Pedro Guilherme Moreira's Blog, page 22
February 6, 2015
Já passa das onze da noite
já passa das onze da noite
a nave do desespero
já passa estreita
ao molhe e nós
dormimos ou
sangramos
de gabardine e chapéu
eyeliner e batom
paráguas e
sequidão
dizemos que a medida do mundo dentro de nós é o tempo em que podemos negá-lo pela manhã
trasanteontem
seremos amantes
teremos sempre
cidades
PG-M 2015
fonte da foto
Published on February 06, 2015 15:30
Dez da manhã
Dez da manhã e eu passando
ao largo do teu
bosque
copas negras cercadas
por caules de
betão;
é tão improvável
para a poesia
o relato da
perfeição
é tão distante para nós
a parábola do corpo
é tão tarde para quem foi cedo
tão cedo para quem foi noite
PG-M 2015
fonte da foto
Published on February 06, 2015 02:39
February 5, 2015
Pelas onze da manhã
Ligas sempre
pelas onze da manhã
dizes que o corpo magoa
o corpo magoa e as horas
demoram
as horas demoram e a voz
é de lã
encontras-me sempre nu
frio
oco
rotundo
com o cubo do mundo
na traço fino da espinha
na linha
dos lábios sal
chove sempre cedo
mais cedo
cada vez
mais cedo
engulo Celan em seco, eu também
odeio rima
deixas-me os ossos em pó
enganas a solidão
e eu fico só
PG-M 2015
fonte da foto (James Stewart em "It's a wonderfull life, de Frank Capra)
Published on February 05, 2015 03:02
February 4, 2015
Já são nove da noite
já são nove da noite
a orquestra nunca tocou no botequim
a cientista fuma um cigarro
entre contagens
olha o relógio
no pulso nu deste
século
está frio no tronco proibido
do jardim
ele dentro da boca
dele
lama nas pautas da
serenata
perderam o último autocarro
nos fumos da treva
e os cafés vazios
cheios dos tristes
da madrugada
o restaurante cheio quente e alaranjado
o portão automático a abrir
o comando na mão
o vulto fluorescente da cozinha
ele vai beijá-la uma só vez
hoje
o abraço fica até
se encher de
filhos
ou nada
estão a chorar
o cemitério já fechou
e as campas quietas
tenho tantas saudades
diz a velha já deitada
tantas saudades
as auto-estradas vão ficando
foscas
as casas claras
as pontes menores
os montes maiores
os mares iguais
aos céus
a sala de cinema enche
e há vidas que sim
e há vidas que não
que já passa
das nove
da noite
PG-M 2015
fonte da foto
Published on February 04, 2015 13:27
February 2, 2015
Abigail, Abigail, Abigail
Somos todos Abigail.Esta é a moda dos nossos dias desde os atentados ao jornal satírico Charlie Hebdo. Je suis Charlie. Somos tudo todos e somos todos tudo?Da forma como ouço o nome Abigail, com sotaque britânico e como mote de um poema de Keats dito por Ben Wishaw,
"Bright star, would I were steadfast as thou art"
podemos, realmente, ser todos Abigail.Mas, neste caso, sermos todos Abigail retiraria mérito à própria Abigail que origina esta crónica e pode retirar mérito a todas as outras que o merecem. Abigail beneficia de um conjunto de factores que a tornaram singular: estar doente ao tempo em que a conheci - e isso significar empenho, coragem (em vez da cama, escolheu resistir), ser alta, ter um nome singular e bem escolhido pelos pais e exalar literatura por todos os poros: foi, pois, todo um universo que me compareceu por diante.
O lugar foi uma escola, a Diogo de Macedo, onde, em tempos, eu trocava livros dentro de um autocarro: fica-me a memória da escultura do adeus, com que termino este, no post scriptum "Da intimidade".
Ao lado dela estavam a Cíntia e a Maria Beatriz, todas a apresentar o "Livro sem Ninguém". São todas Abigail. A dedicação e o trabalho tidos em volta do livro foram tais que a sessão colectiva da manhã de 2 de Fevereiro de 2015 é só o primeiro de muitos actos: ficou quase tudo por mostrar. E eu tenho de ver, tenho de ouvir a sequela. Todas as sequelas. Por isso vos condeno, Abigails, a replicar a vossa sabedoria pelos meses, pelos anos.
O que se passa com a beleza das mulheres? Já não há, verdadeiramente, mulheres feias, ou, quando desaceleramos o tempo voraz, ficamos mais parados do que antes e reparamos e, reparando, a beleza torna-se a única resposta? Será a beleza apenas a matéria e, quando há matéria, conteúdo, não ser possível a fealdade? Somos todos Abigail?
Oh, Abigail, Abigail,
Thou shall never lose our
Trailcomeça o Ben Wishaw com palavras que me apareceram aqui, no colo, as palavras como elas me soaram, assim, possuído de Keats.O que se passa com a beleza das mulheres?A professora Rosário tem os olhos e o sorriso claros; os olhos podiam ser escuros, o sorriso nunca será. Apresenta-me à entrada, logo à entrada, a professora, Sandra, loira, bonita, e, ao cimo das escadas, já dentro da biblioteca, a professora Maria José, loira, bonita, olhos claros. Os olhos podiam ser escuros, o sorriso era ainda mais definido - leitora crítica d'A Manhã do Mundo. Alta definição, estado crítico - matéria, profundidade: quando é assim, a beleza está sempre? A Celeste, entre livros, era bonita - não sei se era loira ou ruiva. A Célia era ruiva, pelo menos apresenta-se assim: temos um pacto de flores, não de beleza (não desconversem, a beleza está no pacto). A professora Antonieta deixou-me o livro pelo filho. A mãe da Inês é professora primária e a mais entusiasta leitora do Livro sem Niguém - não estava: que pena, eu teria despachado no sentido de a dispensar nesta manhã. Um despacho apolítico, cheio de matéria: quando é assim, sim, a beleza está sempre. A menina que comprou um livro da Manhã e se esconde, onde está ela? Onde estás, qualquercoisa Sofia?Têm todas olhos verdes, garanto, mesmo as que não têm.Todas as mulheres da Escola Diogo de Macedo têm olhos verdes. E vocês, Daniel e Emanuel e Tiago, não querem que fale da outra beleza, pois não? Os homens preferem que lhes digam outras coisas, são básicos e mentirosos na verdade estrita, não é? Somos. Levo-vos a Caixa com mulher dentro ou a Gaveta. A comunicação fica mais limpa.
Todas as professoras, sem excepção, toda a Escola Diogo de Macedo, merecem o elogio público: o empenhamento em tempos turvos e desmotivantes, tempos estruturalistas em que nos abstemos de ler as síncopes nos factos, é digno de admiração. Mas está na altura de começar esta ode, porque ainda nada começou e eu ouço Abigail da boca do Ben Wishaw dentro da minha cabeça.Elas, as três meninas que se levantaram para apresentar o Livro sem ninguém e tinham tudo planeado e que nem a gripe: a própria Abigail, que em português tem acento tónico - mas não gráfico - no segundo i, a Cíntia e a Maria Beatriz, que, literata que é, se debateu com o livro até à exaustão, são todas Abigail, no sentido do que se destaca pela matéria, não apenas pela forma. Não houve alguém que disse que, quando assim é, a beleza está sempre?O que se passa com a beleza das mulheres?O filme chega ao fim e aparece a voz do Ben Wishaw a dizer-me.(oh, quanta honra, possuído que estou de Keats por causa deste nome, Abigail, Abigail, e surgem os versos, que são, verdadeiramente, o anverso de tudo, e vos dirão a todos pelos tempos:)
Oh, Abigail, Abigail,
Thou shall never lose our trail
We inhabit in each blink
We are fully what you think
Will you form us as you sail,
Abigail?
Lose the rhymes
Change the skins
Move the hearts
Come inside
We are all
Always were
Abigail,
Abigail,
Abigail
PG-M 2015
Da intimidade: Fonte da Foto da obra de Diogo de Macedo, "L'Adieu ou le pardon", que, segundo Afonso Ramos, "sugere a intimidade mais pessoal e intransmissível" precisamente a que eu tento trazer para dentro da literatura enquando estou vivo, entre mim e os meus contemporâneos, já que só valerei mais tempo morto: resta saber se esquecido, como todos, o que está bem, ou lembrado, o que estará melhor, mas não é necessário;
Published on February 02, 2015 12:56
February 1, 2015
"Segundo Platão, tu és um mentiroso"
"Segundo Platão tu és um mentiroso. És um sofista, um charlatão. Mentes sem nobreza. Não tens vergonha? Platão escreve um "Autopsicografia", com o seu o poeta é um fingidor mas não perdoa. Platão fala tão mal dos poetas que nunca se atreveria a escrever um verso que fosse. Porque os poetas não são responsáveis por aquilo que fazem. Quando escrevem, encontram-se numa espécie de estado mediúnico, não racionalizando, já que são possuídos, no momento de criação, por uma loucura instigada por uma entidade divina. Para Platão, há um deus que cria através do poeta. Mas isto não pode ter nada de bom. O poeta é apenas o invólucro, a marioneta. Para piorar o cenário, os poetas usam e abusam do ofício dos outros para poderem produzir os seus objectos artísticos. Compara o pintor ao tragediógrafo, uma vez que ambos actuam de igual forma: um pinta uma cadeira não sabendo nada da arte de fazer cadeiras, outro descreve essa mesma cadeira, não sabendo nada de carpintaria nem de limar arestas. Platão entende que os poetas não deveriam ter lugar na república ideal mas, se o tivessem, deveriam ser aqueles que cantassem os feitos dos homens bons e as virtudes dos deuses. Porque, de resto, todos os outros convivem com a pior parte da alma, o que quer que isso seja, todos os outros se encontram "três pontos afastados" da realidade (expressão idiomática da Grécia Antiga para dar a noção daquilo ou daquele que está bastante afastado de algo). É desta forma que os pressupostos platónicos submetem a literatura a critérios que são extrínsecos à sua análise, que é o caso do critério da verdade e do critério moral (canto do homem moralmente superior). É aqui que entra Aristóteles, aquele que vai refutar as conclusões brilhantes de Platão que, ao lado do nosso novo amigo, se tornará caduco e pequeno. Aristóteles vai converter o moralismo platónico numa qualidade imanente da obra literária, que pode ter um poder moral se estiver esteticamente bem construída. Aristóteles caminha em passos lentos, cada um com uma estrutura argumentativa bem pensada. Compreendemos que, para o autor, a poesia é imitação. Essa imitação, a mimesis grega, distingue-se das outras artes pelo meio que utiliza: o meio verbal. Então, a poesia é uma imitação através do "simples verbo", isto é, através da linguagem. Mas não se trata de uma imitação passiva da realidade. Refutando os pressupostos platónicos, Aristóteles defende que o poeta é um ser totalmente consciente do seu ofício e que essa imitação é uma faculdade inata do ser humano, um acto congénito, e não uma maldade ou uma mentira. Afirma que o Homem cresce e aprende através da imitação e que este é o seu primeiro veículo de conhecimento. E, não imitando apenas, o Homem também retira prazer dessa imitação. Sabendo então que a poesia é imitação por meio da linguagem verbal, é importante sublinhar o facto de essa linguagem ser especializada, embelezada, ornamentada, é uma linguagem temperada e cheia de sabor, o tal sabor barthesiano (Roland Barthes afirma, em Lição, que a literatura acontece sempre que as palavras tenham sabor). Mas esse tempero da linguagem, próprio da literatura, é acompanhado da apologia da "clareza sem baixeza", uma vez que não há conotação apreciável se não é possível reconstruir a denotação. Essa clareza, defendida por Aristóteles, é assegurada pelas palavras correntes e a beleza e elevação que se esperam da linguagem poética são asseguradas pelas palavras raras. As palavras correntes são aquelas que são do uso da maioria, as palavras raras são os estrangeirismos, que chegam dessa forma até nós, vindas de outros povos e culturas. Aristóteles defende a figuração na linguagem literária, possível através do enigma (o resultado do uso da metáfora, que para Aristóteles se trata da transferência do significado original de uma palavra para um outro, que melhor servirá o texto literário) e através do barbarismo, ou seja, o uso das palavras raras. Em Aristóteles encontramos já a defesa do verosímil, quando este distingue o discurso histórico, que conta as coisas como elas aconteceram, do discurso literário, que conta as coisas como elas podiam acontecer ou como podiam ter acontecido, segundo "o princípio da verosimilhança". Para Aristóteles o verosímil na literatura justifica-se desta forma: de preferir às coisas possíveis mas incríveis são as impossíveis mas críveis.
Para rematar este duelo de titãs, os dois raciocínios, o de Platão e o de Aristóteles, explicam-se resumidamente desta forma:
PLATÃO - MIMESIS remete para um critério de VERDADE
ARISTÓTELES - MIMESIS remete para a POIESIS (construção) através do EIKOS (verosímil - aquilo que convence graças a uma construção inteligente)"
Catarina Lacerda, em carta que me foi enviada e com autorização de publicaçãoFoto é frame do filme "Alexandre, o Grande", de Oliver Stone. Aqui, quem desempenha o papel de Aristóteles é o actor Christopher Plummer)
Published on February 01, 2015 14:49
January 25, 2015
o desenho do Profeta
O Mensageiro de Deus não era
exageradamente alto nem
baixo, não era excessivamente
branco nem negro, e o seu cabelo
não era excessivamente encaracolado
nem liso,
disse Anas
gostava de essências
de delinear os olhos
usava uma túnica
verde
falou sobre a forma de pentear e
cortar a barba
e o cabelo
e quando ria era subtil
como um sorriso
e chorava como
sorria
vertia lágrimas mas o peito
era um murmúrio
se o quiseres desenhar,
deixa a folha em branco,
esta é uma religião de
palavras
como estas
e se estas palavras te criaram uma imagem
na cabeça
inibe-a
desaprende o alfabeto
e dobra
e teme
e
entrega a cara
em branco
e ama
PG-M 2015
Published on January 25, 2015 04:31
January 14, 2015
Eu sou a kalashnikov da Boa Nova
Mais ou menos no momento em que os irmãos Kouachi entravam pelo Charlie Hebdo, no dia 7 de Janeiro de 2015, e degolavam a liberdade, eu e muitas dezenas de professores e alunos enchíamos a Biblioteca António Nobre, da Escola Secundária da Boa Nova, em Leça da Palmeira, e é no próprio nome da escola, a que Leça e o grande Siza ficarão para sempre indelevelmente ligados, que começam as ironias. Eu ia escrever que estávamos anormalmente desligados do mundo, mas talvez estivéssemos mais ligados do que a maioria das pessoas que acompanhavam em directo o drama de Paris, que é como agora se faz. Creio que cada uma daquelas dezenas de pessoas que estavam na biblioteca terá tido a mesma sensação de estranheza quando soube do que se tinha passado: desta vez, eu não estava a viver isto em directo, estava mergulhado numa outra realidade, num outro mundo. Um mundo que está antes ou depois de hoje? Ironia das ironias, a sessão era centrada no meu primeiro livro publicado, "A manhã do mundo", e quando passou o vídeo da segunda parte do booktrailer (que pode ser visto aqui), todas as memórias do "trauma" colectivo de acompanhar a chacina de três mil pessoas no coração do mundo emergiram. Do mesmo modo, aqueles para quem o 11 de Setembro é apenas um facto histórico, a maioria dos que enchiam aquela bilbioteca, vão ter a memória "traumática" da execução do polícia Ahmed pelos irmãos Kouachi e o eco da máxima "Je suis Charlie". A bem dizer, o pensamento que me passou pela cabeça, enquanto "revia" os aviões a bater nas torres e estar a ruir, foi que, apesar dos atentados de Londres e Madrid, nunca mais tinha havido uma semana de luto mundial. E não sabia de Paris. Nenhum de nós soube até às 13h, pelo menos.O que se passou em Paris mostra que os "holocaustos pessoais" não se instalam em cada um de nós pelo número de mortos: em termos estatísticos, as pessoas que morreram em França pela nossa liberdade não se comparam aos três mil mortos de 2001, mas também os três mil mortos de 2001 não se comparavam aos dois milhões de mortos civis da guerra do vietname, às seis milhões de vítimas do nazismo, às oito milhões de vítimas do Estalinismo ou às duas milhões de vítimas dos Khmer Vermelhos, entre outros. Ainda ontem um comando de rebeldes chacinou um autocarro de inocentes na Ucrância, estão a morrer refugiados de frio porque está a never nos campos. De fome, morrem todos os dias, quase quinze mil (!!!) crianças, seiscentas por hora, dez por minuto, uma a cada seis segundos - e isto devia chegar para que nos uníssemos todos em vez de andarmos a matar ou a insultar em nome de coisas secundárias, fúteis. A condição humana não começa em deus ou profeta nenhum: começa no Homem, mesmo para quem tem fé, e só depois sobe aos céus. A verdade é que cada vida perdida desta forma importa. O "holocausto pessoal" é o abismo das vidas interrompidas sem sentido - pelo menos não com o sentido primeiro e último da vida.
Por causa disto, não consigo deixar de pensar nos irmãos Kouachi e no que os levou a decapitar a voz do mundo: terão sido despeitados, abandonados, ostracizados, mas há muitos, cada vez mais, que são levados para campos radicais ainda bebés e são criados num ódio vazio, que para eles existirá desde sempre e para todo o sempre. Mas os irmãos Kouachi andaram em escolas europeias como a Boa Nova, e é precisamente nas escolas e nas universidades que está o único foco possível de toda a arte: a explicação de que as janelas para o mundo não estão só nos ecrãs retroiluminados, que o ponto de partida zero - não sei nada, não sou nada, vou trabalhar para todos e para tudo - de cada dia é o único possível. Nem todos têm de ser artistas e escritores, mas todos têm de perceber que a arte nos adianta o sentido da vida e nos diminui os momentos de deserto, tédio e solidão. E também nos dá amor: e é óbvio, flagrante, ainda que pareça uma bandeira com excesso de doçura e nada "cool", que o défice do mundo não é financeiro, mas de afecto. Hoje ouvi um líder muçulmano ocidental explicar à CNN como distinguir as boas ou más intenções de qualquer pessoa que actua em nome da religião: "the false ones intend arm", ou seja, os impostores têm sempre o Mal como objectivo imediato, e só através do Mal conseguem "vingar" as convicções que anunciam. Este Mal nem sempre é declarado e contamina as sociedades ocidentais: às vezes vem até disfarçado de Bem. Mas não há engano possível no amor incondicional, que não é só o dos pais, o dos amigos, é muitas vezes o dos nossos educadores, o dos nossos professores, o dos nossos cuidadores.
Na Escola da Boa Nova sei que me afastaram mais dos desertos do mundo e me encheram de afecto - e eu espero ter deixado mais motivos de estilhaço das solidões e das frustrações e músculos para abrir mais janelas e fazer mais coisas boas, como as entregas de 540kg de géneros em 34 cabazes de natal aos desfavorecidos, como a Boa Nova fez este ano. Mesmo o André da carapinha, sem saber, me ofereceu uma gargalhada de tal forma contagiante ao fim do primeiro parágrafo da glosa do Macklamore, que contaminou toda a sala e me deixou uma memória que não se apaga. E são estas memórias que suprimem as más. Vamos fazer isto mais vezes, meninos, não nos percamos um dos outros. Do fundo da sala, a luz quase absoluta da Filomena, a emoção e o empenho do Miguel e do Paulo, do meu lado esquerdo a voz trémula e nervosa (estes nervos são empenho, e também comovem, sabes?) do Nuno a apresentar-me, a leitura segura da Margarida, a pergunta ampla e forte da Ana Guilherme (tinhas te chamar Guilherme:), a infinita curiosidade do Ricardo (cada pergunta tua merecia uma hora de fogo cruzado), o incomensurável encanto da Lígia e as gerações de apaixonados pela língua que eu lia nos olhos dela, a doçura da minha anfitriã Cecília, a malandrice da Isabel loira, a intensidade da Manela, o absoluto encantamento (e conhecimento) do Henrique e do João, e mais, e mais, e mais. São muitos mais o que aqui não tiveram o nome. Estou-lhes grato. E agora somos responsáveis por isto ter valido, por não nos esquecermos.
Como é que sai incólume disto? Não sai. Nunca se sai.
Mas é por eles, e por causa deles, que eu agora sou a Boa Nova e o guerrilheiro das kalashnikovs que disparam as palavras que lhes entram pelo corpo e não os deixam adormecer de tédio ou enfurecer de solidão e abandono.
E nunca deixarão.
PG-M 2015fonte da foto
Published on January 14, 2015 10:20
December 31, 2014
Cala-te. Abranda. Pára.
É um privilégio, mas também mata. O meu dia, muitos dias meus, são questionar assim. Estou a contrapesar Leibniz e o lado binário da lógica, e subitamente sou interrompido pelo telemóvel e é telemarketing, pergunto ao miúdo se quer dois ou três pães para o lanche, volto à questão dos axiomas da matemática primitiva e trago filosofia e física para o meio de uma frase, aponto-a num envelope por abrir porque vou tentar escrever ao fim da tarde, digo ao miúdo que se despache porque são horas de ir para o treino, ele chama-me para ver um vídeo no YouTube, rimo-nos juntos, digo-lhe que se arranje, vejo um livro saído na estante, são poemas, não digo de quem porque neste ponto o parágrafo ficaria insuportavelmente pretensioso, um curto poema sugere-me outro que vou escrevendo na cabeça, a mulherzinha liga, falamos de banalidades que selamos com a frase essencial, pela tarde, em frente ao mar, pronto para escrever, o telefonema de um cliente obriga-me a abrir o Citius e requerer uma urgência, o dia vai acabar, o ano vai acabar, subitamente agarro trinta minutos em que não sinto mais nada que não as frases, escrevo e tenho a ilusão de ser mais do que o que sou, de ter alcançado uma luz nova, mas o relógio diz que são horas de ir ajudar à ceia, chego a casa, vou ao wc, pego na Bonet brevemente, depois no Gabo, depois em mim, é preciso fazer vinho quente, dois paus de canela, o vinho ferve, eu arrebatado com conceitos kantianos, e no fim a vergonha do homem da rua que nunca teve a oportunidade desta felicidade. Mas este morre de frio ou fome. Os outros morrem de ter subido demasiado. E agora vai entrar 2015. O ano, que vai alto, fica baixo e com uma espécie de infinito por cima. Isso traz-me de volta a matemática. Cala-te, Pedro. Abranda, Pedro. Pára, Pedro.PG-M 2014fonte da foto
Published on December 31, 2014 15:47
luso-cânone XXI
Falava-se na Ler deste mês numa espécie de novo cânone da língua portuguesa. Como já é tarde, acho que posso partilhar convosco esta passagem em que a professora Agripina me põe à beirinha do mais jovem candidato português ao Nobel. Ora bem, em rigor, eu dou relevância nenhuma a certos tiques de canonização. Mas trata-se da professora Agripina, que, como outros professores universitários que andaram na escola e me deram a honra de olhar para a inovação formal do LSN (não, não disse LSD), como a professora Alzira Seixo e os professores Seabra Pereira e Manuel Ferro, descobriam o meu querido Bachelard escondido (todos eles) e foram de uma gentileza e simplicidade que quase não se vê nas páginas mediáticas, e isto está aqui para lembrar como é bonito ouvir e aprender com quem sabe, e eu, no ciclo de lançamentos do LSN, aprendi tanto com estes professores. Que me humildaram profundamente e me fizeram perceber que não sei nada.
LSN - Livro sem Niguém
PG-M 2014fonte da foto
Published on December 31, 2014 11:59


