Pedro Guilherme Moreira's Blog, page 24
November 23, 2014
Um clube da má língua
O mal existe como acidente do bem. Ou é o contrário? Ou um é condição do outro? Ou céu e o inferno avançam paralelamente? Ou nada? Está cá tudo, não está? Esta pode ser uma conversa da casa dos segredos ou é mais uma conversa tida nos salões da Maria Alexandrovna Moskalev (do Dostoyevsky) em Mordassov? Ou, afinal, no café do bairro ou aqui mesmo, na rede? De algum modo, quando cá escrevemos, citando ou pensando por nós, achamos todos que encontramos uma luz especial, um brilho especial, que se partilha por sentido de colectivo ou, noutro plano, ostensivamente por exibição egocêntrica. Mas é curioso como, a tentar escrever um livro que queremos menos plano, ou a ler o querido do Fyodor, tudo me parece uma intriga palaciana invertida. Um dia divirto-me a dar título aos novos condes, mas, num certo sentido, e sem com isto defender o desinvestimento no que é importante e o investimento no que é merda, andamos todos, essencialmente, atentos a nós próprios e desatentos aos outros. Gabamos o génio do Fyodor Dostoyevsky a retratar sombras e luzes e achamo-nos a salvo disso quando apartamos a casa dos segredos de nós próprios. Está bem, está. Já aconteceu passarem por uma sombra vossa num qualquer festival literário, ou de música, ou qualquer evento socialmente distinto? O que é que nos distingue? Um coração aberto, meus meninos, porque um coração aberto nunca é o coração das trevas. E, evidentemente, uma só cara. E não é nada fácil ter uma só cara sem perguntar primeiro para o lado, e tu, o que vais fazer, o que vais dizer? É por isso que é sempre menos difícil alinhar na tribo dos que só desdizem e apoucam. Sentem-se a salvo. A salvo deles próprios. E, de vez em quando, percebem que estão, cuturalmente, imersos no próprio tempo e no próprio espaço, por mais que o combatam. No fundo, é tudo papa di kantina.
PG-M 2014fonte da foto
Published on November 23, 2014 10:33
Investigação
Os corpos,
todos os corpos silenciosos,
são mais do que a soma dos seus impulsos
PG-M 2014
fonte da foto
Published on November 23, 2014 10:24
A demarcação impossível do sofrimento
uma chuva ou um vulcão ou uma pinça nas entranhas
a implosão das costelas
um torso a céu aberto
a fúria de um rio bravo a abrir os braços e a galgar as margens como uma manada de búfalos de um só corpo
os indivíduos tresmalhados serão devorados
os sentimentos tresmalhados serão devorados
tristes as almas que evoluem a lamento
lamentáveis os olhos que evoluem a tristeza
e os pináculos do martírio?
e o filho que te arrancam?
vai-te foder tu e as tuas queixinhas de calçada
tu e os teus gemidos de viela
tu e a trela perpétua dos caminhos
o grito é o silêncio
abro a boca com os dentes todos à vista e a língua e a úbula e a traqueia e as cordas que sobraram das forcas e não sai som nenhum
quando vier, começará
sobe o uivo, desce a vingança
puta de vida
PG-M 2014
fonte da foto
Published on November 23, 2014 10:14
ALA que se faz tarde (e há uma Margarida no campo)
Lobo Antunes: "(...) Porque é que a literatura portuguesa é tão má?
Isabel Lucas: É? Lobo Antunes: Não é? Acho que a Ana Margarida de Carvalho fez um livro bom. (...)"
Ípsilon (suplemento do jornal "Público") de 7-11-2014, p10
Um sorriso. Uma epifania. Somos todos uma merda, pá. Somos mesmo. A espaços podemos ser bons, sim, mas temos o tempo de permeio. O mesmo que nos permite olhar para Conrad com algumas certezas. Algum tempo para as apneias da Herta Muller. Para o Lobo Antunes com um misto de respeito e ternura e tanta reverência. Somos todos uma merda, excepto a Ana Margarida, que acabou de ganhar um prémio importante e merece este pedestal, esta semana de glória, este prenúncio do Lobo Antunes, que provavelmente ela sente como tão grande ou maior do que o prémio (eu sentiria). Dois terços de nós são perguntas, o outro terço certezas, nove em dez delas parvas e uma clara, transparente, e só de década a década, ou pelos bissextos, se tivermos sorte, elas nos chegam. O que eu sinto perante o Lobo Antunes é gratidão. Sei que, se eu tiver a sorte de ele um dia pegar num livro meu e uma pedra preciosa brilhar fugazmente nesses olhos profundos, azuis, encantados, uma só frase de milhares que ele passará com enfado, terei ganho um tempo que não é meu por direito. Esta pergunta é um pedido, uma esperança permanente, nenhuma crítica. Que sorte que eu tenho de ser contemporâneo, leitor, aprendiz e ter vindo a ser companheiro de editora de um homem que, sempre que se senta a falar de literatura, nos desmancha e nos chama para a luz. Obrigado, pá!
PG-M 2014
fontes das fotos: ALA e AMC
Isabel Lucas: É? Lobo Antunes: Não é? Acho que a Ana Margarida de Carvalho fez um livro bom. (...)"
Ípsilon (suplemento do jornal "Público") de 7-11-2014, p10
Um sorriso. Uma epifania. Somos todos uma merda, pá. Somos mesmo. A espaços podemos ser bons, sim, mas temos o tempo de permeio. O mesmo que nos permite olhar para Conrad com algumas certezas. Algum tempo para as apneias da Herta Muller. Para o Lobo Antunes com um misto de respeito e ternura e tanta reverência. Somos todos uma merda, excepto a Ana Margarida, que acabou de ganhar um prémio importante e merece este pedestal, esta semana de glória, este prenúncio do Lobo Antunes, que provavelmente ela sente como tão grande ou maior do que o prémio (eu sentiria). Dois terços de nós são perguntas, o outro terço certezas, nove em dez delas parvas e uma clara, transparente, e só de década a década, ou pelos bissextos, se tivermos sorte, elas nos chegam. O que eu sinto perante o Lobo Antunes é gratidão. Sei que, se eu tiver a sorte de ele um dia pegar num livro meu e uma pedra preciosa brilhar fugazmente nesses olhos profundos, azuis, encantados, uma só frase de milhares que ele passará com enfado, terei ganho um tempo que não é meu por direito. Esta pergunta é um pedido, uma esperança permanente, nenhuma crítica. Que sorte que eu tenho de ser contemporâneo, leitor, aprendiz e ter vindo a ser companheiro de editora de um homem que, sempre que se senta a falar de literatura, nos desmancha e nos chama para a luz. Obrigado, pá!PG-M 2014
fontes das fotos: ALA e AMC
Published on November 23, 2014 09:58
November 18, 2014
Caixa com Mulher dentro
E agora que a noite te vai levar no corso escuro
E os teus olhos estão cerrados de esperança
Agora que é infinito o passado e urgente o futuro
E o teu coração vai azedo da passagem
pelas portas mais pequenas das
casas
Agora que as mãos te doem e o sabão te humilha e os arames do estendal
te perfuram
a linha da vida e os dígitos estão negros
Agora que as tuas pálpebras estão queimadas por cubos de solidão e incêndios que rebentam na cozinha e as luzes fluorescentes te entorpecem
Agora que o teu corpo está no fim e ainda prestas vassalagem às mochilas
e já não tens braços mas puxas a roupa da máquina para dentro da tua própria bacia e cais para trás e bates com a cabeça há muito afogada por todos os teus papéis secundários na parede do vestíbulo
agora que todos excepto o mais velho que não chegou do treino e o marido que não chegou do golfe
dormem
e tu estás morta
tens um recado na mesinha de cabeceira que ele deixou antes de ir para o campo às três da tarde e ainda não voltou com a pergunta que no teu funeral parecerá a metafísica de uma vida rutilante:
e se amanhã despachasses os meninos mais cedo para o treino com umas sandes nas mochilas e fôssemos ao cinema ver aquele filme de que a minha secretária me falou e que eu até te expliquei que gostava muito de ver porque é uma espécie de remake do Rocky quando estavas ontem a estender a roupa e eu vim cá fora buscar os tacos, não sei se ouviste
e ele vai ler emocionado aos amigos enquanto te limpa os lábios frios no caixão
o desespero do velório durará a noite em que deixarão o teu corpo sozinho na capela mortuária,
o desespero durará,
não o teu último sorriso,
mas o inútil putter
que ele guardou irritado à pressa na mala do carro
quando o primeiro de todos os filhos lhe ligou
a dizer que ninguém abria a porta
nunca mais
foda-se para esta merda a tua mãe
é sempre a mesma coisa adormece
a ver a novela e um gajo que se lixe
e um gajo se lixe,
meu amor
PG-M 2014
fonte da foto
Published on November 18, 2014 11:43
November 14, 2014
Literatura da tapada, da pedreira e do ourives
Não sou crítico ou recenseador literário, nem aspiro a tal. Sou leitor há quarenta anos.
Recentemente, contraí a epidemia dos escritores que começam a ler em função do que querem escrever, e posso dizer que estou gravemente doente, já que poucas coisas me satisfazem e raramente consigo ler um livro que não me interesse como oficina. Em mais de uma década de blogue, poucas foram as vezes em que escrevi sobre livros. Este foi-me entregue de forma muito discreta e humilde pelo próprio autor. Não vinha sequer dedicado, eu é que fiz questão. Olhando para trás, devo tê-lo recebido com uma certa altivez e indiferença. Procuro sempre acarinhar a produção literária ou - se não puder ser literatura - a escrita, e recebo qualquer livro com entusiasmo e esperança de que seja a descoberta que me mate a sede permanente, mas desconfio sempre dos que têm ar de serem auto-editados, porque respeito tanto o ofício de editor e revisor profissional, que tendo a considerar menos quem parece não os ter, não os procurar, não perceber que são uma das essências da literatura.
Há também pessoas que se juntam e se querem impôr para fazerem o diálogo da mediocridade e, quando nos falta tempo para lermos tantas coisas que temos a certeza de que são boas e nos fazem falta, posso levar essa mediocridade a mal. Às vezes levo. E isto acontece dentro ou fora do chamado "meio", embora, claro, aconteça mais fora do que dentro.
Não estou fechado numa bolha literária ou artística, nunca estive, e, embora me perturbasse essa perda de capacidade da leitura pela leitura, este livro ensinou-me mais uma grande lição. Lembro-me do Saramago - entre outros - dizer que para falar de nós, mais vale não falar, lembro-me desta ideia reiterada pelos lábios da própria Pilar, talvez a primeira que expressou quando nos conhecemos, e também tenho presente a aspiração do Lobo Antunes ao silêncio. Então, num silogismo de taberneiro, diria que quem fala de si não se ouve.
Ora, foram muitas as vezes em que procurei a literatura em bruto, sem escola que não a da leitura, a do ouvido e a da própria mão. Cesário Costa, neste "Memórias da Memória" (Editora Ausência, 2002) é praticamente, apenas e só, esse magnífico silêncio da vida, porque fala de si e da sua vida na sua terra e nos seus lugares entre o nascimento do seu avô e os nascimentos dos seus filhos. Também me recordo daquela ideia do Lobo Antunes: escrever contra os melhores. A verdade é que, à medida que ia subindo pela leitura do livro do Cesário, em espanto e, confesso, alguma comoção, corria a consultar o que tinha feito no "Livro sem Ninguém" e pensei, pensei tantas vezes, como este livro do Cesário é o Livro sem Ninguém com pessoas à vista, e como tinha sido bom eu tê-lo lido antes de publicar, porque, garanto, ia plagiar secções inteiras do livro do Cesário e depois pugnaria por não o convidar para lançamento nenhum e nem se chegasse perto do meu livro, para não detectar a desfeita.
Pois vi-me, na primeira parte do livro, e quase a cada parágrafo, a "escrever contra" o Cesário e a pensar na mão segura, eloquente, leve, que ele tem para descrever as casas, as quintas, os pinhais, os quintais, os hábitos simples, a pedreira, o alfaiate, como tinha sido bom importar para mim as cerejas "vermelho granada" que ele roubava e encher a minha horta de morangos. E eu sei que, se o meu livro tivesse gente à vista, este era o livro que queria ter escrito. O Cesário é um homem simples, com uma vida de trabalho desde tenra idade, e foi estudando, muitas vezes à noite, enquanto fazia quilómetros a pé, e foi-se cultivando - até porque nas suas linhas também se sentem muitos livros, muitas leituras, dedicação ao teatro. Mas eu creio que o mais notável na primeira metade do livro do Cesário (que a segunda é diferente), perfeitamente arrebatadora e imprescindível para qualquer gaiense de sessenta ou setenta anos (embora um bom livro seja imprescindível para o mundo inteiro), é a sua mão enxuta, que não deriva, que não se tenta exibir, que fala apenas do que conhece, do que sabe, esse silêncio. Mas, até aqui, na literatura da tapada, da pedreira e do ourives (notáveis as páginas em que Cesário descreve a arte de ourives no Porto dos anos cinquenta, sessenta do seculo vinte), é preciso nascer com a arte nas veias para poder lá chegar. E Cesário chega. Aliás, a primeira metade deste livro - a segunda também é boa, e não desemerece, mas é um relato biográfico mais plano, embora o livro acabe de forma muito bela, em epístola, aliás citada pelo ilustre prefaciador, Hélder Pacheco, embora eu considere a frase tão destacada ("Os pampilhos amarelos que cobriam os campos que conheceste, prenuciando a Páscoa, foram substituídos por prédios") no prefácio e na contracapa é superada por muitos outros parágrafos ao longo do livro. Por exemplo,
"Ainda no jardim, no fundo do quintal, em maio, quando ia pelo carreiro com a saca dos livros e da lousa às costas e os bolsos cheios de sameiras para jogar a "pincha", via reluzir na relva ainda húmida do orvalho algumas cerejas vermelho granada, expostas como rubis sobre o manto aveludado da relva, como jóias numa vitrina. Não era preciso comprá-las.
Delicadas, apanhava-as, umas intactas, outras debicadas pelos melros que cantavam melodiosamente mais acima na árvore, tirava-lhes vagarosamente a pele, saboreava-as enfim e corria para a escola para ter tempo de jogar qualquer coisa antes de tocar a campainha para entrar na sala de aulas do professor Queiroz.
A sensação era estranha e quase amarga. Imaginemos um quadro de natureza morta com esta cenário. Sentia que o estragava quando apanhava as cerejas vermelho granada do chão."
Tão bonito, não é? E há tantas passagens assim. E é curioso como eu também acabo por recorrer, no Livro sem Ninguém, à ideia das naturezas mortas que suspendem em si a arte.
Qualquer livro beneficia de uma boa revisão e edição, e este não as tem, mas seria injusto para o Cesário que isso fosse destacado, porque foram tantas as palavras notáveis que sublinhei como as vírgulas e os acentos fora de sítio e um ou outro lapso, que servirão para que lhos possa mostrar e a próxima edição saia perfeita. E os lapsos são raros e esparsos, ao contrário do que detecto em tantos manuscritos de aspirantes que me são enviados, e provavelmente menos do que os dos meus próprios manuscritos pacientemente revistos e editados pela Maria do Rosário Pedreira. Aliás, o que ficará para a vida - sim, posso dizer que raras vezes tive, nestes quarenta anos, tanto prazer a ler um livro - será o paradigma do Cesário, que me servirá perante todos os aspirantes: vejam lá como se escreve como quem revolve a terra ou incrusta pequenas pedras preciosas. O Cesário escreveu, literalmente, o livro da sua vida, que pode ser o livro da vida de muitos. E não é um livrinho engraçado. É um livrão.
Um livrão que congela numa belíssima fotografia o lado mais belo de um tempo que já não volta, e que é o nosso, se temos sessenta, setenta, o dos nossos pais, se temos trinta, quarenta, ou o dos nossos avós, se temos dez, vinte anos. Não se esquece. Agradece-se. Obrigado, Cesário.
PG-M 2014
foto do Cesário
Published on November 14, 2014 10:14
November 10, 2014
absolut
vais perdoar que te dispense
absolutamente
pois essa é a consequência da perfeição
podes ser um estudo para piano do Max Richter
podes ser os lírios já mortos nos regaços
podes ser a donzela alquebrada
nos meus braços
se eu te quiser
morrerei por não te ter
e mesmo que te oiça
que te colha
que te beije
haverá um momento em que te deixo
e me aninho mortal
por todo o sempre
pois essa é a consequência da perfeição
se eu te quiser
morrerei por não te ter
absolutamente
PG-M 2014
Published on November 10, 2014 13:04
November 5, 2014
As mulheres perfeitas de Lisboa
Não há mulheres perfeitas. A não ser no metro de Lisboa. Era isto que te queria explicar ao café, quando me achei tão comovido contigo que as minhas palavras habituais se demoraram na garganta – o que, já se sabe, faz chorar os olhos e dar a desculpa das rajadas que percorrem os becos de Telheiras e levantam uma poeira subtil que irrita a córnea. As palavras por habitar formam frases surdas e fazem com que os lábios se entreabram sem nada – mas, do mal o menos, os meus lábios são bonitos, carnudos, e, favorecendo-os a boca fechada e o silêncio, não desmerecem das hesitações. A língua avança, humedece-os, e eu tenho de reformular e tu- Diz.
e eu, não há mulheres perfeitas. A não ser no metro de Lisboa. Se guardares o telemóvel no bolso e te ergueres acima da massa que se fecha na luz programada e sistematizada do mundo sem vento dos ecrãs, verás. São olhares que elas não confiam a ninguém. De que não abdicam. Com efeito, até os inibem e escondem. Se estiver uma já sentada na estação, evitar-te-á até a composição retomar a marcha. Mas, no momento em que a vais perder, dá-to. Normalmente esses olhares queimam, tu entras em sobressalto, há um desespero quântico e logo te focas na estação seguinte: Arroios. Na vinda, tinha sido uma miúda pálida que tinha o polegar fixo no ecrã do telefone e escolhia sempre um ponto neutro como objecto, ligeiramente descaído para a esquerda do eixo que se pode traçar entre as tuas pupilas e as dela. Os lábios pintados de vermelho e o cabelo a várias matizes, não de tintas, mas de luz. Perdeste-a na de Roma. Esta era insubstituível. Na volta, a miúda era outra, morena, romani, e olhou-te de frente mal se sentou – mas foi a única vez que te olhou. O telemóvel era um pretexto. Tinha os cabelos pretos a escorrer em flocos e ia recebendo uma combinação de sombras e halogéneo. Os olhos meigos com umas longas pestanas.
Estou a falar disto para não gaguejar nem dizer que a perfeita és tu. Isso e que escrevo como quem fica exangue. Corto os pulsos e as palavras saem. Estava escuro dentro do café e tu brilhavas e tinhas contornos definidos. O cabelo negro, os olhos negros, os lábios com o rigor da beleza genuína. Não sei se acreditas nisto de aplicar matemáticas ao que se eleva acima do primordial, do animal. Concordamos que não há nada de natural na monogamia, e aí convém-nos ficar frios, no chão, sem arrebatamentos, como cavalos a bater os cascos no tempero exacto das suas aspirações. Sabemos apenas que, quando as crinas esvoaçarem no espaço, a galope, já tudo será possível. Já tudo será nosso. A minha comoção explica-se por reconhecimento. Primeiro a bondade, depois a clareza, e, à medida que a conversa vogava, subia, descia e entrava em nós, como as bicas, o sumo, a cola, a leveza. Agora tudo é possível a galope pelos campos ou pelas linhas ou pelas estradas ou pelas praias, um beijo ou um corpo, o silêncio ou um braço, as mãos cingidas e os perfumes. Reparaste como os perfumes fizeram o seu percurso sozinhos, apesar de nós? Como eles, a pele. Como eles, as mãos sobre a mesa. Como eles, os olhares. Olhares directos, longos, cheios, com o jogo mais puro. Rayuela. Não há mulheres perfeitas. Excepto no metro de Lisboa.
E nos cafés de Telheiras.
PG-M 2014
Foto de Luigi Morante. Fonte.
Published on November 05, 2014 14:09
November 1, 2014
Em Novembro
Em Novembro
ela conta os frutos
enche o cesto
faz os doces do outono
faz os golpes
das castanhas
abre o peito
estala a luz
e às seis
(às seis da tarde em ponto)
ama
PG-M
Published on November 01, 2014 04:53
October 18, 2014
Porch
Regresso ao amplo alpendre de madeira para fumar um narguilé
ou uma cigarrilha ou qualquer coisa que um velho cowboy americano fumasse
o terreno perto da casa é seco
há um pequeno bosque a separar-me da estrada
os fumos são comestíveis
o da minha cigarrilha e o das árvores que o velho que eu sou tem a certeza de se moverem
todas as noites de outono, de se encolherem
todas as noites de inverno, de abrandarem
na primavera e de pararem
no verão
o fumo é o segredo do bosque, fica entre copas
com um sopro, levanto a tempestade
é fim de tarde e no interior da velha casa acende-se uma luz
a tinta branca estala sob os meus dedos
no meu modo americano não há mulheres visíveis, a não ser aquela luz da casa
ao fim da tarde
às vezes dedilho as duas cordas que restam na guitarra e lastimo uma canção do oeste
com a voz côncava que o tabaco me devolveu
o canto fica distante da estrada onde vão parando amigos que não sabem que sou eu
há lágrimas moucas
identidade
o fumo comestível dissipa-se nos braços do arvoredo
o do meu charuto encobre-me a cara
estrelas enfim
a luz no centro até depois do jantar
ninguém sai da estrada
ninguém vem
antes de me deitar ainda volto ao alpendre para cheirar o tempo
estendo os braços com a palma das mãos voltada para cima
o mundo pousa
a última passa nunca chega ao fim
PG-M 2014fonte da foto
Published on October 18, 2014 04:31


