a falar a sério, que o ouvissem, que o mundo tinha de se levantar em defesa das colegas sensuais. Puta que o pariu. Puta que pariu todos estes cínicos que são incapazes de sentimentos verdadeiros ("sentimentos verdadeiros" é um bom cliché para alimento de cínicos) e se estão literalmente a lixar para todos que não eles.
Paralelamente, acontece-me ler a prosa e a poesia de uma pessoa que nem vinte anos tem, e achar que nunca vi nada assim, que nunca me aconteceu nada assim, a perceber a merda que sou, a merda que faço. Acontece-me conhecer um grupo de teatro de meninos de catorze a vinte e muito  poucos. Ver o modelo falhado de um Llewyn Davis que é o de todos os escritores, pintores, cantores, de todos os autores por mostrar ou mal mostrados, e perguntar se não vale a pena tomar o tempo que nos sobra, ou fazer com que nos sobre tempo, para olhar para o lado. Fugir cada vez mais da pasta indistinta em que se tornaram, por exemplo, dois terços dos blocos noticiosos, que se mimetizam entre si em nome de um bem maior (o patrocinador) - até porque nunca sabemos quando é que o pivô que os trabalhou se vai erguer acima da mediocridade com a sua marca (e ainda os há muito bons).
Não, não me apanham a criticar uma Casa dos Segredos, por exemplo ,excepto alguma inquietude que me provoca a ausência de limites. Prefiro a Bernardina ao Zé Comentador que vai justificar o seu soldo criando tensão noticiosa. E desconfio de quem não sabe quem é a Bernardina - porque não é preciso sufragar a mediocridade para estar atento ao que nos rodeia. Sei que o tema Bernardina é infinitamente mais intrigante do que os esqueletos noticiosos e anódinos da Bárbara e do Carrilho. Como tudo, e embora eu e tantos não sejamos exemplos para ninguém, o indivíduo medíocre masturba-se com os mesmo exemplos que expõe publicamente, trai os seus pares porque não reconhece as próprias limitações, vive alimentado a umbigo porque não tem capacidade para identificar o cotão que se intromete nas fendas dos próprios dentes e que vem do próprio corpo - do tal umbigo que o alimenta. O próprio medíocre é impróprio. As manifestações de rua - a putativa liberdade - são convocadas precisamente pelos mesmos que na semana anterior estavam a acossar o cão para devorar os restos de um amigo em praça pública.
Os benfeitores que levantam uma voz vinda de dentro são destruídos com as mesmas armas que os malfeitores maiores usam contra os malfeitores menores, e vice-versa.
O cavalo de tróia que vai mudar isto continua vazio.
O que sei, e isso aparece-me com uma transparência aterradora, é que os melhores reconhecem-se entre si facilmente, mas têm medo de sair da caverna onde entraram para não serem incomodados. Vão mudar o mundo lentamente, ao longo de gerações, vão contaminar os medíocres e trazê-los para a caverna - calando-os ou reclicando-os.
Uma menina escreve um poema superior e eu, no centro da felicidade, só tenho medo de que ela não pouse, porque precisamos dela no chão, e, se há grandes artista egocêntricos, não têm uma verdadeira utilidade para o mundo a não ser para as evasões de outros séculos. Mas gosto de me sentir inútil por momentos, gosto de pensar que há tantos melhores do que eu, e principalmente descanso por perceber que há quem possa levar o mundo.
Porque às vezes me sinto tremendamente cansado ao lutar contra os gigantes - dizem que são moinhos.
Sei que o verdadeiro amor não se confunde com o plano da arte, mas também sei que o plano da arte admite a invasão do amor (vejam pf o vídeo com que encerro este post: ela é uma "performer" moderna, uma artista, e esta "instalação" é brutal. Ela está sentada durante três dias no Museu de Arte Moderna de NY (MoMA) e  as pessoas vão-se sentando em frente a ela e ela olha-as em silêncio. Agora vejam o que acontece quando o companheiro de uma vida (mas já separado dela há uns anos) passa por lá. Ela não sabia. Talvez não soubesse. Acho que o amor é isto).
E a Magarida, ali no palco, tem um vestido preto largo que é justo, move o corpo e amplia uma pessoa e o mundo é um sumo de laranja.
PG-M 2013fonte da foto
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Published on December 23, 2013 02:13

December 16, 2013

A minha amiga de 44 anos



a minha amiga de quarenta e quatro anos tem
vinte e nove anos e meio
o sorriso de um dia e um riso que
dobra como os que o pai lhe oferecia quando a cingia
no colo e a enrolava nos braços pressionando-lhe
as costelas com os dedos grossos do amor
e o corpo dela se curvava para trás e os olhos
fechados e a gargalhada
infinita

e a palhacinha

que cansada aninha
e dorme

a minha amiga de quarenta e quatro anos não sabe
que está intacta
e pura
e una
no perpétuo nascimento

dos slows de garagem que duram
a eternidade

PG-M 2013
fonte da foto de Cate Blanchett (que tem 44 anos e é a menos bonita de todas, mas nenhuma delas sabe:)
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Published on December 16, 2013 11:56

December 14, 2013

o natal de paloblyk


saiu da garden street
no dia de natal
para comprar um livro
e ler o jornal
e ver no bar da livraria
penelope a tirar cafés
e sobre a mesa o disfarce
the ulysses, la recherche,
el quijote

sempre tem o new york times?
ah, veja aí, por favor
falta a revista
alguém deve ter levado
era um café, então
comprido, como o costume?
tremeu, disse que sim,
maria callas no ar
casta diva, che inargenti
ela tem a minha norma
mas vem trazer-me o café
a pensar, sempre enfadada,


lá está o odioso velho
a olhar,

que desgosto, que maçada.

e então,
solomon paloblyk,

enfermo de um destemperado amor
fora do corpo,
no silêncio intransponível,
degolado, exangue,

manteve a cabeça baixa
sobre a coluna literária
de joyce maynard
e de penelope
só sombra
só cheiro ténue
e voz sumida

só um fendente sorriso miúdo de malha
diáfana

a talhar as vidas surdas
e a varar-lhe o peito

o velho, quando foi pagar,
estava a chorar
uma lágrima vermelha
enfiada na pele áspera
e grossa
como um caco de cristal
e o sangue, claro,
à vista,
como as vísceras
numa nota agreste
do sobretudo
de caxemira

penelope sabia
mas nada disse
por mil anos
ou algo assim
agora não sei
podia ser eu

seminal

no dia de natal 

PG-M 2013
fonte da foto 

post relacionados: A tese de um grande amorA confissão impertinente de Solomon PaloblyK e À(s) mulher(es) desconhecida(s)
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Published on December 14, 2013 03:56