David Soares's Blog, page 79
March 16, 2011
Regresso às origens

Descobri hoje que a Central de Cervejas lançou uma nova cerveja Sagres: uma novidade com sabor a chocolate.
Diz a notícia que consiste numa «inovação exclusiva e pela primeira vez em Portugal» .
Quanto a ser a primeira vez em Portugal, não sei, mas tenho a certeza de que não é uma inovação exclusiva...
É que o chocolate bebido pelos Maias (desde 100 d.C.) e pelos Aztecas (por altura do século XIV) era, com efeito, uma bebida alcoólica, feita de feijão ou milho fermentados, à qual água e grãos torrados e moídos de cacau eram adicionados, assim como malaguetas. Em suma: era uma cerveja picante de chocolate.
Em língua nahuatl (a língua dos povos meso-americanos pré-colombianos), a bebida era chamada de xocoatl: uma beberagem que nenhum paladar contemporâneo (à excepção, talvez, do de Anthony Bourdain) seria capaz de apreciar. Os invasores espanhóis provaram-na pela primeira vez na corte de Montezuma, no século XVI e, embora tenham ficado enojados, acharam que o cacau tinha possibilidades e lembraram-se de substituir as malaguetas por açúcar e canela.
O mais curioso é que os sacerdotes aztecas consumiam uma variante especial desta cerveja de chocolate, temperada com o veneno alucinogénio do sapo-cururu (bufo marinus): as glândulas e a pele do sapo eram misturadas à solução durante a fermentação da cerveja e, posteriormente, ela era tomada através de clisteres.
A absorção dos compostos alucinogénios da poção pelos vasos sanguíneos do intestino era rápida e os efeitos muito intensos. (Ainda hoje, os clisteres de bebidas alcoólicas são prática frequente em outro tipo de celebrações.)

Published on March 16, 2011 21:54
Debaixo do Domo

A premissa é elegante: a cidade de Chester's Mill vê-se, de um momento para o outro, coberta por uma redoma invisível e indestrutível.
Quem a ergueu?
Qual é o objectivo?
As personagens não sabem. Porém, algumas são capazes de adivinhar. E o leitor, se pensar um bocadinho, também será.
O início e o desenvolvimento do livro são interessantes, pontuados por pormenores muitíssimo realistas de caracterização de personagens e de ambientes, embora a prosa - simples, mas não simplória - pejada de referências à cultura popular norte-americana, não se apresente muito "sofisticada" aos olhos de um leitor europeu. Contudo, do meio para o fim, Under the Dome ganha uma força tremenda e cresce imenso, dando-nos a ler, de certeza, uma das catástrofes mais violentas que já foram imaginadas na literatura.
O romance beneficiaria de uma revisão mais atenta, mesmo assim, que evitasse algumas incongruências (o cão Horace é chamado de Hector durante umas páginas, por exemplo) e linhas de raciocínio que, acho eu, devem ter permanecido de certas partes entretanto suprimidas pelo autor, aquando da preparação da versão final. Ademais, não deixa de ser inesperado que um romance tão grande tenha um ritmo tão acelerado e eu acho que isso também acaba por prejudicar Under the Dome, porque certos pormenores, como os efeitos a médio prazo que a cúpula invisível opera na cidade e região florestal limítrofe, mereciam mais atenção. De maneira geral, King está mais interessado em analisar o comportamento dos indivíduos, levado ao extremo por esta circunstância extraordinária, que em especular sobre a origem e a razão do surgimento da cúpula - embora elas sejam apresentadas e explicadas.
Under the Dome poderia muito bem ser um argumento para um episódio da série televisiva Twilight Zone, imaginado por uma consciência traumatizada pelos contemporâneos atentados terroristas, mas, embora possa ser lido como uma alegoria aos Estados Unidos quando governados pela administração do anterior presidente, é muito mais uma reflexão sobre o mal que os homens são capazes de fazer quando, de repente, se vêem sem restrições. Se a ideia principal por trás dos crimes de Mr. Griffin, em The Invisible Man de H. G. Wells, é a de que somos capazes de fazer tudo quando já não temos que nos encarar ao espelho, a ideia principal de Under the Dome é a de que somos capazes de fazer tudo quando já não temos que sair de nós próprios - quando o simples acto de comunicar com o outro se tornou obsoleto. É, também, uma obra muito mais lúcida e honesta que outras que tocaram em alguns dos mesmos botões, como a série televisiva Lost, por exemplo, para invocar um título mediático. Só que em Under the Dome cada homem é que é uma ilha; o que daria, sem dúvida, que pensar a John Donne.

Published on March 16, 2011 01:34
March 15, 2011
Mudança
A única maneira de mudar a sociedade é a mesma maneira de mudar-se seja o que for: através do exemplo do indivíduo. Alguém sonha e faz - e ao fazer não só mostra a forma como se faz, como, mais importante ainda, mostra que é possível fazer.
A sociedade não muda com manifestações derivativas, nem com manifestos. Muda quando alguém, no isolamento do seu génio, pensa e aplica o pensamento em algo que perdure no tempo. Se perdurar, mais cedo ou mais tarde vai servir de exemplo e o exemplo é que é mimetizado, não são as palavras.
Talvez nunca como neste período, em que todos os indivíduos se acham inteligentes e bem-informados só porque a profusão de informação à sua volta lhes oferece essa ilusão, a sociedade exigiu tanto dos seus elementos constituintes: dos seus "heróis" individuais. Querem mudar o estado das coisas? Então leiam mais, opinem mais, trabalhem mais, criem mais e, dentro da área em que estiverem inseridos, seja ela qual for, tentem ser os melhores naquilo que fazem.
Comecem por mudar, para melhor, aquilo que podem, com efeito, mudar.
O resto vem a seguir.
A sociedade não muda com manifestações derivativas, nem com manifestos. Muda quando alguém, no isolamento do seu génio, pensa e aplica o pensamento em algo que perdure no tempo. Se perdurar, mais cedo ou mais tarde vai servir de exemplo e o exemplo é que é mimetizado, não são as palavras.
Talvez nunca como neste período, em que todos os indivíduos se acham inteligentes e bem-informados só porque a profusão de informação à sua volta lhes oferece essa ilusão, a sociedade exigiu tanto dos seus elementos constituintes: dos seus "heróis" individuais. Querem mudar o estado das coisas? Então leiam mais, opinem mais, trabalhem mais, criem mais e, dentro da área em que estiverem inseridos, seja ela qual for, tentem ser os melhores naquilo que fazem.
Comecem por mudar, para melhor, aquilo que podem, com efeito, mudar.
O resto vem a seguir.
Published on March 15, 2011 12:39
Cabaret Seixal 2011
Um pequeno excerto da primeira vaga do festival de spoken word Cabaret Seixal 2011, realizado no dia 25 de Fevereiro, no Cinema São Vicente (Seixal). Com música de Charles Sangnoir e textos de David Soares e Fernando Ribeiro.
Published on March 15, 2011 00:35
March 14, 2011
Os Livros das Minhas Vidas
Para ser sincero, um convite para falar sobre os livros da minha vida soa como o som trítonocárpico das falanges da mão da morte a bater-me à porta, pois se a invitação se refere aos livros da minha vida, então tenho de aceitar que ela está perto do fim e não vou ter tempo de ler mais nenhum título: mortis en solatium. Talvez. De qualquer das formas, os livros da minha vida – no mínimo da que vivi até este momento; e no limite até ao final da escrita deste texto – não são apenas os livros que eu li, mas aqueles que escrevi. De uma forma ou de outra, os livros são uma parte muito importante da minha vida, porque a leitura e a escrita são duas ocupações às quais devoto a maioria das horas. No início deste parágrafo empreguei o verbo falar, porque é isso mesmo que estou a fazer convosco: a contar-vos um bocadinho de que é feita a minha experiência com os livros. Apenas um bocadinho – é, somente, uma precaução da minha parte, de modo a evitar a insolvência de memórias e garantir que me sobra algo sumarento para pagar ao barqueiro, porque o maior pecado que se pode cometer, mesmo depois de morto, é o da negligência.
Aprendi a ler com a ba
nda desenhada Donald e as Formigas, de Carl Barks, publicada em Portugal pela Editora Abril/Morumbi no número 1500 da série quinzenal Pato Donald. Decorria o ano de 1981, e eu, sentado no sofá da sala de estar da casa dos meus pais, observava com atenção as vinhetas e tentava decifrar as palavras contidas nos balões. Então, num momento inesquecível, que eu só posso comparar com o acender de uma luz dentro da minha cabeça, as personagens deixaram de falar para os balões e começaram a falar para mim: compreendi que não estava a inventar os diálogos, como costumava fazer, mas a ventriloquar as verdadeiras vozes das personagens – estava a ler. O mérito foi, também, da minha mãe, porque ela mantinha a rotina de sentar-se comigo para me ler histórias; do Pato Donald, mas também do Mickey, do Musti e do Petzi. Ela ensinava-me a sonoridade das letras e como elas se harmonizavam e esses ensinamentos fizeram com que eu aprendesse a ler sozinho. Essa conquista primeva de infância foi um dos momentos mais importantes da minha vida, porque aprendi a lidar com palavras antes de ser capaz de me desembaraçar sozinho na casa de banho. Se a vida e a morte são um único movimento circular, prefiro, em simetria, no meu último leito, seja ele qual for, perder a elasticidade entérica em vez da elasticidade da imaginação. Por tudo isso, de modo inexcedível, esse número 1500 do Pato Donald, com uma capa que, à distância, me evoca até a heteronímia pessoana na multifaria de Donalds diferentes que a decoram, é um dos livros da minha vida.
Outra memória m
ucípara, resgatada desses tempos das criancices, prende-se com O Grande Livro do Maravilhoso e do Fantástico, publicado pelas Selecções do Reader's Digest, em 1977. Descobri-o em casa de uns tios, em meados da década de oitenta, e fiquei apaixonado pelos relatos assustadores que continha: vampiros, fantasmas, assassinos em série, exploradores do passado e do futuro, demónios e bruxas, monstros humanos, invenções fabulosas, extraterrestres, animais quiméricos… No final dessas visitas, os meus pais vinham resgatar-me do meu refúgio chegado à varanda, onde me sentava com o livro no colo, e eu, mais desconsolado que Jeremias, tinha que me separar dele. Passados poucos anos, em outra visita, convenci os meus tios a emprestarem-mo. (É claro que ainda o tenho.) Muito, muito, muito texto desse livro saboreei ao longo de tardes que pareciam imensas, enquanto comia bolachas Catraias da Triunfo, com os signos do Zodíaco, barradas com manteiga. Acho que aquilo que esse livro me mostrou foi que era possível as maravilhas e as monstruosidades existirem no mesmo mundo: uma histonomia excêntrica, composta de sofisticação cosmopolita e folclore medonho. Também é um livro que, de certo modo, me influenciou a ser céptico, porque apresenta inúmeras secções que desmistificam historietas e lugares-comuns da História: verbetes que eu acho fascinantes. A mistura de proto-esoterismo, História, ciência e fantasia abarcada pelo O Grande Livro do Maravilhoso e do Fantástico faz dele, sem dúvida, outro dos livros da minha vida.
A memória é a únic
a língua com a qual podemos falar com os mortos e os sonhos são os únicos lugares em que os podemos encontrar; às vezes, perder alguém é perder uma âncora que nos agarrava a um determinado local e encontrar o pé, novamente, dá trabalho, mas encontrá-lo é preciso. O terceiro livro da minha vida que me lembrei de vos falar é um pequeno volume, que estava na casa do meu avô, e que se chama Doenças dos Bichos de Nogueira de Araújo, publicado pelo Ministério da Educação Nacional, em 1973. O subtítulo é Memórias de um Veterinário Rural e consiste num comedido compêndio no qual as informações zooterapêuticas são veiculadas através de histórias ilustradas. Não faço ideia porque é que os meus avós tinham esse livro, mas sempre o achei hipnotizante; em especial, a ilustração de um cavalo infectado com tétano, acompanhada pelo retrato detalhado do bacilo anaeróbio responsável. Lembro-me de passar uma tarde de Sábado em casa dos meus avós a ler o Doenças dos Bichos e a desenhar o Homem Elefante, do filme homónimo de David Lynch, que passara à noite nessa semana. Lembro-me desse desenho: era uma criatura careca e deformada, com mãos minúsculas e olhos tão esbugalhados quanto os do Cão Grande do conto fantástico de Andersen – muito diferente do protagonista da película, mas era assim que eu achava que um verdadeiro Homem Elefante deveria ser. Com curiosidade, procurava no Doenças dos Bichos a sua estranha patologia, que um vizinho que estava de visita erroneamente me disse ser elefantíase.
Os livros da minha vida são, também, como indica o título desta rubrica, os das minhas vidas, porque as pessoas que fui quando os li e quando os escrevi são um pouco diferentes da que sou neste instante. Porém, tanto uns como os outros são melhores que os sonhos em que podemos visitar os nossos mortos, porque basta tirá-los das estantes para conversarmos com versões mais jovens, mais optimistas e mais ousadas de nós próprios. Versões que já morreram, evidentemente, mas é mantendo essas presenças do passado na biblioteca que construímos carácter e perduramos no tempo. Escrever é trancar a porta pela qual a morte quer entrar, mas ler é abrir janelas.
(Texto publicado originalmente no número nove da Revista BANG!, editada pela Saída de Emergência.)
Aprendi a ler com a ba

Outra memória m

A memória é a únic

Os livros da minha vida são, também, como indica o título desta rubrica, os das minhas vidas, porque as pessoas que fui quando os li e quando os escrevi são um pouco diferentes da que sou neste instante. Porém, tanto uns como os outros são melhores que os sonhos em que podemos visitar os nossos mortos, porque basta tirá-los das estantes para conversarmos com versões mais jovens, mais optimistas e mais ousadas de nós próprios. Versões que já morreram, evidentemente, mas é mantendo essas presenças do passado na biblioteca que construímos carácter e perduramos no tempo. Escrever é trancar a porta pela qual a morte quer entrar, mas ler é abrir janelas.
(Texto publicado originalmente no número nove da Revista BANG!, editada pela Saída de Emergência.)
Published on March 14, 2011 18:55
March 11, 2011
Tudo o que existe

Andar a pé por uma cidade antiquíssima, como Lisboa, é meio-caminho andado para se sentir uma tristeza profunda pela efemeridade do nosso próprio mundo: onde estão os nossos sítios, os nossos mortos, esses pontos de contacto entre o nosso coração e o território? Como continuar a caminhar, quando grande parte do que amámos já se foi embora? Quem estuda a história não se pode dar ao luxo de ser nostálgico, mas eu não sou historiador, sou escritor e por isso posso ser nostálgico à vontade. E nem toda a tristeza é má. Continuam perto de nós, essas âncoras de osso e pedra, de palavra e memória - camufladas no território, como um vasto sistema nervoso sob os músculos. Continua-se a caminhar, porque o território é tudo o que existe: é tudo o que sempre existiu e continuará a existir; mesmo depois das mortes daqueles de quem gostamos e da ruína dos locais onde vivemos. Somos sílabas e iluminuras num texto redigido pelo tempo sobre a terra que nos viu nascer, como tinta sobre um pedaço de papel. Nós secamos, como a tinta - embaciamos. O território fica - mas nós ficamos nele. Ressequidos. Translúcidos. Como folhas mortas. Não há nada mais para além disso.
Published on March 11, 2011 14:45
March 6, 2011
Moby Duck
Published on March 06, 2011 23:37
March 5, 2011
Spoken Word
Descobri que uma das leitoras presentes no Café Com Letras, do passado dia 3 de Março, gravou parte da conversa que tive com Carlos Vaz Marques e disponibilizou-a online.
Consiste num excerto em que se fala, de modo directo, sobre o Horror e o Fantástico, que, entre outros temas, serviram de mote a uma excelente conversa.
Obrigado, Smobile.
Consiste num excerto em que se fala, de modo directo, sobre o Horror e o Fantástico, que, entre outros temas, serviram de mote a uma excelente conversa.
Obrigado, Smobile.
Published on March 05, 2011 16:24
«Primeiro estranha-se, depois entranha-se»...

...escreveu uma leitora, no seu weblog, na muito boa crítica que publicou sobre o meu livro de contos de horror Os Ossos do Arco-Íris (Saída de Emergência, 2006). E a palavra entranha-se não podia ser mais adequada ao conteúdo visceral destes contos: como já escrevi e disse em diversas circunstâncias, o horror não deve ser confortável.
Published on March 05, 2011 14:10
March 4, 2011
David Soares no "Café Com Letras" de Carlos Vaz Marques
Published on March 04, 2011 23:32