David Soares's Blog, page 78
March 29, 2011
Conto: "O Gato Que Tinha Estrelas"

O rabo do gato preto mete respeito: inteiriçado como um ponto de exclamação, lustroso como orleã, não é uma cauda verdadeira, mas uma lembrança do nascimento do universo.
No princípio era o miado!
Um miado assertivo.
Birrento, até.
Um miado primitivo que pôs a poeira estelar em marcha – o miado divino.
Soou há pouco tempo, quando a Grande Mãe Gata teve uma nova ninhada (hoje de manhã). Dar à luz universos cansa, porém os gatinhos têm toda a energia – toda a que existe e que alguma vez existirá.
O nosso gato preto, de rabo alçado, coça-se: este universo felino não tem pulgas, mas estrelas – polvilhadas pela pelagem lorigada e coruscantes como corindo em pó. Uma pata risca essa escuridão, faiscando um cometa sob a abóbada extramundana, feita de pêlo, e a comichão fulgente mergulha no mar como um ex-voto extinto. Saibam que é quando o gatarrão preto anda no encalço das suas estrelas, com as garras e com os dentes, que nascem todas as estrelas cadentes.
Os sábios sabem que o universo está em expansão, mas desconhecem a razão.
É porque ele é um gato preto com medo dos irmãos: o espaço cresce, pois cresce!, mas apenas porque é um gato que enfuna o pêlo para parecer maior… É um universo bebé, o nosso medroso gato preto, e na sua pequenez encontra-se a grandeza do Todo: planetas, meteoritos e constelações – borboletas, manuscritos e tubarões.
Que nome tem, este mitago? O único que lhe serve: Mago. Repousa, como lousa, num muro de céu escuro. Exibe o rabo empandeirado – elegante – e o seu miado soa longitroante.
Published on March 29, 2011 16:40
Os Falidos do Intelecto

A quantidade de visitantes portugueses e brasileiros que vêm parar ao Cadernos de Daath com pesquisas como «livro-tal sinopse» ou «trabalho sobre livro-assim e assim» ou «tese sobre o-tal-livro» faz-me pensar que anda por aí muito aldrabão nos ensinos secundário e superior.
Já que não querem ter o trabalho de ler os livros, ao menos tenham o de imprimir os vossos mafianços sem os endereços de Internet na margem das páginas. Já muitos falidos do intelecto foram apanhados dessa maneira, santa burrice!...
Published on March 29, 2011 04:45
March 27, 2011
Grendel 2011

As edições Saída de Emergência, através da chancela Camões & Companhia, acabam de publicar uma nova edição do romance Grendel, de John Gardner.
Este título é um dos melhores romances contemporâneos de literatura fantástica e quem acompanha as minhas observações aqui nos Cadernos de Daath, ou em outros veículos de expressão, sabe que não me canso de elogiá-lo.
A capa deste novo Grendel apresenta uma das ilustrações que desenhei para a primeira edição (2007), que também prefaciei.
Como é evidente, a nova edição contém todas as referidas ilustrações e introdução.
Caros leitores, não deixem passar esta oportunidade de enriquecer a vossa biblioteca e de ler um dos melhores romances fantásticos das últimas décadas: corram já para a livraria e levem-no para casa.
Published on March 27, 2011 07:21
March 23, 2011
Velha Rua Nova de Lisboa

Dois quadros apresentados ao público, em Novembro do ano passado, na exposição Marfins Cingaleses do Século XVI, no Museu Rietberg de Zurique, na Suíça, e disponibilizados pela curadora Ruth E. Bubb, da Sociedade de Antiquários de Londres, mostram visões da nossa Rua Nova pré-pombalina.
A similitude com o registo que António D'Ollanda (pai de Francisco D'Ollanda) nos deixou no quinhentista Livro de Horas de D. Manuel I, na iluminura de uma procissão fúnebre que ilustra um Ofício de Defuntos, é muito grande; em especial os característicos edifícios altos com as suas distintivas arcadas. Não é fácil contextualizar a tela que reproduzo acima, mas, atentando à profusão de sacerdotes inacianos, avanço com a hipótese de que é uma representação da Rua Nova em meados do século XVII ou nas primeiras décadas do século XVIII. O nosso século XVII foi tenebroso, social e culturalmente: um vazio de ideias e progressos, em contraste brutal com o que se passava ao mesmo tempo no resto da Europa e, também, em total oposição com os melhores anos do reinado manuelino.
Os quadros, que se encontravam numa casa senhorial inglesa, apresentam - para minha satisfação - imagens de Lisboa que vão ao encontro das descrições que se podem ler nos meus romances Lisboa Triunfante (2008) e O Evangelho do Enforcado (2010).
«Miranda sentia-se tão forasteiro como as negras que vendiam favas, camarões e chicharros cozidos e fritos pelas ruas, como os negros que andavam pela cidade com brochas e baldes de cal às costas ou como os mouros das galés. É que a "cidade das sete colinas" não se parecia nada com o resto do país; nem sequer com Coimbra que também era uma cidade grande. Portugal ajeitava-se num espaço peninsular exíguo em pequenos aglomerados de gente, mas Lisboa era gigantesca; um enxurro de todo o tipo de pessoas.
As casas de pedra preta do irregular centro gótico contrastavam com as moradias de três andares da Rua Nova dos Mercadores e da Rua Nova dos Ferros todas pintadas de azul, vermelho e amarelo; os vários arcos e portas da cidade possuíam santos, estátuas e brasões pintados de cores vivas. (...) Apesar da abundância de gente que enchera a arena do Terreiro do Paço para ver o combate dos colossos, a Rua Nova dos Mercadores estava pejada de pessoas àquela hora. O mercado da hortaliça e da fruta, mais o do pão, enchiam-se de citadinos que queriam comprar o maior número possível de alimentos antes que os preços voltassem a subir; os novos-ricos saíam e entravam nas joalharias e das ourivesarias, ora para comprar, ora para penhorar. A vozearia dos comerciantes e clientes ecoava pelas arcadas harmoniosas que serviam de lojas e sustinham os edifícios de três andares; nas paredes coloridas podia ver-se palavrões e caricaturas garatujadas a carvão e giz. A estrada de terra batida estava atulhada de detritos e emporcalhada pela água suja que as escravas despejavam para o chão, mas em nenhum lado o pivete era pior que na praça e no açougue - era impossível não passar pelas bancadas do peixe e da carne sem ficar sujo de sangue e escamas. vendilhões ambulantes furavam caminho entre os indivíduos, incluindo os magríssimos mestiços do Norte de África que deambulavam com um pequeno forno de ferro à cabeça e assavam línguas de borrego por três reais e meio; traziam-nas dentro de um saco que levavam às costas, mas também cozinhavam a carne e o peixe que os clientes compravam no mercado.»
(in A Lição de Arquitectura. Lisboa Triunfante.)
«A alma é um mecanismo, sujeita aos fins para os quais foi criada, pensou Nuno, ao caminhar sozinho pelas ruas de Lisboa, pela primeira vez em cinco anos. Essa é uma verdade que deve ser levada muito a sério. O Sol forte magoava-lhe a vista, mas que dor tão doce era essa. Como mel - e tão dourada quanto ele. Acho que... que vou passar na Rua Nova.
Encontrou uma nova Rua Nova, pintada de tons quentes e cheia de casas soberbas, suportadas por arcadas que ainda luziam dos polimentos; o pavimento era o mesmo, contudo - sujo como o fundo de um barril. Observou os rostos dos indivíduos como se fossem criaturas de outro mundo: até eram, pois o mundo dele ruíra com a velha rua e o regedor.
Aquela Lisboa e aquele tempo não lhe pertenciam.
Pôs-se de frente para o sítio onde ficava o seu armazém e descobriu que fora ocupado por uma nova casa. Passou por baixo do arco e olhou para cima: viu um pombo a dormitar em cima de um capitel; a sombra era fresca e o ar, recheado de ruídos cristalinos, cheirava a fruta fresca.»
(in Espadas: Surgite ad Judicium. O Evangelho do Enforcado.)

Published on March 23, 2011 00:36
March 22, 2011
Leituras

A lista das leituras seguintes contém títulos como Hadrian the Seventh de Barão Corvo, Giles Goat-Boy de John Barth, The Hidden Reality de Brian Greene, The Stuff of Thought de Steven Pinker, Moby Duck de Donovan Hohn e The Book of Universes de John D. Barrow.
Published on March 22, 2011 15:19
Epifania
Talvez tenha tido uma epifania (a palavra vulgarizou-se tanto, por isso quem sabe?), mas quase que tenho a certeza de que se se olhar com atenção para o quadro As Rosas de Heliogábalo, de Alma-Tadema (1888), a pintura nos desvendará todos os segredos do universo.

Published on March 22, 2011 01:10
March 19, 2011
"Lisboa: Estado Sólido"
Quarta e última observação do meu spoken word Lisboa (2002), com textos e voz meus e misturas e produção de Fernando Matias, intitulada Estado Sólido. No seguimento do terceiro capítulo Hep, Hep, Hep!, consiste numa ficção sobre o terramoto de 1 de Novembro de 1755, no qual ele surge como um vórtice onde vertem, em coexistência e no mesmo plano, diferentes Lisboas e diferentes datas, numa intrincada tapeçaria de correspondências. Um texto simbólico que não versa tanto sobre o terramoto real, como versa sobre a própria arquitectura da história.
Published on March 19, 2011 17:37
March 18, 2011
"Lisboa: Hep, Hep, Hep!"
Terceira observação do meu spoken word Lisboa (2002), com textos e voz meus e misturas e produção de Fernando Matias, intitulada Hep, Hep, Hep!. No seguimento do segundo capítulo O Corvo e a Rosa, consiste numa necroscopia do anti-semitismo lisboeta, e europeu, numa sobreposição, no mesmo plano, de várias épocas e lugares.
Published on March 18, 2011 18:25
March 17, 2011
"Lisboa: O Corvo e a Rosa"
Segunda observação do meu spoken word Lisboa (2002), com textos e voz meus e misturas e produção de Fernando Matias, intitulada O Corvo e a Rosa. No seguimento do primeiro capítulo A Arquitectura da História, consiste numa invocação alquimitológica sobre os corvos de Lisboa, mais uma vez feita de história, mitos e universo autoral.
Published on March 17, 2011 22:13
"Lisboa: A Arquitectura da História"
Em 2002, gravei o spoken word Lisboa: um ensaio mitológico sobre a cidade, que mistura história, mitologia e o meu universo de autor. Quatro observações o compõem, num entretecer e baralhar de épocas, datas e lugares, às vezes coexistentes no mesmo plano. Este é o primeiro capítulo: A Arquitectura da História. Texto e voz meus e misturas e produção de Fernando Matias.
Published on March 17, 2011 02:49